segunda-feira, 12 de setembro de 2016

CONSCRITO 331

HOMEM DE FERRO : VÍRUS 

30

As cabeças da Hidra primeiro mergulharam suas presas no mundo, no amanhecer da
consciência humana, quando o homem descobriu que poderia tomar o mundo em
suas mãos e transformá-lo. O primeiro uso de um instrumento afiado foi alquímico,
criando um novo mundo a partir dos materiais do antigo. A Hidra cresceu com cada
mente que viu não o que o mundo era, mas o que poderia ser. As forças da
escuridão cortaram as cabeças dos malucos e hereges que viram através do Real e
discerniram os contornos do Possível – entretanto, com cada decapitação, as
cabeças da Hidra se multiplicaram. Séculos e milênios se passaram, e as cabeças da
Hidra se tornaram incontáveis, cérebros distribuídos numa rede que observou a
civilização humana e a encontrou desejosa, ardendo com potencial. Esse é o
legado que tomei, a herança que esperava que Zola a reivindicasse. A Hidra é
minha, e sou o primeiro líder digno de seu projeto. Transformei os materiais de
corpos e mentes. Trouxe à vida o super-homem. Erradiquei as barreiras entre o
organismo e os trabalhos das mãos humanas. Pavimentei o caminho para o
surgimento de algo irreconhecível e transcendente, que será o Anúncio de uma
nova humanidade, livre dos limites do genoma e do ambiente. Isso está ao nosso
alcance. Vocês, a quem eu criei, são as cabeças da Hidra, mordendo e envenenando
os corpos corrompidos de uma civilização que não é sábia o bastante para perceber
que está morrendo, e deve morrer para abrir caminho para que comece uma nova
vida. Siga-me, Hidra!
Serena percebeu que tudo ficou quieto. Ninguém mais atirava no corredor nem
em algumas salas acima, e Zola ficou calado, à porta, enquanto as Oito Madames
aguardavam suas instruções. Três delas limpavam as espadas usando a roupa de
cama. Ela não reclamou. Ia morrer logo. Zola não tinha motivo para mantê-la
viva tendo a S.H.I.E.L.D. tomado atitude. Serena havia sido um ornamento. Uma
presença requisitada em eventos sociais e festas de alto padrão nas quais as
pessoas queriam tirar fotos dela e convencê-la a fazer comentários de aparência
superficial para que pudessem transmitir na TV, ou no rádio, para benefício
próprio, às suas custas. Ela sabia como era ser usada. Mas jamais tivera a
sensação de ter servido ao propósito tão final e fatalmente.
Saber que um clone estivera por aí na cidade passando-se por ela tornava
tudo pior ainda. Ela não sabia o que a criatura vinha fazendo, que tipo de
impressão deixara. Ia morrer, e nem sabia como haviam sido suas três últimas
semanas de vida, já que, enquanto o clone percorria o mundo vivendo sua vida,
ela estivera aprisionada ali. Passou por sua mente que já morrera de todo modo

