segunda-feira, 12 de setembro de 2016

CONSCRITO 329

HOMEM DE FERRO : VÍRUS 

28

Estou indo até vocês, Hidra. Porque posso voar e porque despachei as forças da
S.H.I.E.L.D. enviadas para nos destruir antes que pudéssemos levantar voo. Venho
com as Oito Madames, agora sete, porque – como devemos sempre lembrar – a
S.H.I.E.L.D. é um adversário de valor. De valor na batalha e de valor no despacho.
De valor na memória da batalha. Voarei até vocês, meus soldados! Atrás de nós,
chamas; à nossa frente, o mundo! Preparem-se, e saibam que a mudança que trago
é irreversível, que quando eu chegar, tudo se transformará, os elementos e átomos
do mundo não mais saberão seu lugar a não ser que eu os diga. Sei que
prenderam a S.H.I.E.L.D. feito ratos na armadilha. Segurem-nos! Prendam-nos! O
golpe de misericórdia se aproxima. Estou voando junto às Madames, e quando
pousarmos a Hidra levantará voo. Vocês lutaram bravamente e provaram ser
merecedores do mundo que virá. Continuem fortes. Vocês são a Hidra! Nasceram
para ser a Hidra! Devem lutar como a Hidra! A vitória está a minutos de ocorrer! Em
meu novo corpo, trarei o novo mundo. Encontrarei Tony Stark dentro de sua
concha de covarde e sobre seu corpo provarei a superioridade da ordem que agora
germinaremos. Nós somos a Hidra!
As primeiras palavras que saíram da boca de Happy quando ele se viu acordado o
bastante para conseguir falar foram:
– Cadê a Pepper?
O médico estava bem ao lado.
– Vamos encontrá-la pra você, Happy.
– Ela não tá aqui? – Ele mal podia acreditar.
– Bom, ocorreu um pequeno incidente no Laboratório de ITR do Stark – disse
o dr. Singh. – Precisaram dela lá.
– Hidra – disse Happy. E começou a se levantar.
O dr. Singh deixou de lado a típica postura confortante.
– Sr. Hogan. Sob circunstância alguma você poderá sair dessa cama. Quase
morreu algumas vezes durante as últimas 24 horas, e não se sabe ao certo se você
não está prestes a “bater as botas”, para usar uma expressão que desprezo.
Happy fitou o médico, depois percebeu que não adiantaria nada discutir.
– Certo, doutor. Só encontre a Pepper pra mim. Cadê meu celular? Posso ligar
pra ela?
– Vou procurá-la. Você espera aqui até que eu retorne.
– Você é o médico.
Quando o dr. Singh saiu e fechou a porta, Happy providenciou um inventário
acerca de si mesmo. Sentia-se feito um cachorro que mandaram ir para a casinha.

Havia água ao lado da cama. Ele a bebeu lentamente antes de ler os rótulos dos
frascos cujo líquido pingava para dentro de sua veia. Dizia salina, mas havia um
desvio no adesivo, o que significava que estavam injetando outra coisa nele. Ele
mexeu os dedos dos pés, flexionou os das mãos. Tinha que ir ao banheiro.
Aha! Havia uma desculpa para sair da cama. Happy girou as pernas para o
lado da cama, sentiu uma onda inicial de tontura, depois plantou os pés no piso.
Nem tudo mudou enquanto ele esteve apagado; os pisos dos hospitais
continuavam gelados. Ele testou seu peso sobre os pés e sentiu outro assomo de
tontura chegar e passar. Nada demais. Assim que removeu a sonda e usou o
banheiro, voltou ao quarto.
O que precisava mesmo era comer um hambúrguer e
passar uma meia hora na academia
, pensou. Se estivera assim tão perto da morte,
então os médicos operavam milagres.
O dr. Singh voltou enquanto Happy vestia as roupas. Ele as encontrara limpas
e passadas dentro do armário. Até sua arma estava lá dentro. Essa era uma das
vantagens do hospital pertencer à S.H.I.E.L.D., supôs.
– Não posso permitir que vá embora – disse o médico.
Happy terminou de amarrar os sapatos antes de responder. Depois se
levantou, checou as balas em sua Hi-Power e disse:
– Doutor, minha garota está em perigo. Não me sinto superbem, mas se eu
não estiver lá e algo acontecer com ela, não vou mais poder conviver comigo
mesmo. Podemos discutir, ou você pode me ver passar por essa porta e dizer a si
mesmo que fez tudo o que podia ter feito. Será verdade.
O dr. Singh não disse nada. Nem saiu de frente da porta.
Happy insistiu.
– Doutor, vou sair por essa porta. O que aconteceria se a sua garota
estivesse em perigo e alguém tentasse impedir que você fosse até ela?
O médico continuou calado. Happy já quase se resignara a carregar o médico
consigo hospital afora quando o dr. Singh abriu a porta e disse:
– Você é um grande bobo romântico, sr. Hogan. Mas médico algum pode curar
isso.
– Obrigado, doutor – disse Happy ao sair.
Agora, pensou consigo,seria bom se
essa lenga-lenga funcionasse no sargento que toma conta dos helicópteros
.
• • • •
Tony deparou-se mais uma vez com os trilhos de trem e começou a andar. Os
avatares foram se afinando, e logo ele ficou sozinho. Muito atrás, ouviu o apito

