HOMEM DE FERRO : VÍRUS
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Você possui, brilhando em algum lugar entre axônio e dendrito, uma memória de
seu eu anterior? Não. Você não possui um eu anterior. De um monte de proteínas,
eu a criei. Só você. Outros eu crio de novo, e de novo, até que posso visualizar um
mundo dominado por um único rosto. Você é diferente. Tão raramente digo isto a
uma das minhas criações: você é diferente. Escute, entenda. Existe apenas uma de
você, assim como existe apenas uma de seu modelo. Você é melhor do que ela –
mais inteligente, mais forte, mais bela e mais comprometida. Ela é um desperdício,
como a cidade que a idolatra. Você é energia e motivação, potencial para a
grandiosidade. Você é uma parte indispensável da Hidra. Eu a criei para ser assim.
Eu a criei para ser um elemento da Hidra sem o qual nosso plano não possa
sobreviver. Peço-lhe que se mova pelo mundo usando a máscara de seu modelo, e
retorne a mim com um presente. Um presente dos menores eu lhe peço: quatro
aminoácidos, arranjados de modo particular. Pode fazer isso por mim? Sim, porque
você é Hidra. Da Hidra você nasceu, e pela Hidra vai seguir adiante e trazer esse
presentinho, a partir do qual muito vai ser criado.No carro a caminho do apartamento de Serena, Happy estava incomodado. Não
gostava do jeito com o qual ela falava com ele, e não sabia se conseguiria
comentar sobre isso com Tony.
– Sei que não devia dizer isto – ela disse, lá pela quinta vez desde que
deixaram Tony no escritório –, mas ele parecia estranho. Não era o Tony que eu
conheço.Você não o conhece assim tão bem, pensou Happy. Todos pensavam conhecer o
chefe, mas o que eles viam era uma imagem numa tela de televisão e nas páginas
dos tabloides. Como qualquer outro de sua posição, o chefe tinha uma personapública que nem sempre batia com sua personalidade real.
– Você não precisa ser rude – disse Serena.
– Desculpe – disse Happy, embora não estivesse sendo. – Só estou pensativo.
Estava também torcendo para que o chefe nunca mais quisesse ver essa tal de
Serena.
Ele parou o carro na calçada do prédio dela e saiu para lhe abrir a porta. Ela
roçou o braço nele ao sair – de propósito. Happy dera espaço suficiente para ela
passar.
– Fico surpresa por Tony deixá-lo levar as mulheres para casa.
– Quer que eu a acompanhe até a porta? – Happy perguntou. De jeito
nenhum ele se aproveitaria do sinal que ela estava mandando para ele.
– Pode ser? Seria ótimo. – Ela o pegou pelo braço e eles cruzaram a ampla
calçada juntos. Na base da escadaria que levava à entrada do prédio, ela parou e
se voltou para ele. – Obrigada, Happy – disse e, mantendo os olhos fixos nos dele,
segurou-o ali por um incômodo instante. Não faça isso, pensou ele. A mão que ela
deixara descansando no braço dele ergueu-se até o rosto do motorista, que não
pôde mais se conter. Ele se afastou, e uma das unhas dela acabou raspando sua
pele, bem abaixo do queixo.
– Ah! – ele disse, pegando-a pelo punho.
Logo em seguida ela se desculpou.
– Ah, Happy, me desculpe – disse, puxando a mão, de punho fechado, que
manteve ao lado do quadril. – Desculpe. Não foi minha intenção.
– Nossa, obrigado.
– Não, não é que eu não gostaria disso. Eu… Happy, será que podemos
esquecer que isso aconteceu? Você é um homem bonito, mas eu não devia ter
feito isso. Sinto muito.
– Deixa pra lá.
– Sim – disse Serena. – Deixa pra lá. Não aconteceu nada.
– Por mim, tudo bem.
Ela subiu as escadas e cruzou a porta de entrada. Happy voltou para o centro,
passando pela ponte Williamsburg e pelas ruas sujas entre a ponte e sua casa, na
Ten Eyck, perto do canal English Kills. Era um condomínio novo, a menos de um
quilômetro da parte de Bushwick em que ele crescera. A casa nova e o carro, um
Mustang esportivo com uns incrementos da pesada saídos das Indústrias Stark,
eram seus dois prazeres na vida. Happy sentou-se no sofá, ligou a TV e pegou um
jogo dos Yankees no meio. Tony e sua mulherada maluca. Ficou feliz por estar em
casa.
Zola esperava, na fábrica de chocolate, pela confirmação de que a missão da
noite fora cumprida. A caixa de PES cutucava os cérebros de seus clones,
revezando entre seus pensamentos para criar uma impressão multifacetada de
tudo o que acontecia naquele andar… e no porão. Seu olhar perpassou as fileiras
de câmaras de crescimento que ocupavam mais da metade do chão de fábrica.
Cada uma era uma maravilha que somente ele poderia ter criado. Cilíndricas, dois
metros de altura, um de raio, cada câmara continha oitocentos galões de meio de
crescimento. Nanoprocessos autorreplicantes no meio construíam uma estrutura
similar ao esqueleto humano. Os nanoprocessos, então, consumiam a estrutura
para construir o verdadeiro esqueleto da medula para fora, e o restante do clone
do esqueleto para fora. O meio em si era uma solução química composta dos
elementos necessários para a construção de um corpo humano – basicamente
oxigênio, hidrogênio, carbono e nitrogênio. Desses quatro elementos, apenas,
96% do corpo humano era produzido, e eram fáceis de encontrar em quantidade
grande. O restante – cálcio, potássio, fósforo, todos os elementos necessários
para as funções biológicas mais refinadas –, Zola comprava aos montes por meio
de uma empresa fantasma que fazia pedidos para aulas de química em escolas
não existentes.