possível. Tudo o que restava a Zola ou a uma das Oito Madames era fazer o
corpo dela parar de funcionar.
– Bem – disse Zola –, a qualquer momento, os membros restantes da equipe
da S.H.I.E.L.D. enviada para extrair você chegarão a essa porta. Eventos
desagradáveis sucederão. Espero que fique fora do caminho.
– Por que me manteve viva? – Serena perguntou. No fim, não importava, mas
ela quis saber.
– Fui aconselhado ao contrário – disse Zola. Refletiu um pouco. – Um gosto
pessoal, talvez. Não seria a primeira vez que minhas reações emocionais geraram
dificuldades profissionais.
Então ele ergueu o rosto e levou um dedo aos lábios. Serena quis gritar, mas
as possibilidades giraram em sua mente. Se ela fizesse barulho, e a equipe da
S.H.I.E.L.D. entrasse pela porta, Zola e as Madames os arrasariam. Se ela fizesse
barulho e a equipe da S.H.I.E.L.D. fosse procurar a saída, uma das Madames a
mataria e o restante perseguiria os agentes. Talvez sua única escolha fosse ficar
quieta e contar com o treinamento deles. Deviam saber como invadir um cômodo.
Haviam feito isso durante as horas anteriores, não?
Mas havia oito cabeças decapitadas sobre a escrivaninha. Serena não sabia o
que fazer. O mundo não devia jamais ser desse jeito.
– Madames – Zola disse baixinho. – Hora de ir.
Ele abriu a porta e entrou no corredor, como se recebesse visitantes há muito
esperados.
– Não não não não – disse Serena, mas ela não podia fazer nada.
As Oito Madames esperaram até o primeiro disparo. Depois dançaram porta
afora, fluidas e subitamente quase invisíveis, como se conhecessem as sombras e
pudessem nelas habitar. Serena assistiu, e gritou com uma alegria sanguinária
quando viu uma das Madames contorcer-se e tombar, saindo de seu campo de
visão, deixando jorros de sangue na porta. Depois, ficou quieta. Ouviu mais tiros
no corredor, e gritos, e o tilintar de espadas. Serena olhava para a frente, imóvel,
forçando-se a não pensar que todos aqueles soldados lá fora estavam morrendo
porque Tony Stark os enviara para encontrá-la.
Algum tempo depois, Zola voltou para o quarto.
– Deixarei permanentemente esta instalação, srta. Borland. Você também
está livre para sair quando quiser. Espero que, apesar das circunstâncias difíceis
de sua estadia, tenha considerado a Hidra um hospedeiro responsável e
confortante. Talvez nossos caminhos se cruzem novamente, no futuro. Adeus.

Ela ouviu os passos do homem conforme ele foi andando pelo corredor, mas,
mesmo com as cabeças decepadas dos comandos da S.H.I.E.L.D. fitando-a com
olhos vidrados sobre a escrivaninha, ela demorou muito para levantar-se e
enfrentar o que sabia que veria quando cruzasse a porta.
• • • •
A lenga-lenga não funcionou com o sargento. Happy o nocauteou e entrou no
helicóptero, depois alçou voo, antes que pudesse ser capturado. Se quisessem
impedir que ele chegasse ao Laboratório de ITR, teriam que derrubá-lo a tiros. O
comunicador da aeronave começou a guinchar para ele quase de imediato.
– Aqui é o controle de voo da S.H.I.E.L.D., Ilha do Governador. Identifiquese.
Happy obedeceu.
– Hogan, devolva o helicóptero. Estamos autorizados para derrubar qualquer
aeronave roubada deste local. Estamos autorizados, também, a derrubar qualquer
um que se aproxime do raio de um quilômetro do Laboratório de ITR das
Indústrias Stark, devido às operações em andamento.
– Espere um segundo – disse Happy. – Por causa das operações da
S.H.I.E.L.D. vocês vão derrubar qualquer helicóptero da S.H.I.E.L.D. que for pra
lá?
– Essa é nossa autorização – disse o controlador de voo.
– Parece que vocês têm duas autorizações. Vou roubar este passarinho, e vou
até o laboratório. Escolha uma das duas.
O agente da Ilha ficou calado. Cerca de um minuto depois, quando Happy se
aproximava do Brooklyn Navy Yard, o controlador voltou a falar.
– Saiba que existe forte evidência de operação psicológica, especificamente
contra pilotos, na área ao redor do Laboratório de ITR.
– Especificamente contra pilotos?
O agente quebrou sua conduta cuidadosamente imperiosa de controlador:
– Happy, queria que fosse brincadeira. Doze aeronaves caíram ao mesmo
tempo lá um pouco após a meia-noite. Não foi falha mecânica, nada disso. Doze
pilotos foram pro chão. Tem como explicar?
– Controle, posso entrar em contato quando estiver mais perto? Posso
precisar de uma mãozinha pra fazer um plano.
O controlador concordou, considerando a natureza extraordinária e inusitada
da situação. Happy voou por sobre Long Island. Seu celular tocou. Era Pepper. Ele