de um trem. Saiu do trilho e foi andando pelo aterro. O apito ressoou novamente,
agora mais perto. O ronco e o sibilar do trem não faziam o efeito Doppler, como
era de se esperar; quando ele olhou para trás, viu que o trem estava parando.
A locomotiva era um antigo G-4e de cabine dupla, manufaturado pela
Schenectady Locomotivas na década de 1860. Tony soube sem nem ter que
perguntar. Como o acompanhante dissera, tudo estava ali. Às vezes a informação
vinha até você; às vezes, era preciso procurar.
Inclinando o corpo para fora da cabine, o condutor olhou para baixo.
– Vai chegar aonde deseja se eu lhe der carona. Ninguém conhece esse
pedaço como eu.
– É mesmo? – disse Tony. Não estava muito a fim de confiar na sorte ainda.
O condutor fez que sim.
– É, sim. Claro, se preferir andar, não posso impedir. Ei, minerador! Acenda o
fogo e vamos embora! – ele latiu para os fundos da locomotiva. O trem entrou em
movimento.
Tony começou a andar para acompanhá-lo.
– Acho que vou aceitar a oferta. Não tem por que andar quando se pode ir de
trem, certo?
– É isso aí – disse o condutor. – Chamam-me Lantier. Você é Tony Stark,
certo?
– Como sabe? – Tony olhou para os lados. Teria que decidir muito em breve
se saltaria no trem ou o deixaria ir.
– Sei porque Zola sempre quis que eu soubesse. Eu já fui ele. Quando era
Lantier. Agora estou livre. Quer vir comigo ou não?
Estranhos colegas, pensou Tony, mas pôs-se a correr e saltou para o suporte
abaixo da porta da locomotiva.
– Todos a bordo! – disse Lantier, e o trem estremeceu e acelerou em direção
ao brilho das luzes.
– Acabei de falar com alguém que disse que foi Zola. Quantos de vocês
existem?
– Vai saber. Ele nos criou, manuseou, descartou. Ele nem sabe. Qualquer
bêbado que vir pela rua pode ter sido Zola em algum momento.
– Entendo. – Tony pensou se faria ou não a pergunta seguinte, e concluiu que
não havia muito a perder. Ainda estava aprendendo como funcionavam as coisas
ali. – Por que está me ajudando?
– Não sei se estou – disse Lantier sem hesitar. Depois ficou mudo, e não disse
mais nada até que alcançaram os arredores das luzes.

