quinta-feira, 26 de maio de 2016

CONSCRITO N° 83

Crônicas de Gelo e Fogo

 George R. R. Martin

As Crônicas de Gelo e Fogo ganharam vida como uma trilogia, mas já se expandiram para uma série que já conta com cinco obras publicadas1. Como J. R. R. Tolkien disse certa vez, um conto cresce durante a narrativa. O cenário dos livros é o grande continente de Westeros, um mundo ao mesmo tempo parecido e diferente do nosso, no qual as estações duram anos e, algumas vezes, décadas. Fazendo limite com o Mar do Poente, no lado ocidental do mundo conhecido, Westeros se estende das areias vermelhas de Dorne, no sul, até as montanhas geladas e campos congelados no norte, onde a neve cai mesmo durante os longos verões. Os Filhos da Floresta foram os primeiros habitantes conhecidos de Westeros, durante a Alvorada dos Dias: uma raça de baixa estatura que morava na floresta e esculpia estranhos rostos nos represeiros, árvores imensas e brancas como ossos. Então vieram os Primeiros Homens, que cruzaram o istmo vindos do continente maior do leste, com espadas de bronze e cavalos, e guerrearam com os Filhos da Floresta por séculos, antes de finalmente fazerem as pazes com a raça mais antiga e adotarem seus deuses antigos e sem nomes. O Pacto marcou o início da Era dos Heróis, quando os Primeiros Homens e os Filhos da Floresta partilharam Westeros, e uma centena de pequenos reinos surgiu e desapareceu. Outros invasores vieram. Os Ândalos cruzaram o Mar Estreito em navios, e com ferro e fogo varreram os reinos dos Primeiros Homens e tiraram os Filhos de suas florestas, derrubando muitos represeiros com seus machados. Trouxeram sua própria fé, venerando um deus com sete faces, cujo símbolo era uma estrela de sete pontas. Só no extremo norte, os Primeiros Homens, liderados pelos Stark de Winterfell, repeliram os recém-chegados. Em todos os outros lugares, os Ândalos triunfaram e ergueram seus próprios reinos. Os Filhos da Floresta minguaram e desapareceram, enquanto os Primeiros Homens passaram a se unir aos seus conquistadores por meio de casamentos. Os Roinares chegaram mil anos depois dos Ândalos, e não vieram como invasores, mas como refugiados, cruzando os mares em dez mil navios para escapar do poder crescente do Domínio de Valíria. Os senhores de Valíria governavam a maior parte do mundo conhecido; eram feiticeiros, grandes em sabedoria e, sozinhos entre todas as raças humanas, tinham aprendido a criar dragões e a dobrá-los a sua vontade. Quatro séculos antes do início de As Crônicas de Gelo e Fogo, no entanto, a Condenação se abateu em Valíria, destruindo a cidade em uma única noite. Depois disso, o grande Império Valiriano se desintegrou em discórdias, barbáries e guerras. Westeros, do outro lado do Mar Estreito, foi poupada do pior do caos que se seguiu. Com o tempo, apenas sete reinos restaram onde antigamente havia centenas – mas nem esses durariam muito tempo. Um descendente da perdida Valíria, chamado Aegon Targaryen, desembarcou na foz do Água Negra com um pequeno exército, suas duas irmãs (que também eram suas esposas) e três grandes dragões. Montados nas costas dos dragões, Aegon e suas irmãs venceram batalha após batalha e subjugaram seis dos sete reinos de Westeros pelo fogo, espada e tratados. O Conquistador reuniu as lâminas derretidas e retorcidas de seus inimigos caídos e as usou para fazer um trono monstruoso, gigantesco e farpado: o Trono de Ferro, do qual governou como Aegon, o Primeiro de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos. A dinastia fundada por Aegon e suas irmãs durou pelos trezentos anos seguintes. Outro rei Targaryen, Daeron II, mais tarde trouxe Dorne para o reino, unindo toda Westeros sob um único governante. Fez isso pelo casamento, não pela conquista, pois o último dragão morrera meio século antes. O Cavaleiro Andante ocorre nos últimos dias do reinado do Bom Rei Daeron, cerca de cem anos antes do início do primeiro livro de As Crônicas de Gelo e Fogo, com o reino em paz e a dinastia Targaryen no auge. Conta a história do encontro de Dunk, o escudeiro de um cavaleiro andante, e Egg, um garoto que é mais do que parece ser, e do grande torneio em Campina de Vaufreixo. A Espada Juramentada, o conto que se segue, continua a história deles cerca de um ano depois. E, finalmente, O Cavaleiro Misterioso2 traz Dunk e Egg ao centro de conspirações pelo Trono de Ferro.



O conto O Cavaleiro Andante foi publicado originalmente em Legends: Stories by the Masters of Modern Fantasy, em 1998; A Espada Juramentada, em Legends II: New Short Novels by the Masters of Modern Fantasy, em 2003; O Cavaleiro Misterioso foi publicado originalmente em Warriors, em 2010. Essas três antologias serão publicadas pela LeYa Brasil em breve. (N. do E.) 



O Cavaleiro Andante

 Um Conto dos Sete Reinos

A s chuvas da primavera tinham amolecido o solo, então Dunk não teve dificuldade em cavar a sepultura. Escolheu um lugar na encosta oeste de uma colina baixa, pois o velho sempre gostara de ver o pôr do sol. – Outro dia que se foi – suspirou – e quem sabe o que o amanhã nos trará, hein, Dunk? Bem, um certo amanhã trouxera chuvas que os deixaram ensopados até os ossos, o seguinte veio com ventos úmidos cortantes e o próximo trouxe um resfriado. No quarto dia, o velho estava fraco demais para cavalgar. E agora se fora. Apenas alguns dias antes, o velho estava cantando enquanto cavalgavam; a velha canção sobre ir para Vila Gaivota ver uma bela donzela, mas em vez de Vila Gaivota, cantava sobre Vaufreixo. Até Vaufreixo para ver a bela donzela, ei-ho, ei-ho, Dunk pensava com tristeza enquanto cavava. Quando o buraco estava profundo o bastante, ergueu o corpo do velho nos braços e o carregou até lá. O homem era pequeno e magro; despido da cota de malha, do elmo e do cinturão da espada, parecia não pesar mais do que um saco de folhas. Dunk era incrivelmente alto para sua idade, um garoto desajeitado, desgrenhado, de ossos grandes, de dezesseis ou dezessete anos (ninguém tinha muita certeza da idade correta), que estava mais próximo dos dois metros do que da altura mediana e tinha apenas começado a ganhar corpo. O velho com frequência elogiava sua força. Sempre fora generoso nos elogios. Era tudo o que tinha para dar. Dunk o colocou no fundo da cova e ficou parado sobre ele por algum tempo. O cheiro da chuva estava de novo no ar, e sabia que devia fechar o buraco antes que a chuva começasse a cair, mas era difícil jogar terra naquele velho rosto cansado. Devia ter um septão aqui para dizer algumas preces, mas ele só tem a mim. O velho ensinara a Dunk tudo o que sabia sobre espadas, escudos e lanças, mas nunca fora muito bom em lhe ensinar palavras. – Eu deixaria sua espada, mas ela vai enferrujar no solo – disse, por fim, como se estivesse se desculpando. – Os deuses lhe darão uma nova, imagino. Gostaria que não tivesse morrido, sor. – Fez uma pausa, inseguro do que mais precisava ser dito. Não conhecia prece alguma, nenhuma inteira pelo menos; o velho nunca fora muito de rezar. – Você foi um cavaleiro de verdade e nunca me bateu quando não mereci – finalmente conseguiu dizer. – Exceto aquela vez na Lagoa da Donzela. Foi o garoto da estalagem que comeu a torta que a viúva fez, não eu, eu disse para você. Não importa agora. Que os deuses o guardem, sor. – Chutou um pouco de terra no buraco e então começou a enchê-lo metodicamente, sem olhar para a coisa no fundo. Ele teve uma longa vida, Dunk pensou. Devia estar mais perto dos sessenta do que dos cinquenta anos, e quantos homens podem dizer isso? Pelo menos vivera para ver outra primavera. O sol descia no oeste quando alimentou os cavalos. Eram três: seu castrado de costas arqueadas, o palafrém do velho e Trovão, seu cavalo de guerra, que era cavalgado apenas em torneios e batalhas. O grande garanhão castanho não era tão ágil quanto antes, mas ainda tinha os olhos brilhantes e o temperamento violento, e era mais valioso do que tudo o que Dunk possuía. Se eu vendesse Trovão e a velha Castanha, e as selas e os estribos também, poderia ficar com prata suficiente para... Dunk franziu o cenho. A única vida que conhecia era a de um cavaleiro andante, cavalgando de fortaleza em fortaleza, aceitando trabalho desse e daquele senhor, lutando suas batalhas e comendo em seus salões até que a guerra acabava, e então seguindo em frente. Também havia torneios de tempos em tempos, embora com menos frequência, e ele sabia que alguns cavaleiros andantes viravam ladrões durante invernos improdutivos, embora o velho nunca tivesse feito isso. Eu podia encontrar outro cavaleiro andante que precisasse de um escudeiro para cuidar dos animais e limpar sua cota de malha, pensou, ou podia ir para alguma cidade, como Lannisporto ou Porto Real, e me juntar à Patrulha da Cidade. Ou então... Empilhara as coisas do velho sob um carvalho. A bolsa de tecido continha três veados de prata, dezenove moedas de cobre e uma granada lascada. Como a maioria dos cavaleiros andantes, a maior parte de sua riqueza material fora investida em cavalos e armas. Dunk possuía agora uma cota de malha da qual tirara a ferrugem mil vezes. Um meio elmo de ferro com protetor nasal largo e um amassado na têmpora esquerda. Um cinturão de espada de couro marrom rachado e uma espada longa com bainha de lã e couro. Um punhal, uma navalha, uma pedra de amolar. Grevas e gorjal, uma lança de guerra de madeira de freixo torneada de dois metros, com uma cruel ponta de ferro, e um escudo de carvalho com uma borda de metal cheia de marcas e ostentando o brasão de Sor Arlan de Centarbor: um cálice alado, prateado sobre marrom. Dunk olhou para o escudo, pegou o cinturão da espada e olhou novamente para o escudo. O cinto era feito para os quadris estreitos do velho. Nunca serviria em Dunk, nem a cota de malha. Ele amarrou a bainha em uma corda de cânhamo, prendeu ao redor da cintura e desembainhou a espada longa. A lâmina era reta e pesada, de bom aço forjado em castelo, o punho de couro macio enrolado em madeira, o botão, uma pedra negra lisa e polida. Simples como era, a espada ficava bem em sua mão, e Dunk sabia o quanto era afiada por ter trabalhado nela com a pedra de amolar e oleado muitas noites antes de dormir. Se ajusta ao meu punho tão bem quanto sempre se ajustou ao dele, pensou consigo mesmo, e há um torneio na Campina de Vaufreixo. Passomanso tinha uma marcha mais suave do que a velha Castanha, mas mesmo assim Dunk estava dolorido e cansado quando vislumbrou a estalagem adiante: um edifício alto de madeira e argamassa ao lado de um córrego. A cálida luz amarela que jorrava das janelas parecia tão convidativa que não conseguiu seguir em frente. Tenho três moedas de prata, disse para si mesmo, o suficiente para uma boa refeição e tanta cerveja quanto eu puder beber. Enquanto desmontava, um garoto nu saiu pingando do córrego e começou a se secar com uma capa de tecido grosseiro marrom. – Você é o cavalariço? – Dunk perguntou para ele. O menino não parecia ter mais do que oito ou nove anos, uma coisinha magrela com rosto descorado, os pés descalços cobertos de lama até a altura do tornozelo. O cabelo era a coisa mais estranha nele. Não tinha nenhum. – Quero que meu palafrém seja escovado. E aveia para os três. Pode cuidar deles? O menino olhou para ele com audácia. – Poderia. Se eu quisesse. Dunk franziu o cenho. – Não aceitarei isso. Sou um cavaleiro, farei com que entenda isso. – Você não parece um cavaleiro. – Todos os cavaleiros parecem iguais? – Não, mas também não parecem com você. O cinturão da sua espada é feito de corda. – Desde que segure minha bainha, serve. Agora cuide dos meus cavalos. Eu lhe darei um cobre se cuidar bem deles e um tapa na orelha se não o fizer. – Não esperou para ver como o cavalariço reagiria àquilo, deu as costas e empurrou a porta com o ombro. Naquela hora, esperava que a estalagem estivesse cheia, mas a sala comum estava quase vazia. Um jovem fidalgo em um elegante manto adamascado estava desacordado em uma das mesas, roncando levemente em uma poça de vinho derramado. Além dele, não havia mais ninguém. Dunk olhou ao redor, inseguro, até que uma mulher robusta, baixa e pálida saiu da cozinha e disse: – Sente onde quiser. É cerveja que deseja ou comida? – Ambos. – Dunk pegou uma cadeira perto da janela, bem longe do homem adormecido. – Há um bom cordeiro, assado com uma crosta de ervas, e alguns patos que meu filho caçou. O que prefere? Ele não comia em uma estalagem