não atendeu.
• • • •
Rumando contra o fluxo de dados, Tony caminhou ao longo de uma trilha à
margem do rio feita de pacotes de dados perdidos. Quando seu pé tocava um
deles, o objeto tentava grudar-se nele com um sibilo fraco e pipocar de uns e
zeros que nunca mais seriam compilados. Havia luz no céu, mas ele não sabia de
onde vinha. Criaturas e máquinas aladas circulavam e voavam acima. Alguns eram
avatares, ele supôs, e alguns eram constructos emergentes dos espaços vazios
entre setores de um disco rígido que poderia existir em Bangalore ou Boston ou
Brisbane. Em qualquer lugar. Qualquer uma daquelas coisas poderia estar em
qualquer lugar no mundo real, mas estava tudo no mesmo lugar ali. O espaço não
significava nada. Tony imaginou quanto ele não via, quantos seres e avatares e
constructos invisíveis deviam existir em torno dele, experimentando o mundo
virtual numa linguagem construída com princípios que o cérebro humano não
poderia descrever. Independente do que aconteceria com o Tony Virtual, o Tony
Stark real nunca mais veria o mundo real com os mesmos olhos. Naquele lugar,
todas as dimensões se juntavam; entretanto, ele podia enquadrar e organizar
tudo como se fosse a Quarta-D.
– Pare de pensar tão alto – disse um avatar que passava. Era uma águamarinha com joias nos tentáculos e um cérebro humano no centro. – Todo mundo
tem problemas ontológicos – ela acrescentou, antes de sair flutuando. Um dos
tentáculos avançou para paralisar um peixe que surgiu no exato momento em que
o tentáculo o tocou. Tony estava prestes a dizer que águas-marinhas não faziam
uma coisa dessas, mas conteve-se. Lá Dentro, faziam sim.
Abruptamente, ele ficou cansado da situação. Se podia ser totalmente e
transformativamente diferente, ele queria que fosse. Do jeito que as coisas
estavam – pelo menos no quadro de referência que ele tinha –, não estava
diferente o bastante. Surreal, sim. Interessante, sim. Mas, no fim das contas, só
uma linguagem diferente para falar das mesmas coisas de sempre.
– Tony Virtual! – ele chamou. – Vamos resolver isso!
Não esperava uma resposta, e não teve nenhuma. Andou mais rápido.
– Pepper – disse. – Não sei se pode me ouvir, mas se eu sobreviver aos
próximos dez minutos, você bem que podia pedir uma pizza ou qualquer coisa.
Deixe pronta pra quando eu terminar de detonar o Zola.

– As pessoas não falam sozinhas por aqui – disse o acompanhante. Tony olhou
para a direita para ver se ele havia mudado. Não havia.
– Eu não estava falando sozinho.
O acompanhante fez que sim.
– Estava. Só não sabia disso. Quer levar uma mensagem à Quarta-D? Pode
fazer desse jeito. – Ele se curvou e pegou uma das pedras do pavimento, da trilha
à margem do rio. Depois de limpar os uns e zeros soltos, o acompanhante a
entregou a Tony. – Coloque sua mensagem aí e jogue no rio.
Tony olhou da pedra para o acompanhante para a pedra.
– Como? Falar com ela?
– Se quiser. Ou só pense, o que seja.
Tony resolveu pensar. Mesmo Lá Dentro, estava ciente das pressões sociais
normativas, pelo visto. Não queria que avatares em forma de água-viva que
passassem por ali o achassem esquisito. Depois jogou a pedra no rio. Ela não
pousou, exatamente; conforme se aproximou da superfície dos dados, foi sugada
para dentro do fluxo sem gerar uma onda sequer.
– Essa deve atravessar – disse o acompanhante. – Ou talvez não. Difícil
saber. O que você disse?
– Não sabe?
– Do jeito que você criptografou? De jeito nenhum. Não faço a menor ideia.
– Não sabia que eu tinha criptografado.
– Bom, criptografou. – Os dois foram andando. O acompanhante parou e
apontou para a frente, um pouco para o alto. – Aquele é o lugar que você está
procurando.
Olhando ao redor, Tony viu que haviam se afastado do rio. Ou que o rio
havia se afastado deles. Vai saber. Pararam na base de uma escadaria suave que
subia numa curva, espiralando até um ponto central no qual desaparecia.
– Lá em cima, é? Naquela parte em que não tem nada?
– Não vai ser nada quando você chegar lá – disse o acompanhante.
Tony não pôde evitar. Entortou os olhos.
– Claro que não. Certo. Obrigado pelo
tour.
– Sem problema. Só acabe com o Zola por mim, está bem?
Então o acompanhante se foi, e Tony começou a longa subida escadaria
acima.
  

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