Ao se aproximarem, Tony conseguiu reparar nos detalhes. Eram prédios,
paredes, beiradas. Havia pessoas que não foram sempre pessoas.
Era onde viviam
os avatares
, pensou ele.
– Todos nós, todos esses fantasmas e pedaços de código velho, avatares e
miniaplicativos, vivemos por aqui – disse Lantier. – Venho fazendo isso há anos,
desde quando ainda estava vivo. Deixei traços do meu eu-Zola aqui. E do euLantier. E outros. Você conheceu o cara magrinho que gosta de caminhar?
– Sim, conheci.
– Mais um dos meus
eus. Do Zola. A mesma coisa, já que sou um clone de
Zola. Ou é ele que é? Caramba, não sei mais. Acha que seu clone tem o mesmo
euque você?
– Não.
– Tá, mas você pensa de outro jeito porque é o original. Eu acho que o Zola, o
primeiro Zola, pensa do mesmo modo. Eu, já que sou da segunda geração, e fui
modificado um pouco ao ser ativado, graças tanto ao Zola quanto às minhas
próprias investigações quando ele não estava olhando, eu sou diferente. Acho que
tenho um
eu, e é só meu, e tenho o direito de me chamar Zola tanto quanto o
próprio Zola. Quer dizer, e daí que ele me criou? Se um dos seus
nanobotsreplicadores fizer outro, um deles é melhor só porque veio primeiro?
– Poupe-me. Replicadores e pessoas são coisas diferentes.
– Aqui não são, não – disse Lantier.
Seguiram chacoalhando sobre os trilhos. As luzes se aproximavam.
Periodicamente, Lantier acionava a buzina para afugentar corvos do caminho. Em
certo ponto, todas as vacas do rebanho ficaram de pé, brandindo o que pareciam
ser machados de guerra.
– Vazamento de videogame. Tem vários heróis perdidos aqui também. –
Voltando-se a Tony, Lantier acrescentou: – Você deve ser um deles.
– Eu? – Tony disse. – Eu sou real.
Lantier riu. Riu alto, e por um bom tempo, e o som modulou de um baixo
profundo digno do cara dos comerciais da 7-UP que Tony via quando era mais
novo para um risinho que o fez querer exterminar todos os adolescentes do
mundo. Quando terminou, disse:
– Só é real quando não está aqui. E, já que está aqui, não é real. Tem um
corpo lá na Quarta-D que é real, claro. Só que se não voltar pra ele… – Ele deu de
ombros.
– Posso voltar quando quiser – disse Tony.
– Como?

– É só acionar a rotina de extração da MDP.
– Então é melhor fazer isso logo. Você já estava com essa ideia antes, filho, e
estava certo. Aqui é como a toca do coelho. As coisas não são sempre as mesmas
aqui. Acione o programa, e depois o relógio.
– O problema é esse – disse Tony –: e se o tempo acabar?
– Tempo? Tempo? – Lantier desatou novamente a rir. Antes que se perdesse,
conteve-se. – O tempo é flexível aqui. Depende da banda, depende da torre de
servidores. Depende de tantas coisas. Você aciona, diz à sua rotina lá na QuartaD que quer voltar para casa em X ou Y minutos. Isso não significa nada aqui.
Tony deu um tapinha no batente da janela ao lado de seu assento na cabine.
– Bom saber disso.
– Sim, talvez – disse Lantier. – Mas nem sempre dá certo. Você podia achar
que se passaram mil anos e só foram dez minutos na Quarta-D. Ou pode
acontecer agora mesmo porque você pensou nisso. O problema é esse. Você não
sabe. – Ele deu de ombros. Um cigarro aceso apareceu em sua boca, e ele o
mastigou e soltou fumaça feito a caldeira acima dele. – Um pouco de incerteza
coloca mais tempero na vida. Meu último feito na Quarta-D: matei dois comandos
da S.H.I.E.L.D.
– E está me dizendo isso por quê?
– Porque não me importa. Quando eu era uma pessoa, importava. Mas Zola
me tirou isso há muito tempo. Estou dizendo tudo diretamente a você porque não
ligo se vai conseguir o que quer. O que mais me importa, só porque até pouco
tempo atrás eu era uma forma de carne viva e ainda me lembro das emoções, o
que mais me importa é que Zola receba de volta um pouco do que me fez passar.
É isso.
Lantier ficou calado. Tony não tinha nada a acrescentar. Pensou nos dois
comandos da S.H.I.E.L.D. mortos, e como ele poderia ter feito tudo diferente
para que eles não tivessem que morrer na fábrica de chocolate. O trem roncou e
apitou, em direção às luzes. Estavam, sem dúvida, mais perto. Coisas surgiam do
nada e morriam, pegas pelo limpa-trilhos. E nem pareciam se importar.
  

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