havia seis meses ou mais. – Ambos. A mulher gargalhou. – Bem, você é grande o bastante para isso. – Encheu uma caneca de cerveja e trouxe até a mesa dele. – Vai querer um quarto para a noite também? – Não. – Nada teria agradado mais a Dunk do que um colchão de palha macia e um teto sobre a cabeça, mas precisava ser cuidadoso com suas moedas. O chão serviria. – Alguma comida, alguma cerveja e sigo para Vaufreixo. Qual é a distância daqui? – Um dia de cavalgada. Vá para norte quando a estrada bifurcar perto do moinho queimado. Meu garoto está vendo seus cavalos ou fugiu de novo? – Não, está lá – Dunk falou. – Parece que vocês não têm clientela. – Metade da cidade se foi para ver o torneio. Os meus também teriam ido, se eu permitisse. Vão ficar com essa estalagem quando eu me for, mas o menino prefere ficar por aí contando vantagem com os soldados, e a menina é só suspiros e risadinhas cada vez que um cavaleiro aparece. Juro que não sei lhe dizer por quê. Cavaleiros são feitos da mesma matéria que os outros homens, e nunca soube de uma justa que mudasse o preço dos ovos. – Olhou para Dunk com curiosidade; a espada e o escudo dele diziam uma coisa, o cinturão da espada e a túnica de tecido rústico diziam outra. – Também vai participar do torneio? Ele tomou um gole de cerveja antes de responder. Tinha uma cor de avelã e era espessa na língua, do jeito que gostava. – Sim – confirmou. – Pretendo ser o campeão. – Ah, é? – A estalajadeira respondeu, com educação razoável. Do outro lado da sala, o fidalgo ergueu a cabeça da poça de vinho. Seu rosto tinha um matiz amarelado, doentio, sob o ninho de rato que era seu cabelo castanho-claro, e uma barba loura por fazer cobria-lhe o queixo. Ele esfregou a boca, pestanejou para Dunk e disse: – Sonhei com você. – A mão dele tremia enquanto ele sustentava o dedo. – Fique longe de mim, ouviu? Fique bem longe. Dunk o encarou, inseguro: – Meu senhor? A estalajadeira se inclinou para perto dele. – Não se incomode com aquele ali, sor. Tudo o que faz é beber e falar sobre seus sonhos. Verei sua comida. – Saiu apressada. – Comida? – O fidalgo fez a palavra parecer obscena. Levantou-se cambaleando, a mão na mesa para impedi-lo de cair. – Vou vomitar – anunciou. A frente de sua túnica estava coberta de velhas manchas vermelhas de vinho. – Queria uma puta, mas não há nenhuma por aqui. Todas foram para a Campina de Vaufreixo. Deuses sejam bons, preciso de um pouco de vinho. – Ele cambaleou instavelmente para fora da sala comum, e Dunk o ouviu subir as escadas, cantando em voz baixa. Uma triste criatura, Dunk pensou. Por que achou que me conhecia? Ponderou sobre aquilo por um momento, enquanto bebia sua cerveja. O cordeiro era melhor do que qualquer um que já havia comido, e o pato estava melhor ainda, cozido com cerejas e limões, nem de perto tão gorduroso quanto muitos outros. A estalajadeira trouxe ervilhas amanteigadas também e pão de aveia ainda quente do forno. É isso o que significa ser um cavaleiro, ele disse para si mesmo enquanto arrancava o último pedaço de carne do osso. Boa comida, cerveja sempre que eu quiser e ninguém me dando pancadas na cabeça. Ele tomou uma segunda caneca de cerveja com a comida, uma terceira para empurrar tudo para baixo e uma quarta porque não havia ninguém para lhe dizer que não podia, e, quando acabou, pagou a mulher com um veado de prata e ainda recebeu de volta um punhado de moedas de cobre. Era noite fechada quando Dunk saiu da estalagem. Seu estômago estava cheio e sua bolsa, um pouco mais leve, mas ele se sentia bem enquanto caminhava até os estábulos. Adiante, ouviu um cavalo relinchar. – Calma, rapaz – uma voz de menino disse. Dunk apertou o passo, franzindo o cenho. Encontrou o cavalariço montado em Trovão e vestindo a armadura do velho. A cota de malha era mais comprida do que ele, e tivera que inclinar o elmo para trás ou teria coberto seus olhos. Ele parecia totalmente concentrado, mas a cena era totalmente absurda. Dunk parou na porta do estábulo e gargalhou. O garoto levantou o olhar, corou, saltou para o chão. – Meu senhor, eu não pretendia... – Ladrão! – Dunk disse, tentando parecer severo. – Tire essa armadura e fique feliz por Trovão não ter dado um coice nessa cabeça tola. Ele é um cavalo de guerra, não um pônei de menino. O menino tirou o elmo e o jogou na palha. – Eu o cavalgaria tão bem quanto você – disse com a maior ousadia. – Feche a boca, não quero saber da sua insolência. Tire a cota de malha também. O que achou que estava fazendo? – Como posso falar com a boca fechada? – O garoto se contorceu para fora da cota de malha e a deixou cair. – Pode abrir a boca para responder – Dunk falou. – Agora pegue essa cota de malha, limpe a sujeira e coloque-a onde a encontrou. E o meio elmo também. Alimentou os cavalos como pedi? E escovou Passomanso? – Sim – o menino respondeu enquanto abanava a palha da cota de malha. – Você vai a Vaufreixo, não vai? Leve-me com você, sor. A estalajadeira o advertira daquilo. – E o que sua mãe diria disso? – Minha mãe? – o menino fez uma careta. – Minha mãe está morta, ela não diria nada. Dunk ficou surpreso. A estalajadeira não era mãe dele? Talvez fosse apenas o aprendiz dela. A cabeça de Dunk estava um pouco zonza da cerveja. – Você é órfão? – perguntou, inseguro. – Você é? – o menino retrucou. – Já fui – Dunk admitiu. Até o velho me aceitar. – Se me aceitar, posso ser seu escudeiro. – Não preciso de escudeiro – ele disse. – Todo cavaleiro precisa de escudeiro – o menino respondeu. – Você parece precisar de um mais do que a maioria. Dunk ergueu a mão ameaçadoramente. – E você parece que precisa de um safanão na orelha, é o que eu acho. Encha os sacos com aveia. Estou indo para Vaufreixo... sozinho. Se o menino ficou assustado, disfarçou bem. Ficou parado por um momento, desafiador, os braços cruzados, mas bem quando Dunk se preparava para desistir dele, o garoto se virou e foi pegar aveia. Dunk ficou aliviado. Uma pena que eu não possa... mas ele tem uma vida boa aqui na estalagem, melhor do que a que teria como escudeiro de um cavaleiro andante. Levá-lo não seria gentileza alguma. No entanto, ele ainda podia sentir o desapontamento do menino. Enquanto montava Passomanso e pegava a rédea de Trovão, Dunk decidiu que uma moeda de cobre poderia alegrá-lo. – Aqui, garoto, pela sua ajuda. – Jogou a moeda para ele com um sorriso, mas o cavalariço não fez tentativa alguma para pegá-la. A moeda caiu na terra, entre seus pés descalços, e foi ali que ele a deixou. Ele vai pegá-la assim que eu me for, Dunk disse para si mesmo. Virou o palafrém e cavalgou para fora da estalagem, levando os outros dois cavalos. As árvores estavam brilhantes com a luz da lua, e o céu estava sem nuvens e salpicado de estrelas. Mesmo assim, enquanto seguia estrada abaixo, podia sentir o cavalariço encarando suas costas, malhumorado e silencioso. As sombras da tarde estavam ficando mais compridas quando Dunk puxou as rédeas do cavalo na borda da ampla Campina de Vaufreixo. Sessenta pavilhões já estavam erguidos no campo gramado. Alguns eram pequenos, outros grandes; alguns quadrados, outros redondos; alguns eram de lona, outros de linho, ou de seda; mas todos eram de cores vivas, com longos estandartes esvoaçando nos mastros centrais, mais coloridos do que um campo de flores silvestres, com vermelhos fortes, amarelos solares, incontáveis tons de verde e azul, negros profundos, cinza e púrpura. O velho havia cavalgado com alguns daqueles cavaleiros; outros, Dunk conhecia das histórias contadas nas salas comuns e ao redor das fogueiras nos acampamentos. Embora nunca tivesse aprendido a mágica de ler e escrever, o velho fora implacável para lhe ensinar heráldica, testando seus conhecimentos com frequência enquanto viajavam. Os rouxinóis pertenciam a Lorde Caron da Marca, tão habilidoso com a harpa vertical quanto com uma lança. O veado coroado era de Sor Lyonel Baratheon, o Tempestade Risonha. Dunk localizou o caçador dos Tarly, o relâmpago púrpura da Casa Dondarrion, a maçã vermelha dos Fossoway. Ali rugia o leão dos Lannister, ouro sobre carmesim, e lá estava a tartaruga marinha verde-escura dos Estermont nadando em um fundo verde-claro. A tenda marrom embaixo do garanhão vermelho só podia pertencer a Sor Otho Bracken, chamado de Bracken, o Bruto, desde que matara Lorde Quentyn Blackwood três anos atrás durante um torneio em Porto Real. Dunk ouviu dizer que Sor Otho acertou o machado embotado com tanta força que enfiou o visor para dentro do elmo de Lorde Blackwood, juntamente com o rosto embaixo dele. Dunk viu alguns estandartes de Blackwood também, no lado oeste do campo, o mais distante possível de Sor Otho. Marbrand, Mallister, Cargyll, Westerling, Swann, Mullendore, Hightower, Florent, Frey, Penrose, Stokeworth, Darry, Parren, Wylde; parecia que cada casa senhorial do oeste e do sul enviara um cavaleiro ou dois a Vaufreixo para ver a bela donzela e enfrentar as listas em sua honra. Mas por mais que aqueles pavilhões fossem belos de se olhar, Dunk sabia que ali não havia lugar para ele. Um manto de lã puído seria todo o seu abrigo naquela noite. Enquanto os senhores e grandes cavaleiros jantavam capões e leitões, a refeição de Dunk seria um pedaço duro e viscoso de carne salgada. Sabia muito bem que se acampasse naquele campo espalhafatoso teria que suportar em silêncio tanto o escárnio quanto a zombaria descarada. Alguns talvez o tratassem com gentileza, mas de um jeito que seria até pior. Um cavaleiro andante precisa se agarrar com força ao seu orgulho. Sem isso, não era mais do que um mercenário. Tenho que conquistar meu lugar naquela companhia. Se eu lutar bem, algum senhor pode me aceitar em sua casa. Aí vou cavalgar em companhia nobre e comer carne fresca toda noite em um salão de castelo, e erguer meu próprio pavilhão em torneios. Mas primeiro preciso me sair bem. Relutante, virou as costas para os campos do torneio e levou seus cavalos até as árvores. Nos arredores do grande campo, a quase um quilômetro da vila e do castelo, encontrou um lugar onde uma curva no riacho formava uma lagoa profunda. Um juncal denso crescia na margem e um grande olmo frondoso se destacava acima de tudo. A grama primaveril estava tão verde quanto o estandarte de qualquer cavaleiro, e suave ao toque. Era um belo lugar, e ninguém o reclamara para si ainda. Esse será meu pavilhão, Dunk disse para si mesmo, um pavilhão coberto por folhas, mais verde do que o estandarte dos Tyrell e dos Estermont. Os cavalos vieram primeiro. Depois que haviam sido cuidados, Dunk tirou a roupa e entrou na lagoa para lavar a poeira da viagem. “Um verdadeiro cavaleiro é tão limpo quanto devoto”, o velho sempre dizia, insistindo para que se lavassem da cabeça aos pés cada vez que a lua virasse, quer cheirassem mal ou não. Agora que era um cavaleiro, Dunk jurou fazer o mesmo. Sentou-se nu sob o olmo enquanto se secava, desfrutando o calor do ar de primavera na pele, enquanto observava uma libélula que se movia preguiçosamente entre os juncos. Em alguns lugares é chamada de mosca-dragão. Por que teria esse nome?, ele se perguntou. Não parece em nada com um dragão. Não que Dunk já tivesse visto um dragão. Mas o velho já. Dunk ouvira a história meia centena de vezes: como Sor Arlan era apenas um garotinho quando seu avô o levara a Porto Real, e como haviam visto ali o último dragão um ano antes de sua morte. Era uma fêmea verde, pequena e atrofiada, as asas mirradas. Nenhum de seus ovos eclodira. “Alguns dizem que o Rei Aegon a envenenou”, o velho contava. “Aquele era o terceiro Aegon, não o pai do Rei Daeron, mas o que chamavam de Desgraça dos Dragões, ou Aegon, o Azarado. Ele tinha medo dos dragões, pois vira o animal devorar a própria mãe. Os verões têm sido mais curtos desde que o último dragão morreu, e os invernos mais longos e mais cruéis.” O ar começou a esfriar conforme o sol mergulhava abaixo das copas das árvores. Quando Dunk sentiu arrepios nos braços, bateu a túnica e a calça contra o tronco do olmo para tirar o grosso da sujeira e vestiu-as novamente. Na manhã seguinte, procuraria o mestre dos jogos e inscreveria seu nome, mas tinha outros assuntos de que precisava tratar naquela noite se quisesse ter esperança de lutar. Não precisava examinar seu reflexo na água para saber que não se parecia muito com um cavaleiro, então colocou o escudo de Sor Arlan nas costas para exibir o brasão. Prendendo os cavalos, Dunk deixou-os aparando a