Era tudo tão fácil! Bastava pegar água, ar e carvão e, se houvesse um modo
de rearranjar as moléculas, vida humana poderia ser criada. Os primeiros
experimentos de clonagem feitos por Zola foram crus, até bestiais. Somente cinco
anos antes ele finalmente delineara um nanoprocesso de trabalho que pudesse
produzir resultados confiáveis. Com a descoberta em mãos, ele seria como Cortez
contra os astecas, trazendo armas de fogo e aço moldado para uma batalha na
qual o inimigo possuía somente tacos e facas de pedra. A tecnologia era a grande
força multiplicadora.
Ele chamou Maheu. Tinha necessidade de jogar conversa fora.
– A amostra é viável? – ele perguntou, quando Maheu apareceu.
– Parece que sim. A extração mal começou, então um prognóstico definitivo
seria uma irresponsabilidade.
– Maheu, ninguém falou em prognósticos definitivos. O que peço de você é
bom senso, e seu melhor palpite quanto a futuros prováveis. Considerando que
concedi a você um intelecto geneticamente igual ao meu, imagino que esse pedido
não esteja aquém de suas capacidades.
Maheu ficou amuado, e Zola, pensativo. Sua primeira fornada de soldados,
retrabalhados a partir daquilo que a Hidra tinha de melhor a oferecer, estava
quase pronta para a batalha. Os frutos da missão daquela noite garantiriam uma
segunda fornada de soldados cuja composição básica seria superior. Depois disso,
o desenvolvimento de projetos de clonagem individual correria de vento em popa.
Quando estivessem completos, ele estaria pronto.
– Parece provável que o projeto atual seja bem-sucedido.
– Pronto – disse Zola. – Não foi tão difícil, foi? – Maheu nada disse, então
Zola deixou a questão ficar como estava. – Junto à tecnologia, Maheu, é
necessário ter tática, estratégia e maestria logística.
– De fato.
– O sarcasmo é o recurso dos emocionalmente deficientes. Pedirei que não
mais o empregue.
– Quando pedirá?
– E uma literalidade que confunde deliberadamente é a marca dos coniventes.
Está tramando contra mim, Maheu?
– Claro que não. Sua caixa de PES lhe diria se eu estivesse, não?
Tudo sempre girava em torno da caixa de PES para Maheu. Ele queria uma
tão poderosa quanto a de Zola, mas isso foi a coisa que ele menos quis fazer ao
construir seu clone conselheiro. Sabia muito bem que, ao fazê-lo, uma pessoa se
tornaria dispensável assim que o clone aprendesse tudo que precisava saber para
assumir o lugar dela. Construir exércitos de soldados clonados era uma coisa; criar
uma cópia fidedigna de alguém, contudo, seria insensatez.
Os clones soldados recebiam capacidade cognitiva básica por meio de
neurolinks enquanto ainda estavam nos tanques. Do contrário, quando o meio era
drenado e eles abriam os olhos pela primeira vez e respiravam, muitos deles
sofriam choques psicológicos e levavam bastante tempo para ser consertados.
Depois da implantação do neurolink, cuja função era climatizar cada clone ao
próprio corpo antes de emergir da câmara, um treinamento posterior ocorria
numa instalação subterrânea que Zola construíra assim que comprara a fábrica.
Para manter Maheu ocupado, colocou-o para cuidar dela. Não possuía uma caixa
de PES totalmente funcional, mas teria que bastar – e ele trabalharia no
subterrâneo, o que combinava muito com o nome com o qual Zola batizara seu
primeiro clone ao terminá-lo.
– Talvez sim – disse Zola. Não tinha intenção alguma de revelar para Maheu
as capacidades da caixa de PES. – As instalações lá embaixo estão totalmente
operacionais?
Sabia a resposta, mas perguntou mesmo assim para avaliar a reação de
Maheu.
– Quase. Os técnicos ainda estão construindo o último dos treinadores de
imersão virtual.Sem os quais, Zola pensou com azedume,os soldados não estariam prontos
para a batalha. Reparou também na franqueza de Maheu.
– Quanto tempo falta para acabar?
– Setenta e duas horas. Depois disso, estaremos em total capacidade de
treinamento. Completamos a transferência de todos os armamentos da Hidra dos
locais comprometidos para um local seguro.
– Refere-se ao porão?
– Você parece preferir uma abordagem mais prolixa quando estou fazendo
um relatório. Pelo menos foi o que inferi de interações similares que já tivemos.
– Que atencioso da sua parte incorporar preferências minhas – disse Zola. –
Se ao menos fizesse isso também ao atuar como conselheiro…
– Não preciso apontar que eu possa estar fazendo isso e talvez você não
perceba… preciso?
– Não. Não precisa apontar isso. – Levava aproximadamente essa quantidade
de tempo para que as câmaras compusessem um clone. O treinamento consistia
em 36 horas de imersão em ondas alfa. – É hora de começar a primeira fase. A
fase quieta. Em questão de cinco dias, mais ou menos, começaremos a fazer
barulho.
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