densa relva verde sob o olmo enquanto se dirigia a pé para o local do torneio. Em épocas normais, o campo servia como pastagem comunitária para o povo da vila de Vaufreixo, do outro lado do rio, mas agora estava transformada. Uma segunda vila nascera da noite para o dia – uma cidade de seda em vez de pedra, maior e mais bonita do que a irmã mais velha. Dúzias de comerciantes haviam erguido suas barracas ao longo do limite do campo, vendendo feltros e frutas, cintos e botas, peles e falcões, artefatos de barro, pedras preciosas, utensílios de peltre, temperos, penas e todo tipo de mercadorias. Malabaristas, titereiros e mágicos vagavam entre a multidão, exercitando seus ofícios... assim como as putas e os punguistas. Dunk mantinha uma mão cautelosa em suas moedas. Quando sentiu o cheiro de linguiça chiando sobre uma fogueira esfumaçada, sua boca se encheu de água. Comprou uma com uma moeda de cobre de sua bolsa e também uma caneca de cerveja para empurrá-la para baixo. Enquanto comia, viu um cavaleiro lutando contra um dragão, ambos de madeira pintada. A titereira que controlava o dragão também era bonita de se ver; muito alta, com a pele cor de oliva e o cabelo negro de Dorne. Era esguia como uma lança, sem seios que pudessem ser notados, mas Dunk gostou do seu rosto e do jeito como seus dedos faziam o dragão abocanhar e deslizar na ponta dos fios. Ele teria jogado um cobre para a garota se tivesse um para dar, mas nesse momento precisava de todas as suas moedas. Havia armeiros entre os comerciantes, como esperava que houvesse. Um tyroshi com uma barba azul bifurcada estava vendendo elmos ornamentados, coisas maravilhosas esculpidas em forma de aves e feras, gravadas com ouro e prata. Em outro lugar, encontrou um fabricante de espadas vendendo lâminas de aço baratas pela rua, e outro cujo trabalho era muito melhor, mas não era uma espada que lhe faltava. O homem de que ele precisava estava no fundo da fileira, com uma camisa de cota de malha e um par de manoplas articuladas de aço exibido na mesa à sua frente. Dunk inspecionou-os de perto. – Você faz um bom trabalho – disse. – Não há melhor. – Um homem atarracado, o ferreiro não tinha mais do que um metro e meio de altura, ainda que fosse tão largo quanto Dunk no peito e nos braços. Tinha uma barba negra, mãos imensas e nenhum traço de humildade. – Preciso de uma armadura para o torneio – Dunk lhe disse. – Uma boa cota de malha, com gorjal, grevas e elmo. – O meio elmo do velho cabia-lhe na cabeça, mas ele queria mais proteção para o rosto do que a que uma simples proteção nasal podia proporcionar. O armeiro o olhou de cima a baixo. – Você é dos grandes, mas já fiz armaduras para maiores. – Saiu de trás da mesa. – Ajoelhe, quero medir seus ombros. Sim, e esse pescoço grosso. – Dunk se ajoelhou. O armeiro esticou uma tira de couro cru com nós ao longo de seus ombros, grunhiu, passou a tira em volta da sua garganta, grunhiu de novo. – Levante o braço. Não, o direito. – Grunhiu uma terceira vez. – Agora, pode ficar em pé. – A parte interna da perna, a grossura da panturrilha e o tamanho de sua cintura suscitaram mais grunhidos. – Tenho algumas peças na carroça que podem servir para você – o homem disse quando terminou. – Nada enfeitado com ouro ou prata, veja bem, apenas bom aço, forte e simples. Faço elmos que parecem elmos, não porcos alados ou frutas estrangeiras estranhas, mas os meus servirão melhor se levar um golpe de lança no rosto. – É tudo o que quero – Dunk falou. – Quanto custa? – Oitocentos veados, porque hoje estou bondoso. – Oitocentos veados? – Era mais do que ele esperava. – Eu... eu podia trocar uma armadura velha, feita para um homem menor... um meio elmo, uma cota de malha... – Pate de Aço vende apenas seu próprio trabalho – o homem declarou –, mas talvez eu possa fazer uso do metal. Se não estiver muito enferrujado, aceito isso e armo você por seiscentos veados. Dunk podia implorar que Pate lhe desse a armadura em confiança, mas sabia o tipo de resposta que o pedido certamente teria. Viajara com o velho tempo suficiente para aprender que comerciantes eram notoriamente desconfiados com cavaleiros andantes, alguns dos quais pouco melhores do que ladrões. – Eu lhe darei duas moedas de prata agora e a armadura, e o resto das moedas pela manhã. O armeiro o estudou por um momento. – Duas moedas compram um dia. Depois disso, vendo meu trabalho para o próximo cliente. Dunk pegou os veados de sua bolsa e os colocou na mão calejada do armeiro. – Você receberá tudo. Pretendo ser um campeão aqui. – Pretende? – Pate mordeu uma das moedas. – E aqueles outros, suponho que tenham todos vindo aqui apenas para aplaudi-lo? A lua estava bem alta quando ele voltou seus passos na direção do olmo. Atrás dele, a Campina de Vaufreixo era um clarão de luzes de tochas. Os sons das músicas e risadas pairavam por sobre a relva, mas o humor de Dunk estava sombrio. Só conseguia pensar em um jeito de conseguir moedas para a armadura. E se fosse derrotado... – Uma vitória é tudo de que preciso – murmurou. – Isso não é esperar demais. Mesmo assim, o velho nunca teria esperado por isso. Sor Arlan não cavalgara em uma justa desde que fora desmontado pelo príncipe de Pedra do Dragão em um torneio em Ponta Tempestade, havia muitos anos. – Não é todo homem que pode se gabar de ter quebrado sete lanças contra o melhor cavaleiro dos Sete Reinos – ele dizia. – Nunca poderia esperar fazer algo melhor, então por que tentar? Dunk suspeitava que a idade de Sor Arlan tinha mais a ver com isso do que o príncipe de Pedra do Dragão, mas nunca ousara dizer nada. O velho tinha seu orgulho, mesmo no fim. Sou rápido e forte, ele sempre dizia. O que era verdade para ele não precisa ser verdade para mim, Dunk disse para si mesmo teimosamente. Estava atravessando um caminho de relva alta, ruminando algumas alternativas, quando viu o tremeluzir de uma tocha através dos arbustos. O que é isso? Dunk não parou para pensar. Logo estava com sua espada na mão, correndo pela relva. Irrompeu urrando e xingando, até parar de supetão ao ver o garoto ao lado da fogueira. – Você! – Abaixou a espada. – O que está fazendo aqui? – Cozinhando um peixe – disse o garoto careca. – Quer um pouco? – Quero dizer, como chegou aqui? Roubou um cavalo? – Viajei na traseira de uma carroça, com um homem que estava trazendo alguns cordeiros para o castelo para a mesa do senhor de Vaufreixo. – Bem, é melhor ver se ele já foi, ou então encontrar outra carroça. Não quero você aqui. – Não pode me obrigar a ir – o menino disse, impertinente. – Já tive o suficiente daquela estalagem. – Não vou aguentar mais insolências suas – Dunk avisou. – Eu devia jogá-lo sobre meu cavalo agora mesmo e levá-lo para casa. – Você precisaria cavalgar até Porto Real – o garoto comentou. – Perderia o torneio. Porto Real. Por um momento, Dunk se perguntou se estava sendo zombado, mas o menino não tinha como saber que ele nascera em Porto Real também. Outro infeliz da Baixada das Pulgas, provavelmente, e quem pode culpá-lo por querer sair daquele lugar? Sentiu-se um tolo parado ali, com a espada na mão, por causa de um órfão de oito anos. Embainhou a arma, olhando carrancudo para o menino, para que ele soubesse que não toleraria provocações. Eu devia pelo menos dar uma boa surra nele, pensou, mas o garoto parecia tão digno de pena que não pôde se convencer a bater nele. Olhou ao redor do acampamento. O fogo estava queimando alegremente dentro de um esmerado círculo de pedras. Os cavalos haviam sido escovados e as roupas estavam penduradas no olmo, secando sobre as chamas. – O que as roupas estão fazendo ali? – Eu as lavei – o garoto explicou. – E cuidei dos cavalos, acendi o fogo e peguei esse peixe. Eu teria erguido seu pavilhão, mas não encontrei nenhum. – Ali está meu pavilhão – Dunk apontou sobre a cabeça para os galhos do grande olmo que se erguia sobre eles. – Isso é uma árvore – o garoto falou, nem um pouco impressionado. – É todo pavilhão de que um verdadeiro cavaleiro precisa. Eu prefiro dormir sob as estrelas a uma tenda esfumaçada. – E se chover? – A árvore vai me abrigar. – As árvores têm goteiras. Dunk gargalhou. – De fato. Bem, verdade seja dita, não tenho moedas para um pavilhão. E é melhor virar esse peixe ou ele ficará queimado embaixo e cru em cima. Você nunca seria um ajudante de cozinha. – Seria se eu quisesse – o garoto disse, mas virou o peixe. – O que aconteceu com seu cabelo? – Dunk perguntou para ele. – Os meistres o rasparam. – Repentinamente constrangido, o garoto puxou o capuz do manto marrom-escuro, cobrindo a cabeça. Dunk ouvira dizer que faziam isso de vez em quando, para tratar piolhos, vermes ou certas doenças. – Está doente? – Não – o garoto respondeu. – Qual é seu nome? – Dunk – respondeu. O miserável garoto deu uma sonora gargalhada, como se aquela fosse a coisa mais engraçada que já ouvira. – Dunk? – disse. – Sor Dunk? Isso não é nome de cavaleiro. É diminutivo de Duncan? Era? O velho o chamava simplesmente de Dunk desde que era capaz de se lembrar, e ele não se lembrava muito de sua vida antes. – Duncan, sim – confirmou. – Sor Duncan de... – Dunk não tinha outro nome, nem casa alguma; Sor Arlan o encontrara vivendo como um selvagem nos bordéis e becos da Baixada das Pulgas. Nunca conhecera seu pai ou sua mãe. O que diria? “Sor Duncan da Baixada das Pulgas” não soaria muito cavalheiresco. Poderia usar Centarbor, mas e se lhe perguntassem onde era? Dunk nunca estivera em Centarbor, nem o velho falara muito sobre o lugar. Franziu o cenho por um momento, então exclamou: – Sor Duncan, o Alto. – Ele era alto, ninguém podia questionar isso, e soava poderoso. O pilantrinha não parecia pensar da mesma maneira. – Nunca ouvi falar de nenhum Sor Duncan, o Alto. – Por acaso você conhece todos os cavaleiros dos Sete Reinos? O menino olhou para ele com ousadia. – Os bons. – Sou tão bom quanto qualquer um. Depois do torneio, todos saberão disso. Você tem um nome, ladrão? O menino hesitou. – Egg – disse. Dunk não riu. A cabeça dele realmente parece um ovo3. Os garotinhos podem ser cruéis, e os adultos também. – Egg – disse –, eu devia lhe dar uma surra até sangrar e mandá-lo embora, mas a verdade é que não tenho pavilhão e tampouco tenho escudeiro. Se jurar fazer o que eu lhe disser, deixarei que me sirva durante o torneio. Depois disso, bem, veremos. Se eu decidir que vale a pena manter você, terá roupas no corpo e comida na barriga. As roupas podem ser de tecido grosso, e a comida, carne salgada e peixe salgado, e talvez um pouco de carne de veado de vez em quando, onde não houver guardas da floresta por perto, mas não passará fome. E prometo não bater em você a menos que mereça. Egg sorriu. – Sim, meu senhor. – Sor – Dunk o corrigiu. – E sou apenas um cavaleiro andante. – Ele se perguntou se o velho estava olhando por ele. Eu ensinarei a ele as artes da batalha, da mesma forma que me ensinou, sor. Parece um rapaz apto; talvez um dia eu possa torná-lo um cavaleiro. O peixe ainda estava um pouco cru por dentro quando o comeram, e o menino não removera todas as espinhas, mas mesmo assim o sabor era muitíssimo melhor do que o de carne salgada dura. Egg logo adormeceu ao lado da fogueira que apagava. Dunk deitou de costas perto dele, as grandes mãos atrás da cabeça, olhando para o céu noturno. Podia ouvir a música distante que vinha do terreno do torneiro, a quase um quilômetro de distância. As estrelas estavam por todo lado, milhares e milhares delas. Uma caiu enquanto ele a observava – um risco verde brilhante que cintilou através das trevas e desapareceu. Uma estrela cadente traz sorte para quem a vê, Dunk pensou. Mas os demais estão nos pavilhões agora, encarando a seda em vez do céu. Então a sorte é só minha. De manhã, despertou com o som de um galo cantando. Egg ainda estava ali, enrolado embaixo do segundo melhor manto do velho. Bem, o garoto não fugiu durante a noite. É um começo. Cutucou-o com o pé, para que despertasse. – De pé. Há trabalho a fazer. – O menino até que se levantou rápido, esfregando os olhos. – Ajude-me a selar Passomanso – Dunk lhe disse. – E quanto ao desjejum? – Temos carne salgada. Depois que terminarmos. – Eu preferia comer o cavalo – Egg falou. – Sor. – Vai comer meu punho se não fizer o que lhe digo. Pegue as escovas. Estão no alforje. Sim, esse mesmo. Escovaram juntos o pelo cor de canela do palafrém, colocaram a melhor sela de Sor Arlan no dorso do animal e prenderam bem. Egg era um bom trabalhador quando queria, Dunk percebeu. – Espero ficar fora a maior parte do dia – disse para o garoto enquanto montava. – Fique aqui e deixe o acampamento em ordem. Assegure-se de que outros ladrões não venham meter o nariz aqui. – Posso ficar com uma espada para espantá-los? – Egg perguntou. O garoto tinha olhos azuis, Dunk notou, muito escuros, quase púrpura. De algum modo, a cabeça careca os fazia parecer ainda maiores. – Não – Dunk respondeu. – Um punhal é o bastante. E é melhor estar aqui quando eu voltar, ouviu? Roube-me e fuja, que eu o caçarei, juro que sim. Com cães. – Você não tem cães – Egg afirmou. – Arranjo um – Dunk assegurou. – Só para você. – Virou Passomanso na direção do campo e se afastou a trote, esperando que a ameaça tivesse sido suficiente para manter a honestidade do garoto. Exceto pelas roupas que usava, pela armadura em seu alforje e pelo cavalo que montava, tudo o que Dunk possuía no mundo estava naquele acampamento. Sou um grande tolo em confiar tanto no garoto, mas isso não é mais do que o velho fez por mim, refletiu. A Mãe deve tê-lo mandado para mim, para que eu possa pagar minha dívida. Enquanto cruzava o campo, ouviu o bater de martelos vindo da margem do rio, onde carpinteiros estavam pregando as barreiras para justas e erguendo uma arquibancada. Alguns pavilhões novos também estavam sendo montados, enquanto os cavaleiros que haviam chegado antes dormiam para se recuperar das diversões da noite ou se sentavam para quebrar o jejum. Dunk podia sentir o cheiro da fumaça da lenha, assim como o do toicinho. Ao norte do campo corria o rio Molusqueiro, afluente do poderoso Vago. Depois do vau estreito estava a vila e o castelo. Dunk vira muitas vilas mercantis durante suas jornadas com o velho. Esta era mais bonita do que a maioria; as casas caiadas com os telhados de palha tinham um aspecto convidativo. Quando Dunk era menor, costumava se perguntar como seria viver em um lugar desses; dormir todas as noites com um teto sobre a cabeça e acordar toda manhã com as mesmas paredes ao seu redor. Pode ser que eu saiba em breve. Sim, e Egg também. Podia acontecer. Coisas estranhas aconteciam todos os dias. O Castelo de Vaufreixo era uma estrutura de pedra construída na forma de um triângulo, com torres redondas erguendo-se a nove metros de altura em cada ponta e muros grossos com ameias correndo entre eles. Estandartes laranja esvoaçavam nas ameias, mostrando o brasão com a faixa vincada e o sol branco de seu senhor. Homens de armas em mantos laranja e branco estavam ao lado do portão com alabardas, observando as pessoas irem e virem, parecendo mais interessados em flertar com uma bela leiteira do que em manter alguém do lado de fora. Dunk parou diante do homem mais baixo e barbudo que tomou por capitão e perguntou pelo mestre dos jogos. – Você está procurando Plummer, ele é intendente aqui. Vou lhe mostrar. No pátio, um cavalariço ficou com Passomanso. Dunk pendurou o escudo desgastado de Sor Arlan no ombro e seguiu o capitão da guarda até o fundo dos estábulos e depois até uma torre construída em um ângulo da muralha exterior. Degraus de pedra íngremes levavam ao adarve. – Veio inscrever o nome do seu mestre para as listas? – o capitão perguntou enquanto subiam. – É meu próprio nome que vou colocar. – Ah, é? – Estava o homem com um sorrisinho irônico? Dunk não tinha certeza. – É aquela porta. Deixarei você aqui e voltarei ao meu posto. Quando Dunk abriu a porta, o intendente estava sentado a uma mesa de armar, rabiscando com uma pena um pedaço de pergaminho. Tinha o cabelo grisalho ralo e um rosto estreito e encovado. – Sim? – ele disse, olhando para cima. – O que você quer? Dunk fechou a porta. – Você é Plummer, o intendente? Vim para o torneio. Para entrar nas listas. Plummer contraiu os lábios. – O torneio do meu senhor é uma disputa para cavaleiros. Você é um cavaleiro? Ele assentiu, pensando consigo mesmo se suas orelhas estariam vermelhas. – Um cavaleiro com um nome, suponho? – Dunk. – Por que dissera isso? – Sor Duncan, o Alto. – E de onde você seria, Sor Duncan, o Alto? – De todos os lugares. Fui escudeiro de Sor Arlan de Centarbor desde que eu tinha cinco ou seis anos. Este é o escudo dele. – Mostrou-o para o intendente. – Ele estava vindo para o torneio, mas pegou um resfriado e morreu, então vim em seu lugar. Ele me armou cavaleiro antes de morrer, com sua própria espada. – Dunk desembainhou a espada longa e a apoiou na mesa de madeira gasta entre eles. O mestre das listas não deu à lâmina mais do que uma olhada de relance. – É uma espada, com certeza. No entanto, nunca ouvi falar nesse Arlan de Centarbor. Você disse que era escudeiro dele? – Ele sempre disse que pretendia que eu fosse um cavaleiro, como ele era. Quando estava morrendo, pediu-me a espada longa e mandou que eu me ajoelhasse. Tocou-me uma vez no ombro direito, uma vez no esquerdo, disse algumas palavras e, quando me levantei, ele disse que eu era um cavaleiro. – Humpf. – O homem Plummer esfregou o nariz. – Qualquer cavaleiro pode armar um cavaleiro, é verdade, embora seja mais costumeiro ficar de vigília e ser ungido por um septão antes de fazer seus votos. Houve alguma testemunha dessa sua cerimônia? – Só um pisco, em cima de um espinheiro. Eu o ouvi enquanto o velho dizia as palavras. Ele me encarregou de ser um cavaleiro bom e verdadeiro, de obedecer aos sete deuses, defender os fracos e os inocentes, servir fielmente ao meu senhor e defender o reino com todas as minhas forças, e eu jurei que o faria. – Não duvido. – Plummer não se permitiu chamá-lo de sor, Dunk não pôde deixar de notar. – Preciso consultar Lorde Ashford. Você ou seu antigo mestre eram conhecidos de algum dos bons cavaleiros aqui reunidos? Dunk pensou por um momento. – Havia um pavilhão com o estandarte da Casa Dondarrion? O negro, com o relâmpago púrpura? – Trata-se de Sor Manfred, daquela casa. – Sor Arlan serviu o senhor seu pai em Dorne, há três anos. Sor Manfred pode se lembrar de mim. – Eu o aconselho a falar com ele. Se ele atestar sua identidade, traga-o aqui com você amanhã, neste mesmo horário. – Como quiser, senhor. – E se dirigiu para a porta. – Sor Duncan – o intendente o chamou. Dunk se virou. – Está ciente de que aqueles que são derrotados em torneio perdem as armas, a armadura e o cavalo para os vitoriosos, e de que é necessário resgate para tê-los de volta? – o homem disse. – Eu sei. – E tem moedas para pagar o resgate? Agora ele sabia que suas orelhas estavam vermelhas. – Não vou precisar de moedas – disse, rezando para que fosse verdade. Tudo de que preciso é uma vitória. Se eu ganhar minha primeira disputa, terei o cavalo e a armadura do perdedor, ou seu ouro, e poderei aguentar uma derrota. Desceu lentamente os degraus, relutante com o que precisava fazer a seguir. No pátio, agarrou um dos cavalariços pelo colarinho. – Preciso falar com o mestre dos cavalos de Lorde Ashford. – Eu o encontrarei para você. Os estábulos estavam frescos e escuros. Um garanhão cinzento indisciplinado tentou mordê- lo quando passou por ele, mas Passomanso só relinchou baixinho e encostou o focinho na mão de Dunk quando ele a levou até sua cabeça. – Você é uma boa garota, não é? – murmurou. O velho sempre dizia que um cavaleiro nunca deve amar um cavalo, já que era provável que alguns morreriam sob sua sela, mas nunca seguiu o próprio conselho. Dunk com frequência o via gastar o último cobre em uma maçã para a velha Castanha ou um punhado de aveia para Passomanso e Trovão. O palafrém fora a égua de montar de Sor Arlan, e o carregara incansavelmente por milhares de quilômetros, de um lado para o outro pelos Sete Reinos. Dunk sentia como se estivesse traindo uma velha amiga, mas que escolha tinha? Castanha era velha demais para valer alguma coisa, Trovão iria levá-lo às listas. Algum tempo passou antes que o mestre dos cavalos se dignasse a aparecer. Enquanto esperava, Dunk ouviu o retumbar de trompetes das muralhas e uma voz no pátio. Curioso, levou Passomanso pela porta do estábulo para ver o que estava acontecendo. Um grande grupo de cavaleiros e arqueiros montados entrava pelos portões, uma centena de homens no mínimo, cavalgando alguns dos cavalos mais esplêndidos que Dunk já vira. Algum grande senhor está chegando. Agarrou o braço de um cavalariço que passava correndo. – Quem são eles? O menino olhou para ele com estranheza. – Não vê os estandartes? – Puxou o braço para se libertar e saiu em disparada. Os estandartes... Quando Dunk virou a cabeça, uma rajada de vento ergueu a seda negra da flâmula no alto de uma vara alta, e o feroz dragão de três cabeças da Casa Targaryen pareceu abrir as asas, soltando fogo escarlate. O porta-estandarte era um cavaleiro alto, vestido com uma armadura de escamas brancas entalhadas em ouro e um manto branco puro fluindo dos ombros. Dois dos outros cavaleiros também estavam armados de branco da cabeça aos pés. Cavaleiros da Guarda Real com o estandarte do rei. Não era de estranhar que Lorde Ashford e seus filhos saíssem correndo pelas portas da fortaleza, e a bela donzela também, uma garota baixa, com cabelos louros e rosto rosado redondo. Ela não me parece tão bela, Dunk pensou. A garota titereira é mais bonita. – Garoto, largue esse pangaré e venha cuidar do meu cavalo. Um cavaleiro desmontara diante dos estábulos. Ele está falando comigo, Dunk percebeu. – Não sou um cavalariço, senhor. – Não é esperto o bastante para isso? – O interlocutor usava um manto negro debruado de cetim escarlate, mas por baixo seu traje era resplandecente como uma chama, todo vermelho, amarelo e dourado. Magro e empertigado como uma adaga, ainda que de altura mediana, devia ter quase a mesma idade de Dunk. Cachos de cabelo louro-prateado emolduravam um rosto esculpido e imperioso; testa alta e maçãs do rosto pronunciadas, nariz afilado e uma pele clara e lisa, sem manchas. Seus olhos eram de um violeta profundo. – Se não consegue cuidar de um cavalo, arranje-me algum vinho e uma prostituta bonita. – Eu... senhor, perdão, não sou um criado tampouco. Tenho a honra de ser um cavaleiro. – A cavalaria entrou em tristes dias – disse o principezinho, mas então um dos cavalariços apareceu correndo e ele se voltou para lhe entregar as rédeas de seu palafrém, um esplêndido baio puro-sangue. Dunk foi esquecido num instante. Aliviado, entrou novamente nos estábulos para esperar pelo mestre dos cavalos. Já se sentia desconfortável o bastante perto dos senhores em seus pavilhões, não tinha nada que falar com príncipes. Aquele belo jovem era um príncipe, disso não tinha dúvidas. Os Targaryen tinham o sangue da perdida Valíria, do outro lado do mar, e seus cabelos louro-prateados e olhos cor de violeta os diferenciavam dos homens comuns. Dunk sabia que o Príncipe Baelor era mais velho, mas o jovem bem que podia ser um de seus filhos: Valarr, que era com frequência chamado de “Jovem Príncipe” para distingui-lo de seu pai, ou Matarys, “Príncipe Ainda Mais Jovem”, como o bobo da corte do velho Lorde Swann o chamara uma vez. Havia outros principezinhos também, primos de Valarr e Matarys. O bom Rei Daeron tinha quatro filhos adultos, três deles com seus próprios filhos. A linhagem dos reis-dragões quase desaparecera durante a época de seu pai, mas era senso comum que Daeron II e seus filhos a tinham assegurado para sempre. – Você. Homem. Perguntou por mim. – O mestre dos cavalos de Lorde Ashford tinha um rosto vermelho que ficava ainda mais vermelho com a libré laranja e um jeito brusco de falar. – O que é? Não tenho tempo para... – Quero vender este palafrém – Dunk o interrompeu rapidamente, antes que o homem o mandasse embora. – É uma boa égua, segura no passo... – Não tenho tempo, já lhe disse. – O homem não deu mais do que um olhar de relance para Passomanso. – Meu senhor de Ashford não precisa disso. Leve-a até a cidade, talvez Henly lhe dê uma moeda de prata ou duas. – E com a mesma rapidez, deu as costas. – Obrigado, senhor. – Dunk disse antes que o homem partisse. – Senhor, o rei veio? O mestre dos cavalos riu para ele. – Não, graças aos deuses. Essa infestação de príncipes já é provação suficiente. Onde vou arrumar cocheiras para todos esses animais? E forragem? – Foi embora a passos largos, gritando com seus cavalariços. Quando Dunk deixou o estábulo, Lorde Ashford havia escoltado seus convidados principescos para o salão, mas dois dos cavaleiros da Guarda Real em suas armaduras brancas e mantos nevados ainda permaneciam no pátio, conversando com o capitão da guarda. Dunk parou diante deles. – Senhores, sou Sor Duncan, o Alto. – Prazer em conhecê-lo, Sor Duncan – respondeu o maior dos cavaleiros brancos. – Sou Sor Roland Crakehall, e este é meu irmão juramentado, Sor Donnel de Valdocaso. Os sete campeões da Guarda Real eram os guerreiros mais poderosos de todos os Sete Reinos, exceto, talvez, pelo príncipe herdeiro, o próprio Baleor Quebra-Lança. – Vieram para entrar nas listas? – Dunk perguntou ansiosamente. – Não seria adequado para nós lutarmos contra aqueles que juramos proteger – respondeu Sor Donnel, ruivo de cabelo e barba. – O Príncipe Valarr tem a honra de ser um dos campeões da Senhora Ashford – explicou Sor Roland –, e dois de seus primos pretendem desafiá-lo. O resto de nós veio apenas assistir. Aliviado, Dunk agradeceu os cavaleiros brancos pela gentileza e saiu pelos portões do castelo antes que o outro príncipe pensasse em abordá-lo. Três principezinhos, ponderou enquanto virava o palafrém na direção das ruas da vila de Vaufreixo. Valarr era o filho mais velho do Príncipe Baelor, segundo na linha de sucessão ao Trono de Ferro, mas Dunk não sabia quanto da fabulosa perícia do pai com a lança e a espada ele teria herdado. Sobre os outros Targaryen, sabia menos ainda. O que farei se tiver uma disputa contra um príncipe? Terei permissão de desafiar alguém de nascimento tão elevado? Não sabia a resposta. O velho com frequência dizia que ele tinha a cabeça tão dura quanto a muralha de um castelo, mas só agora percebia isso. Henly gostou bastante da aparência de Passomanso até ouvir Dunk dizer que queria vendê-la. Então tudo o que o cocheiro conseguia ver nela eram defeitos. Ofereceu trezentas moedas de prata. Dunk disse que precisava de três mil. Depois de muita discussão e impropérios, fecharam em setecentos e cinquenta veados de prata. Era um acordo mais próximo do preço inicial de Henly que do de Dunk, o que o fez se sentir perdedor no embate, mas o cocheiro não subiria o preço, então, no fim, não tinha outra escolha senão se render. Uma segunda discussão começou quando Dunk declarou que o preço não incluía a sela, e Henly insistiu que sim. Finalmente foi tudo acertado. Quando Henly saiu para pegar suas moedas, Dunk acariciou a crina de Passomanso e lhe disse para ser corajosa. – Se eu vencer, volto e compro você novamente, prometo. – Não tinha dúvida de que todos os defeitos do palafrém desapareceriam nos dias que se passariam até lá, e que ela valeria duas vezes o preço atual. O cocheiro lhe deu três peças de ouro e o resto em prata. Dunk mordeu uma das moedas de ouro e sorriu. Nunca provara ouro antes, nem o manuseara. – Dragões – o homem se referiu às moedas, uma vez que um dos lados era estampado com o dragão de três cabeças da Casa Targaryen. O outro trazia o busto do Rei. Duas das moedas que Henly lhe deu tinham o rosto do Rei Daeron; a terceira era mais antiga, bastante gasta e mostrava um homem diferente. O nome estava embaixo do busto, mas Dunk não conseguia ler. Viu que um pouco de ouro fora raspado das bordas. Ele disse isso a Henly, e em voz alta. O cocheiro resmungou, mas lhe deu mais algumas moedas de prata e um punhado de cobres para compensar o peso. Dunk lhe devolveu alguns cobres e acenou com a cabeça na direção de Passomanso. – Isso é para ela – falou. – Garanta que receba um pouco de aveia esta noite. E uma maçã também. Com o escudo no braço e a algibeira da velha armadura pendurada no ombro, Dunk saiu a pé pelas ruas ensolaradas da vila de Vaufreixo. O peso de todas aquelas moedas em sua bolsa o fazia se sentir estranho; por um lado, quase tonto e, por outro, ansioso. O velho nunca confiara nele com mais de uma moeda ou duas por vez. Poderia viver um ano com essas moedas. E o que farei quando acabar? Vender Trovão? Essa estrada terminaria na mendicância ou na vida do crime. Nunca mais terei essa chance, preciso arriscar tudo. Quando voltou chapinhando pelo vau para a margem sul do Molusqueiro, a manhã estava quase no fim e o terreno do torneio ganhava vida mais uma vez. Os vendedores de vinho e os fabricantes de linguiças faziam um comércio animado; um urso dançarino se movia ao som da música de seu mestre e, enquanto um cantor interpretava “O urso e a bela donzela”, artistas faziam malabarismos e os titereiros terminavam outra luta. Dunk parou para ver o dragão de madeira ser morto. Quando o boneco do cavaleiro cortou a cabeça do animal e a serragem vermelha se espalhou pela relva, ele deu uma gargalhada alta e jogou dois cobres para a garota. – Um pela noite passada – gritou. Ela apanhou as moedas no ar e lhe devolveu o sorriso mais doce que já vira. É para mim que ela sorri ou para as moedas? Dunk nunca estivera com uma garota, e elas o deixavam nervoso. Uma vez, há três anos, quando a bolsa do velho estava cheia depois de meio ano de serviços para o cego Lorde Florent, ele disse a Dunk que era hora de levá-lo a um bordel e torná-lo homem. Mas estava bêbado e, quando ficou sóbrio, não se lembrou do que dissera. Dunk ficara envergonhado demais para lembrá-lo. De qualquer modo, não tinha certeza se queria uma puta. Se não podia ter uma donzela bem-nascida como um cavaleiro de verdade, queria uma que pelo menos gostasse mais dele do que de sua prata. – Quer tomar uma caneca de cerveja? – perguntou para a titereira enquanto ela enfiava o sangue-serragem de volta no dragão. – Comigo, quero dizer? Ou uma linguiça? Experimentei a linguiça noite passada, e estava boa. São feitas de porco, acho. – Agradeço, senhor, mas tenho outro espetáculo. – A garota se levantou e correu até a mulher dornesa gorda e feroz que manejava o cavaleiro fantoche, enquanto Dunk ficou ali parado, sentindo-se estúpido. No entanto, gostou do jeito como ela correu. Uma garota bonita, e alta. Eu não teria que me ajoelhar para beijar essa aí. Ele sabia como beijar. Uma taverneira lhe mostrara uma noite em Lannisporto, havia um ano, mas era tão baixa que tivera que se sentar na mesa para alcançar os lábios dele. A lembrança fez suas orelhas queimarem. Que grande tolo ele era. Era na justa que tinha que pensar, não em beijos. Os carpinteiros de Lorde Ashford estavam caiando as barreiras de madeira acima da cintura que separariam os adversários. Dunk observou-os trabalhar por um tempo. Havia cinco pistas, dispostas de norte a sul, para que nenhum dos competidores cavalgasse com o sol nos olhos. Uma arquibancada de três níveis fora erguida no lado oriental das listas, com uma cobertura laranja para proteger os senhores e as senhoras da chuva e do sol. A maior parte se sentaria em bancos. Mas quatro cadeiras de espaldar alto foram erguidas no centro da plataforma para Lorde Ashford, a bela donzela e os príncipes visitantes. Na beira oriental do campo, um estafermo fora erguido e uma dúzia de cavaleiros o golpeava com suas lanças, fazendo o braço de madeira girar todas as vezes que atingiam o escudo maltratado suspenso em uma das pontas. Dunk observou o Bracken, o Bruto, atacar na sua vez, e em seguida Lorde Caron da Marca. Não monto tão bem como nenhum deles, pensou inquieto. Por todos os lados, homens treinavam a pé, atirando-se uns contra os outros com espadas de madeira, enquanto seus escudeiros ficavam gritando conselhos irreverentes. Dunk viu um jovem atarracado tentando resistir a um cavaleiro musculoso que parecia ágil e rápido como um gato da montanha. Ambos tinham a maçã vermelha dos Fossoway pintada nos escudos, mas o do homem mais jovem logo foi cortado e quebrado em pedaços. – Aqui está uma maçã que ainda não está madura – o mais velho disse enquanto acertava o elmo do outro. O Fossoway mais jovem estava com hematomas e sangrando quando desistiu, mas seu adversário quase não ofegava. Levantou o visor, olhou ao redor, viu Dunk e disse: – Você aí. Sim, você, o grandão. Cavaleiro do cálice alado. Está usando uma espada longa? – É minha por direito – Dunk disse na defensiva. – Sou Sor Duncan, o Alto. – E eu sou Sor Steffon Fossoway. Importa-se de treinar comigo, Sor Duncan, o Alto? Seria bom ter alguém novo com quem cruzar espadas. Meu primo ainda não está maduro, como pode ver. – Faça isso, Sor Duncan – instou o Fossoway espancado enquanto tirava o elmo. – Posso não estar maduro, mas meu bom primo está podre até o caroço. Arranque as sementes dele na pancada. Dunk balançou a cabeça. Por que aqueles fidalgos o envolviam em suas disputas? Não queria fazer parte daquilo. – Agradeço, sor, mas tenho questões a resolver. – Estava desconfortável por carregar tantas moedas. Quanto antes pagasse Pate de Aço e conseguisse sua armadura, mais feliz ficaria. Sor Steffon o olhou com desdém. – O cavaleiro andante tem questões. – Olhou em volta e encontrou outro possível oponente passando indolentemente ali perto. – Sor Grance, prazer em vê-lo. Venha treinar comigo. Sei cada truque fraco que meu primo Raymun aprendeu, e parece que Sor Duncan precisa voltar para suas andanças. Venha, venha. Dunk se afastou enrubescido. Ele nem tinha muitos truques, fracos ou não, e não queria que ninguém o visse lutar até o torneio. O velho sempre dizia que quanto melhor conhecesse seu adversário, mais fácil seria derrotá-lo. Cavaleiros como Sor Steffon tinham olhos aguçados para descobrir a fraqueza de um homem em um relance. Dunk era forte e rápido, e tinha o peso e o alcance a seu favor, mas não acreditava nem por um momento que suas habilidades se comparassem às dos demais. Sor Arlan lhe ensinara o melhor que podia, mas o velho nunca fora o melhor dos cavaleiros, nem quando jovem. Grandes cavaleiros não viviam em andanças, nem morriam na beira de uma estrada enlameada. Isso não vai acontecer comigo, Dunk prometeu. Vou mostrar que posso ser mais do que um cavaleiro andante. – Sor Duncan – o Fossoway mais jovem correu para alcançá-lo. – Eu não devia tê-lo incentivado a treinar com meu primo. Eu estava zangado com a arrogância dele, e você é tão grande que pensei... bem, foi errado de minha parte. Você não está de armadura. Ele teria quebrado sua mão se pudesse, ou um joelho. Ele gosta de espancar os homens no campo de treinamento para que estejam feridos e vulneráveis mais tarde, caso ele os encontre nas listas. – Ele não quebrou você. – Não, mas eu sou do sangue dele, embora ele seja do ramo principal da macieira, como nunca cansa de me lembrar. Sou Raymun Fossoway. – Muito prazer. Você e seu primo vão combater no torneio? – Ele vai, com certeza. Quanto a mim, gostaria de poder. Sou só um escudeiro por enquanto. Meu primo prometeu me armar cavaleiro, mas insiste que ainda não estou maduro. – Raymun tinha o rosto quadrado, nariz achatado e cabelo curto e lanoso, mas seu sorriso era contagiante. – Você tem uma aparência desafiadora, me parece. Pretende acertar o escudo de quem? – Não faz diferença – Dunk falou. Aquilo era o que se esperava que dissesse, embora fizesse toda a diferença do mundo. – Não vou entrar nas listas até o terceiro dia. – E até lá, alguns dos campeões já terão caído, sim – Raymun disse. – Bem, que o Guerreiro sorria para você, sor. – E para você. – Se ele é só um escudeiro, que direito tenho de ser um cavaleiro? Um de nós é um tolo. A prata na bolsa de Dunk tilintava a cada passo, mas ele poderia perder tudo em um piscar de olhos, e sabia disso. Mesmo as regras do torneio trabalhavam contra ele, tornando muito improvável que viesse a enfrentar um adversário pouco experiente ou fraco. Havia uma dúzia de formatos diferentes que um torneio podia seguir, de acordo com a vontade do senhor que o organizava. Alguns eram batalhas simuladas entre equipes de cavaleiros, outros eram selvagens combates corpo a corpo nos quais a glória ficava para o último cavaleiro a permanecer em pé. Enquanto os combates individuais eram a regra, os pares eram algumas vezes determinados por sorteio, outras pelo mestre dos jogos. Lorde Ashford estava organizando aquele torneio para celebrar o décimo terceiro dia do nome de sua filha. A bela donzela se sentaria ao lado do pai como principal rainha do amor e da beleza. Cinco campeões usando seus favores a defenderiam. Todos os outros deviam obrigatoriamente ser desafiantes, mas qualquer homem que derrotar um dos campeões tomaria seu lugar e ficaria como campeão, até que outro desafiante o derrotasse. No final de três dias de justas, os cinco que permanecessem determinariam se a bela donzela manteria a coroa do amor e da beleza, ou se outra a usaria em seu lugar. Dunk encarou as pistas cobertas de relva e as cadeiras vazias nas arquibancadas e ponderou suas chances. Uma vitória era tudo de que precisava; então poderia se intitular um dos campeões da Campina de Vaufreixo, mesmo que só por uma hora. O velho vivera quase sessenta anos e nunca fora campeão. Não é esperar demais, se os deuses forem bons. Recordou de todas as canções que ouvira, canções do cego Symeon Olhos de Estrela e do nobre Serwyn do Escudo-Espelhado, sobre o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, sobre Sor Ryam Redwyne e sobre Florian, o Bobo. Todos tinham alcançado vitórias contra inimigos muito mais terríveis do que qualquer um que ele fosse encarar. Mas eles eram grandes heróis, homens corajosos de nascimento nobre, exceto Florian. E o que eu sou? Dunk da Baixada das Pulgas? Ou Sor Duncan, o Alto? Supunha que descobriria a verdade em breve. Ergueu a algibeira com a armadura e virou os pés na direção das bancas dos comerciantes, em busca de Pate de Aço. Egg trabalhara corajosamente no acampamento. Dunk estava satisfeito; tinha ficado com um pouco de medo que o escudeiro fugisse novamente. – Conseguiu um bom preço pelo palafrém? – o garoto perguntou. – Como sabe que a vendi? – Você saiu cavalgando e voltou andando. Se ladrões o tivessem roubado, estaria mais zangado do que está. – Consegui o bastante para isso – Dunk pegou a nova armadura para mostrar ao menino. – Se chegar a ser um cavaleiro, vai precisar distinguir aço bom de ruim. Olhe aqui, isso é trabalho bom. Essa cota de malha é dupla, cada elo ligado a outros dois, vê? Dá mais proteção do que a simples. E o elmo, Pate o arredondou em cima, vê como ele se curva? Uma espada ou um machado vão escorregar por ele, em vez de penetrarem como em um elmo de topo plano. – Dunk colocou o grande elmo sobre a cabeça. – Como fico? – Não tem viseira – Egg afirmou. – Há buracos para o ar. Viseiras são pontos fracos. – Pate de Aço dissera isso. “Se soubesse quantos cavaleiros levaram uma flecha no olho quando ergueram a viseira para tomar um pouco de ar fresco, nunca ia querer uma”, ele contara para Dunk. – Também não tem espigão – Egg comentou. – É simples. Dunk tirou o elmo. – Simples está bom para aqueles como eu. Vê como o aço é brilhante? Será sua tarefa mantê-lo assim. Sabe como limpar a cota de malha? – Em um barril de areia – o garoto disse. – Mas você não tem um barril. Comprou um pavilhão também, sor? – Não consegui um preço tão bom. – O garoto é ousado demais; eu devia acabar com isso na pancada. No entanto, ele sabia que não faria isso. Gostava da ousadia. Ele precisava ser ousado. Meu escudeiro é mais corajoso do que eu, e mais esperto. – Fez um bom trabalho aqui, Egg. – Dunk comentou. – Amanhã, irá comigo. Dar uma olhada nos campos do torneio. Compraremos aveia para os cavalos e pão fresco para nós. Talvez um pedaço de queijo também; estão vendendo um bom queijo em uma das barracas. – Não preciso entrar no castelo, preciso? – Por que não? Um dia pretendo viver em um castelo. Espero conquistar um lugar acima do sal antes de morrer. O menino não disse nada. Talvez tenha receio de entrar no salão de um senhor, Dunk refletiu. Não é mais do que esperado. Ele superará isso com o tempo. Voltou a admirar sua armadura e a se perguntar quanto tempo a usaria. Sor Manfred era um homem magro com uma expressão amarga. Usava um sobretudo preto recortado com o relâmpago púrpura da Casa Dondarrion, mas Dunk teria se lembrado dele do mesmo modo, pela juba rebelde de cabelos louro-avermelhados. – Sor Arlan serviu seu pai quando ele e Lorde Caron expulsaram o Rei Abutre das Montanhas Vermelhas, sor – disse apoiado em um joelho. – Eu era um menino naquela época, mas era escudeiro dele. Sor Arlan de Centarbor. Sor Manfred fez uma careta. – Não. Não o conheço. Nem a você, garoto. Dunk lhe mostrou o escudo do velho. – Este era o brasão dele, o cálice alado. – O senhor meu pai levou oitocentos cavaleiros e quase quatro mil homens a pé para as montanhas. Não dá para esperar que eu me lembre de cada um deles, nem dos escudos que carregavam. Pode ser que estivesse conosco, mas... – Sor Manfred deu de ombros. Dunk ficou sem palavras por um instante. O velho foi ferido servindo seu pai, como pode ter esquecido dele? – Não permitirão que eu desafie, a menos que algum cavaleiro ou senhor ateste minha identidade. – E o que eu tenho com isso? – Sor Manfred falou. – Já lhe dei o suficiente do meu tempo, sor. Se voltasse para o castelo sem Sor Manfred, estaria perdido. Dunk olhou o relâmpago púrpura bordado na lã negra do sobretudo de Sor Manfred e disse: – Lembro-me de seu pai contar no acampamento como sua casa obteve esse símbolo. Uma noite de tempestade, enquanto o primeiro de sua linhagem levava uma mensagem pela Marca de Dorne, uma flecha matou o cavalo que ele montava e o atirou ao chão. Dois dorneses saíram das trevas com cotas de malha e elmos espigados. A espada dele quebrara embaixo do corpo quando caíra. Quando viu isso, pensou que estivesse condenado. Mas quando os dorneses se aproximaram para acabar com ele, um relâmpago estalou no céu. Era púrpura brilhante e ardente, e se dividiu, atingindo os dorneses e matando-os ali mesmo. A mensagem garantiu ao Rei da Tempestade a vitória sobre os dorneses, e em agradecimento ele elevou o mensageiro à nobreza. Foi o primeiro Lorde Dondarrion, que então adotou como armas um relâmpago púrpura bifurcado sobre um fundo negro salpicado de estrelas. Se Dunk pensou que a história impressionaria Sor Manfred, não podia estar mais enganado. – Todo camareiro e lacaio que já serviu meu pai escuta essa história cedo ou tarde. Saber disso não o torna um cavaleiro. Desapareça da minha vista, sor. Foi com o coração pesado que Dunk voltou ao Castelo de Vaufreixo, perguntando-se o que poderia dizer para que Plummer lhe garantisse o direito de desafiar. No entanto, o intendente não estava em seu aposento na torre. Um guarda lhe disse que ele poderia ser encontrado no Grande Salão. – Devo esperar aqui? – Dunk perguntou. – Quanto tempo ele vai demorar? – Como vou saber? Faça o que quiser. O Grande Salão não era tão grande quanto os salões costumavam ser, mas Vaufreixo era um castelo pequeno. Dunk entrou por uma porta lateral e viu o intendente imediatamente. Estava com Lorde Ashford e uma dúzia de outros homens no fundo do salão. Caminhou na direção deles, ao longo de uma parede na qual estavam penduradas tapeçarias de frutas e flores. – ... mais preocupado se fossem seus filhos, aposto – um homem zangado dizia quando Dunk se aproximou. Seu cabelo liso e a barba aparada eram tão claros que pareciam brancos na penumbra do salão, mas, quando chegou mais perto, Dunk viu que na verdade eram de uma pálida cor prateada com toques de ouro. – Daeron já fez isso antes – outro respondeu. Plummer estava posicionado de modo que impedia que Dunk visse quem falava. – Nunca devia ter ordenado que ele entrasse nas listas. Ele pertence a um campo de torneios tanto quanto Aerys ou Rhaegel. – Com isso você quer dizer que ele preferiria montar uma puta a um cavalo – o primeiro homem comentou. De constituição forte e poderosa, o príncipe (certamente era um príncipe) usava uma couraça de couro coberta com rebites de prata sob um pesado manto enfeitado com arminho. Cicatrizes de varíola marcavam suas bochechas, apenas parcialmente ocultas pela barba prateada. – Não preciso ser recordado das falhas do meu filho, irmão. Ele só tem dezoito anos. Pode mudar. Vai mudar, malditos sejam os deuses, ou juro que mando matá-lo. – Não seja tão idiota. Daeron é o que é, mas ainda é nosso sangue. Não tenho dúvidas de que Sor Roland vai transformá-lo, junto com Aegon. – Depois que o torneio acabar, talvez. – Aerion está aqui. É um lanceiro melhor do que Daeron, de qualquer modo, se é o torneio que o preocupa. – Dunk podia ver o homem que falava agora. Estava sentado na cadeira principal, com um maço de pergaminhos na mão e Lorde Ashford por sobre seu ombro. Mesmo sentado, parecia ser uma cabeça mais alto do que o outro, a julgar pelas longas pernas esticadas diante de si. Seu cabelo cortado curto era escuro e estava salpicado de cinza; o maxilar era forte, sem barba. Seu nariz parecia ter sido quebrado mais de uma vez. Embora estivesse vestido com simplicidade, com um gibão verde, manto marrom e botas gastas, havia um peso nele, uma impressão de poder e certeza. Ocorreu a Dunk que ele havia se intrometido em algo que nunca devia ter ouvido. É melhor ir embora e voltar mais tarde, depois que terminarem, decidiu. Mas já era tarde demais. De repente, o príncipe com barba prateada reparou nele. – Quem é você e o que pretende nos interrompendo? – exigiu saber com aspereza. – É o cavaleiro que nosso bom intendente estava esperando – o homem sentado falou, sorrindo para Dunk de uma maneira que sugeria que estivera ciente da presença dele todo o tempo. – Você e eu somos os intrusos aqui, irmão. Aproxime-se, sor. Dunk avançou, incerto do que era esperado dele. Olhou para Plummer, mas não obteve nenhuma ajuda ali. O intendente de cara encovada que fora tão enérgico no dia anterior agora estava em silêncio, estudando as pedras do chão. – Senhores – falou –, pedi a Sor Manfred Dondarrion que atestasse minha identidade para que eu pudesse entrar nas listas, mas ele se recusa. Diz que não me conhece. Mas Sor Arlan o serviu, eu juro. Tenho sua espada e seu escudo, eu... – Um escudo e uma espada não fazem um cavaleiro – declarou Lorde Ashford, um homem grande e calvo, com um rosto redondo e vermelho. – Plummer me falou de você. Mesmo que acreditemos que essas armas pertenceram a esse Sor Arlan de Centarbor, você poderia ter achado o homem morto e as ter roubado. A menos que tenha uma prova melhor do que diz, alguma coisa escrita ou... – Eu me lembro de Sor Arlan de Centarbor – comentou em voz baixa o homem sentado na cadeira principal. – Nunca ganhou um torneio, que eu saiba, mas nunca se envergonhou tampouco. Há dezesseis anos, em Porto Real, ele derrotou Lorde Stokeworth e o Bastardo de Harrenhal no corpo a corpo, e muitos anos antes, em Lannisporto, derrubou o próprio Leão Grisalho do cavalo. O leão não era tão grisalho naquela época, certamente. – Ele me falou sobre isso muitas vezes – Dunk falou. O homem alto o observou. – Então, sem dúvida, você se lembra do nome verdadeiro do Leão Grisalho. Por um momento, não havia coisa alguma na cabeça de Dunk. Mil vezes o velho me contou essa história, mil vezes, o leão, o leão, o nome dele, o nome dele, o nome dele... Estava quase entrando em desespero quando de repente lembrou. – Sor Damon Lannister! – gritou. – O Leão Grisalho! É Senhor do Rochedo Casterly agora. – É isso mesmo – disse o homem alto de modo agradável. – E entra nas listas de amanhã. – Sacudiu a pilha de pergaminhos na mão. – Como é possível que se lembre de um cavaleiro andante insignificante que teve a sorte de desmontar Damon Lannister há dezesseis anos? – disse o príncipe de barba prateada, franzindo o cenho. – Tenho o costume de aprender tudo o que posso sobre meus adversários. – Por que se dignaria a participar de uma justa com um cavaleiro andante? – Foi há nove anos, em Ponta Tempestade. Lorde Baratheon organizou um torneio de lanças para celebrar o nascimento de um neto. O sorteio fez de Sor Arlan meu oponente no primeiro confronto. Quebramos quatro lanças antes que eu o derrubasse. – Sete – insistiu Dunk –, e isso foi contra o Príncipe de Pedra do Dragão! – Nem bem as palavras tinham saído e ele desejou não tê-las dito. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo, ele podia ouvir o velho repreendendo. – Pois assim foi. – O príncipe com o nariz quebrado sorriu gentilmente. – As histórias crescem ao serem contadas, eu sei. Não pense mal de seu velho mestre, mas receio que tenham sido apenas quatro lanças. Dunk ficou grato de o salão estar escuro; sabia que suas orelhas estavam vermelhas. – Meu senhor – Não, isso é errado também. – Vossa Graça. – Caiu de joelhos e abaixou a cabeça. – Se diz que são quatro, não pretendi... eu nunca... O velho, Sor Arlan, costumava dizer que eu era tão cabeça-dura quanto uma muralha de castelo e lento como um auroque. – E forte como um auroque, pelo que posso ver – disse Baelor Quebra-Lança. – Nenhuma ofensa foi feita, sor. Levante-se. Dunk ficou em pé, perguntando-se se devia manter a cabeça baixa ou se tinha permissão para olhar um príncipe no rosto. Estou falando com Baelor Targaryen, Príncipe de Pedra do Dragão, Mão do Rei e herdeiro legítimo do Trono de Ferro de Aegon, o Conquistador. O que um cavaleiro andante poderia ousar dizer a uma pessoa dessas? – Vo-você lhe devolveu o cavalo e a armadura e não pediu resgate, eu me lembro – gaguejou. – O velho, Sor Arlan, disse-me que você era a alma da cavalaria e que um dia os Sete Reinos estariam seguros em suas mãos. – Rezo para que demore muitos anos ainda – o Príncipe Baelor disse. – Não – Dunk falou, horrorizado. Quase disse: Não quis dizer que o rei devia morrer, mas se calou a tempo. – Sinto muito, senhor. Vossa Graça, quero dizer. Muito depois se lembrou de que o homem atarracado com a barba prateada tinha se dirigido ao Príncipe Baelor como irmão. Ele é sangue do dragão também, que maldito idiota sou eu. Só podia ser o Príncipe Maekar, o mais novo dos quatro filhos do Rei Daeron. O Príncipe Aerys era dado aos livros, e o Príncipe Rhaegel era louco, dócil e doente. Nenhum deles cruzaria metade do reino para estar presente em um torneio, mas dizia-se que Maekar era um guerreiro formidável por mérito próprio, embora sempre à sombra de seu irmão mais velho. – Deseja entrar nas listas, é isso? – perguntou o Príncipe Baelor. – Essa decisão cabe ao mestre dos jogos, mas não vejo razão para negar sua participação. O intendente inclinou a cabeça. – Como queira, meu senhor. Dunk tentou balbuciar seus agradecimentos, mas o Príncipe Maekar o interrompeu. – Muito bem, sor, você está grato. Agora saia daqui. – Você precisa perdoar meu nobre irmão, sor – o Príncipe Baelor falou. – Dois de seus filhos se perderam no caminho para cá, e ele teme por eles. – As chuvas da primavera encheram muitos córregos – Dunk comentou. – Talvez os príncipes estejam apenas atrasados. – Não vim aqui para receber conselhos de um cavaleiro andante – o Príncipe Maekar declarou para seu irmão. – Você pode ir, sor – o Príncipe Baelor disse para Dunk, sem nenhuma indelicadeza. – Sim, meu senhor – fez uma mesura com a cabeça e se virou. Mas, antes que pudesse se afastar, o príncipe o chamou. – Sor, mais uma coisa: você não é do sangue de Sor Arlan? – Sim, senhor. Quero dizer, não. Não sou. O príncipe fez um sinal com a cabeça na direção do escudo maltratado, com o cálice alado desenhado. – Pela lei, apenas filhos legítimos podem herdar o escudo de armas de um cavaleiro. Precisa encontrar um novo emblema, sor, um brasão que seja seu. – Farei isso – Dunk assegurou. – Obrigado novamente, Vossa Graça. Lutarei corajosamente, o senhor verá. – Tão corajoso quanto Baelor Quebra-Lança, o velho dizia com frequência. Os vendedores de vinho e os fabricantes de linguiça estavam fazendo um comércio animado, e as putas perambulavam descaradamente entre as barracas e os pavilhões. Algumas eram bem bonitas, uma garota ruiva em particular. Dunk não pôde deixar de olhar para os seios dela, o jeito como eles se moviam embaixo da roupa solta enquanto ela caminhava. Pensou na prata em sua bolsa. Eu podia tê-la, se quisesse. Ela gostaria bastante do tilintar das minhas moedas; eu poderia levá-la para meu acampamento e tê-la a noite toda se quisesse. Ele nunca se deitara com uma mulher, e podia até morrer em sua primeira disputa. Torneios podiam ser perigosos... mas as putas podiam ser perigosas também. O velho lhe avisara a respeito. Ela poderia me roubar enquanto estivesse dormindo, e o que eu faria, então? Quando a garota ruiva olhou por sobre o ombro para ele, Dunk negou com a cabeça e se afastou. Encontrou Egg no espetáculo de títeres, sentado de pernas cruzadas no chão, com o capuz do manto puxado para a frente, de modo a esconder sua careca. O garoto tinha ficado com medo de entrar no castelo, o que Dunk atribuíra a partes iguais de timidez e vergonha. Ele não se acha digno de se misturar com senhores e senhoras, muito menos com grandes príncipes. Acontecera o mesmo com ele quando era menor. O mundo além da Baixada das Pulgas parecia tão assustador quanto excitante. Egg precisa de tempo, é só isso. Por ora, parecia ser mais gentil dar ao garoto alguns cobres e deixá-lo se divertir entre as barracas do que arrastá-lo contra a vontade até o castelo. Nessa manhã, os titereiros estavam encenando a história de Florian e Jonquil. A gorda mulher dornesa controlava Florian em sua armadura feita de retalhos, enquanto a garota controlava os fios de Jonquil. – Você não é um cavaleiro – ela dizia enquanto a boca do títere se movia para cima e para baixo. – Conheço você. É Florian, o bobo. – Eu sou, minha senhora – o outro títere respondia, ajoelhando-se. – Tão grande como nenhum outro bobo que já viveu, e tão grande como cavaleiro também. – Um bobo e um cavaleiro? – Jonquil perguntou. – Nunca ouvi falar de uma coisa dessas. – Doce senhora – Florian falou –, todos os homens são bobos, e todos os homens são cavaleiros, no que diz respeito às mulheres. Era um bom espetáculo, ao mesmo tempo triste e doce, com uma animada luta de espadas no final e um gigante bem pintado. Quando terminou, a mulher gorda foi para o meio da multidão recolher moedas enquanto a garota guardava os títeres. Dunk buscou Egg e foi até ela. – Senhor? – ela disse, com um olhar de soslaio e um meio sorriso. Era uma cabeça mais baixa do que ele, mas mesmo assim era mais alta do que qualquer outra garota que ele já vira. – Aquilo foi bom – Egg se entusiasmou. – Gosto como você faz os bonecos se mexerem, Jonquil e o dragão e tudo o mais. Vi um espetáculo de títeres no ano passado, mas eles se moviam de modo desajeitado. Os seus são mais suaves. – Obrigada – ela agradeceu educadamente ao menino. Dunk comentou: – Seus bonecos são bem esculpidos também. O dragão especialmente. Um animal temível. Você mesma que faz? Ela assentiu. – Meu tio esculpe, eu pinto. – Poderia pintar uma coisa para mim? Tenho moeda para pagar. – Deslizou o escudo do ombro e o virou para mostrar a ela. – Preciso pintar alguma coisa sobre o cálice. A garota olhou para o escudo e então para ele. – O que quer pintado? Dunk não havia pensado nisso. Se não o cálice alado do velho, então o quê? Sua cabeça estava vazia. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo. – Não... não tenho certeza. – Suas orelhas estavam ficando vermelhas, percebeu, infeliz. – Deve achar que sou um completo bobo. Ela sorriu. – Todos os homens são bobos, e todos os homens são cavaleiros. – Que cor de tinta você tem? – ele perguntou, esperando que aquilo lhe desse alguma ideia. – Posso misturar as tintas para fazer qualquer cor que desejar. O marrom do velho sempre parecera sem graça para Dunk. – O fundo deve ser da cor do pôr do sol – disse de repente. – O velho gostava do pôr do sol. E o símbolo... – Um olmo – Egg falou. – Um grande olmo, como aquele na lagoa, com tronco marrom e galhos verdes. – Sim – Dunk concordou. – Isso deve servir. Um olmo... mas com uma estrela cadente em cima. Pode fazer isso? A garota assentiu. – Dê-me o escudo. Vou pintá-lo esta noite mesmo e devolvo para você de manhã. Dunk o entregou. – Eu me chamo Sor Duncan, o Alto. – Sou Tanselle – ela deu uma risada. – Os garotos costumavam me chamar de Tanselle Alta Demais. – Você não é alta demais – Dunk replicou. – Você tem a altura certa para... – Percebeu o que estava prestes a dizer e corou furiosamente. – Para? – perguntou Tanselle, inclinando a cabeça de modo inquisidor. – Títeres – ele completou sem convicção. O primeiro dia do torneio amanheceu luminoso e sem nuvens. Dunk comprou um saco de comida, então puderam quebrar o jejum com ovos de gansa, pão frito e toicinho, mas, quando a refeição ficou pronta, ele descobriu que estava sem apetite. Sua barriga estava dura como uma pedra, embora soubesse que não cavalgaria naquele dia. O direito do primeiro desafio iria para os cavaleiros de nascimento mais elevado e de maior renome, para os senhores e seus filhos, e para os campeões de outros torneios. Egg tagarelou durante todo o desjejum, falando deste e daquele homem e de como eles se sairiam. Ele não estava brincando quando disse que conhecia todos os bons cavaleiros dos Sete Reinos, Dunk pensou pesaroso. Achava humilhante ouvir com tanta atenção as palavras de um órfão magricela, mas o conhecimento de Egg podia servir se fosse encarar um desses homens no torneio. O campo era uma massa agitada de pessoas, todas tentando abrir caminho a cotoveladas para se aproximar e conseguir uma vista melhor. Dunk era tão bom em cotoveladas quanto qualquer um, e maior do que maioria. Esgueirou-se até uma elevação a pouco mais de cinco metros da cerca. Quando Egg reclamou que tudo o que conseguia ver eram traseiros, Dunk colocou o garoto nos ombros. Do outro lado do campo, a arquibancada estava lotada de senhores e senhoras de nascimento elevado, algumas pessoas ricas da vila e um grupo de cavaleiros que decidira não competir naquele dia. Do Príncipe Maekar, nem sinal, mas Dunk reconheceu o Príncipe Baelor ao lado de Lorde Ashford. A luz do sol reluzia dourada na fivela que segurava seu manto e na fina coroa ao redor das têmporas, mas, fora isso, ele se vestia de modo muito mais simples do que a maioria dos outros senhores. Não parece um Targaryen, na verdade, com aquele cabelo escuro. Dunk fez o comentário a Egg. – Dizem que puxou à mãe – o garoto o recordou. – Ela era uma princesa dornesa. Os cinco campeões haviam erguido seus pavilhões no extremo norte das listas, com o rio atrás deles. Os dois menores eram laranja, e os escudos pendurados do lado de fora das portas mostravam o sol branco e a faixa vincada. Aqueles deviam ser os filhos de Lorde Ashford, Androw e Robert, irmãos da bela donzela. Dunk nunca ouvira outro cavaleiro falar das proezas deles, o que significava que provavelmente seriam os primeiros a cair. Ao lado dos pavilhões laranja havia um verde-escuro, muito maior. A rosa dourada de Jardim de Cima tremulava sobre ele, e o mesmo símbolo decorava o grande escudo verde do lado de fora da porta. – Aquele é Leo Tyrell, Senhor de Jardim de Cima – disse Egg. – Sei disso – Dunk respondeu, irritado. – O velho e eu servimos Jardim de Cima antes que você tivesse nascido. – Mal se lembrava daquele ano, mas Sor Arlan falava com frequência de Leo Espinholongo, como era chamado de vez em quando; um combatente sem par, apesar de toda a prata em seu cabelo. – Aquele ao lado da tenda deve ser Lorde Leo, o homem grisalho e magro vestindo verde e dourado. – Sim – concordou Egg. – Eu o vi uma vez em Porto Real. Não é alguém que você vai querer desafiar, sor. – Garoto, não preciso do seu conselho sobre quem desafiar. O quarto pavilhão era feito com pedaços de lona em forma de losango costurados, alternando vermelho e branco. Dunk não conhecia as cores, mas Egg disse que pertenciam a um cavaleiro do Vale de Arryn chamado Sor Humfrey Hardyng. – Ele ganhou um grande corpo a corpo na Lagoa da Donzela ano passado, sor, e derrotou Sor Donnel de Valdocaso e os lordes Arryn e Royce nas listas. O último pavilhão era do Príncipe Valarr. Era de seda negra, com uma fileira de pendões pontiagudos pendurados do teto como longas chamas vermelhas. O escudo no suporte era negro brilhante, decorado com o dragão de três cabeças da Casa Targaryen. Um dos cavaleiros da Guarda Real estava parado ao lado com a reluzente armadura branca contrastando com o negro do tecido da tenda. Vendo-o ali, Dunk se perguntou se um dos desafiantes ousaria tocar no escudo do dragão. Valarr era o neto do rei, afinal, e filho de Baelor Quebra-Lança. Ele não precisava se preocupar. Quando as trombetas tocaram para convocar os desafiantes, todos os cinco campeões da donzela foram chamados adiante para defendê-la. Dunk podia ouvir o murmúrio de animação na multidão quando os desafiantes apareceram um a um no extremo sul das listas. Arautos trovejavam os nomes dos cavaleiros, um de cada vez. Eles pararam diante da arquibancada para baixar as lanças em saudação a Lorde Ashford, ao príncipe Baelor e à bela donzela, então deram a volta até a extremidade norte do campo para selecionar seus oponentes. O Leão Grisalho de Rochedo Casterly bateu no escudo de Lorde Tyrell, enquanto seu herdeiro de cabelos dourados, Sor Tybolt Lannister, desafiou o filho mais velho de Lorde Ashford. Lorde Tully de Correrrio tocou no escudo com losangos de Sor Humfrey Hardyng; Sor Abelar Hightower bateu no de Valarr, e o Ashford mais jovem foi desafiado por Sor Lyonel Baratheon, o cavaleiro que chamavam de Tempestade Risonha. Os desafiantes trotaram de volta ao extremo sul das listas para esperar seus adversários: Sor Abelar, em prata e cor de fumo, com uma torre de vigia de pedra no escudo, coroada com fogo; os dois Lannister em carmesim, ostentando o leão dourado de Rochedo Casterly; Tempestade Risonha brilhava em samito, com um veado negro no peito, um escudo e um par de chifres de ferro no elmo; Lorde Tully usava um manto listrado de azul e vermelho, preso com uma truta de prata em cada ombro. Apontaram suas lanças de três metros e meio para o céu, as rajadas de vento batendo e puxando as flâmulas. No extremo norte do campo, escudeiros seguravam corcéis de batalha com armaduras brilhantes para os campeões montarem. Eles puseram os elmos, pegaram lanças e escudos, em esplendor equivalente ao de seus adversários: as sedas onduladas laranja dos Ashford, os losangos vermelho e branco de Sor Humfrey, Lorde Leo em seu cavalo com arreios de cetim verde com estampa de rosas douradas e, é claro, Valarr Targaryen. O cavalo do Jovem Príncipe era negro como a noite, para combinar com a cor de sua armadura, lança, escudo e arreios. No topo de seu elmo, havia um cintilante dragão de três cabeças, com as asas abertas, esmaltado em vermelho vivo; um dragão idêntico estava pintado na brilhante superfície negra de seu escudo. Cada um dos defensores tinha uma tira de seda cor de laranja amarrada no braço – um favor concedido pela bela donzela. Enquanto os campeões trotavam de volta a suas posições, a Campina de Vaufreixo ficou quase em silêncio. Então uma trombeta soou e a quietude se transformou em tumulto em um piscar de olhos. Dez pares de esporas douradas se dirigiram para os flancos de dez grandes cavalos de guerra, mil vozes começaram a berrar e a gritar, quarenta cascos com ferraduras bateram e amassaram a relva, dez lanças abaixaram e se equilibraram, o campo parecia tremer, e os campeões e desafiantes se juntaram em uma colisão dilacerante de madeira e aço. Em um instante, os cavaleiros tinham passado uns pelos outros, girando para outra investida. Lorde Tully cambaleou em sua sela, mas conseguiu se manter sentado. Quando o povo percebeu que todas as dez lanças haviam se quebrado, ouviu-se um grande rugido de aprovação. Era um presságio esplêndido para o sucesso do torneio, e uma prova das habilidades dos competidores. Os escudeiros entregaram lanças novas para os competidores, para substituir as quebradas que haviam sido jogadas de lado, e mais uma vez as esporas se enterraram profundamente. Dunk podia sentir a terra tremendo sob os pés. Sobre seus ombros, Egg gritava feliz e sacudia os braços magrelos. O Jovem Príncipe foi quem passou mais perto deles. Dunk viu a ponta de sua lança negra beijar a torre de vigia no escudo de seu adversário e escorregar para colidir com seu peito, no mesmo instante que a lança de Sor Abelar rompia em lascas contra a placa peitoral de Valarr. O garanhão cinzento com arreios cinza-prateados empinou com a força do impacto, e Sor Abelar Hightower foi levantado dos estribos e lançado violentamente ao chão. Lorde Tully também foi ao chão, derrubado por Sor Hum-frey Hardyng, mas levantou-se imediatamente e desembainhou a espada longa, enquanto Sor Humfrey jogou a lança de lado – inteira – e desmontou para continuar a luta a pé. Sor Abelar não foi tão vivaz. Seu escudeiro correu, soltou seu elmo e gritou por ajuda. Dois criados ergueram o aturdido cavaleiro pelos braços para levá-lo de volta ao seu pavilhão. Em outros locais do campo, os seis cavaleiros que permaneciam a cavalo partiram para a terceira investida. Mais lanças estilhaçadas, e, dessa vez, Lorde Leo Tyrell mirou a ponta com tal destreza que arrancou o elmo da cabeça do Leão Grisalho. Com o rosto descoberto, o Senhor de Rochedo Casterly ergueu a mão em saudação e desmontou, desistindo do confronto. A essa altura, Sor Humfrey já obrigara Lorde Tully a se render, mostrando-se tão habilidoso com a espada quanto com a lança. Tybolt Lannister e Androw Ashford cavalgaram um contra o outro mais três vezes antes que Sor Androw finalmente perdesse ao mesmo tempo o escudo, a montaria e o confronto. O Ashford mais jovem durou mais um tempo, quebrando nada menos do que nove lanças contra Sor Lyonel Baratheon, o Tempestade Risonha. Tanto campeão quanto desafiador perderam as selas no décimo ataque e se levantaram ao mesmo tempo para lutar, espada contra mangual. Finalmente, Sor Robert Ashford, já machucado, admitiu a derrota, mas na arquibancada seu pai parecia tudo menos decepcionado. Os dois filhos de Lorde Ashford tinham sido levados da fileira dos campeões, era verdade, mas tinham se comportado de maneira nobre contra dois dos melhores cavaleiros dos Sete Reinos. Tenho que me sair ainda melhor, Dunk pensou enquanto observava vencedor e vencido se abraçarem e saírem juntos do campo. Para mim, não é o suficiente lutar bem e perder. Preciso vencer pelo menos o primeiro desafio, ou perco tudo. Sor Tybolt Lannister e Tempestade Risonha tomariam agora seu lugar entre os campeões, substituindo os homens derrotados. Os pavilhões laranja já estavam vindo abaixo. A alguns metros dali, o Jovem Príncipe estava sentado à vontade em uma cadeira de acampar elevada diante de sua grande tenda negra. Estava sem o elmo. Tinha cabelos escuros como o pai, mas uma mecha brilhante atravessava sua cabeça. Um criado levou um cálice de prata e ele tomou um gole. Água, se for esperto, Dunk pensou. Vinho, se não for. Percebeu que estava se perguntando se Valarr realmente havia herdado parte da capacidade do pai ou se apenas teria enfrentado o oponente mais fraco. Uma fanfarra de trombetas anunciou que três novos desafiantes haviam entrado nas listas. Os arautos gritaram seus nomes. – Sor Pearse da Casa Caron, Senhor da Marca. Ele tinha uma harpa de prata decorando seu escudo, embora seu sobretudo tivesse estampa de rouxinóis. – Sor Joseth da Casa Mallister, de Guardamar. Sor Joseth ostentava um elmo alado; em seu escudo, uma águia prateada voava por um céu índigo. – Sor Gawen da Casa Swann, Senhor de Pedrelmo em Cabo da Fúria. Um par de cisnes, um negro e outro branco, lutavam furiosamente em seu brasão de armas. A armadura e o manto de Lorde Gawen, além dos arreios de seu cavalo, eram uma mistura de negro e branco também, indo até as tiras de sua bainha e lança. Lorde Caron, harpista, cantor e cavaleiro de renome, tocou a ponta de sua lança na rosa de Lorde Tyrell. Sor Joseth bateu nos losangos de Sor Humfrey Hardyng. E o cavaleiro em preto e branco, Lorde Gawen Swann, desafiou o príncipe negro com o guardião branco. Dunk esfregou o queixo. Lorde Gawen tinha mais idade que o velho, e o velho estava morto. – Egg, quem é o menos perigoso desses desafiantes? – perguntou para o garoto em seus ombros, que parecia saber tanto sobre esses cavaleiros. – Lorde Gawen – o menino disse imediatamente. – O oponente de Valarr. – Do Príncipe Valarr – Dunk corrigiu. – Um escudeiro deve manter uma língua cortês, garoto. Os três desafiantes tomaram seus lugares enquanto os três campeões montavam. Homens faziam apostas ao redor de Dunk e Egg e gritavam para seus escolhidos, encorajando-os. Mas Dunk tinha olhos apenas para o príncipe. Na primeira investida, ele atingiu o escudo de Lorde Gawen com um golpe de relance – a ponta embotada da lança escorregando exatamente como acontecera com Sor Abelar Hightower, só que dessa vez foi para o outro lado, no ar vazio. A lança de Lorde Gawen quebrou contra o peito do príncipe e, por um instante, Valarr parecia prestes a cair por um instante, antes de recuperar o equilíbrio. Da segunda vez que cruzou as listas, Valarr balançou a lança para a esquerda, mirando no peito do adversário, mas, em vez disso, acertou seu ombro. Mesmo assim, o golpe foi suficiente para fazer o velho cavaleiro perder a lança. Um braço se debateu em busca de equilíbrio e Lorde Gawen caiu. O Jovem Príncipe saltou da sela e desembainhou a espada, mas o homem caído fez sinal para que se afastasse e ergueu a viseira. – Desisto, Vossa Graça – gritou. – Boa luta. Os senhores na arquibancada fizeram eco, gritando: Boa luta! Boa luta!, enquanto Valarr se ajoelhava para ajudar o senhor grisalho a se levantar. – Não foi para tanto – Egg reclamou. – Fique quieto, ou pode voltar para o acampamento. Mais distante, Sor Joseth Mallister estava sendo carregado para fora do campo, inconsciente, enquanto o senhor da harpa e o senhor da rosa se atiravam um contra o outro energicamente com machados longos sem corte, para o deleite da multidão barulhenta. Dunk estava tão concentrado em Valarr Targaryen que mal os viu. Ele é um cavaleiro razoável, mas não mais do que isso, pegou-se pensando. Eu teria uma chance contra ele. Se os deuses forem bons, posso até mesmo derrubá-lo, e, uma vez a pé, meu peso e minha força dirão do que são capazes. – Pega ele! – Egg gritou alegremente, mexendo-se sobre as costas de Dunk em sua animação. – Pega ele! Acerta ele! É! Ele está bem ali, está bem ali! Parecia que estava torcendo por Lorde Caron. O harpista estava tocando um tipo diferente de música, agora, fazendo Lorde Leo retroceder mais e mais enquanto o aço cantava no aço. A multidão parecia igualmente dividida entre os dois, então vivas e maldições se misturavam livremente no ar da manhã. Lascas de madeira e tinta voavam do escudo de Lorde Leo enquanto o machado de Lorde Pearse arrancava as pétalas da rosa dourada, uma a uma, até que o escudo por fim se estilhaçou e rachou. Mas, quando isso aconteceu, o machado se prendeu por um instante na madeira... e o machado de Lorde Leo caiu sobre a haste da arma do adversário, quebrando-a a menos de trinta centímetros de sua mão. Lorde Leo jogou de lado o escudo quebrado e, de repente, era ele quem estava no ataque. Momentos depois, o cavaleiro harpista estava sobre um joelho, cantando sua rendição. Pelo restante da manhã e pela tarde adentro, houve mais do mesmo, enquanto os desafiantes entravam em campo de dois ou três e, algumas vezes, em cinco de uma vez. As trombetas soavam, os arautos gritavam seus nomes, cavalos de guerra disparavam, a multidão torcia, lanças se quebravam como gravetos e espadas ressoavam contra elmos e cotas de malha. Tanto plebeus quanto grandes senhores concordavam que fora um dia de justas esplêndido. Sor Humfrey Hardyng e Sor Humfrey Beesbury, um ousado jovem cavaleiro em listras amarelas e negras, com três colmeias em seu escudo, quebraram nada menos do que uma dúzia de lanças cada, em uma batalha épica que logo o povo começou a chamar de “A Batalha de Humfrey”. Sor Tybolt Lannister foi desmontado por Sor Jon Penrose e quebrou a espada na queda, mas lutou só com o escudo até vencer a disputa e permanecer campeão. O caolho Sor Robyn Rhysling, um velho cavaleiro grisalho com a barba salpicada de branco, perdeu o elmo para a lança de Lorde Leo no primeiro embate, mas se recusou a desistir. Três vezes mais cavalgaram um contra o outro, o vento chicoteava o cabelo de Sor Robyn enquanto as lascas de lanças quebradas voavam em seu rosto descoberto como adagas de madeira, o que Dunk achou ainda mais surpreendente quando Egg lhe contou que Sor Robyn perdera o olho por causa da lasca de uma lança quebrada em menos de cinco anos. Leo Tyrell era cavalheiresco demais para mirar outra lança na cabeça desprotegida de Sor Robyn, mas, mesmo assim, a teimosa coragem (ou seria tolice?) de Rhysling deixou Dunk assombrado. Por fim, o Senhor de Jardim de Cima acertou a placa peitoral de Sor Robyn com um golpe seco bem sobre o coração e o mandou às cambalhotas para o chão. Sor Lyonel Baratheon também lutou vários combates notáveis. Contra adversários menores, ele com frequência irrompia em gargalhadas estrondosas no momento que tocavam seu escudo, e ria todo o tempo em que estava montando, investindo e acertando-os nos estribos. Se os desafiantes tivessem qualquer tipo de espigão em seus elmos, Sor Lyonel os arrancava e os atirava à multidão. Os espigões eram ornamentados, feitos de madeira esculpida ou couro perfilado, e algumas vezes eram dourados, esmaltados ou até mesmo forjados em prata pura, então os homens que ele derrotava não apreciavam esse costume, embora isso o tornasse o grande favorito dos plebeus. Não demorou muito para que apenas homens sem espigões o desafiassem. Sor Lyonel derrotava os desafiadores um a um de forma ruidosa e às gargalhadas, Dunk achava que as honras do dia deviam ir para Sor Humfrey Hardyng, que humilhou catorze cavaleiros, todos formidáveis. Enquanto isso, o Jovem Príncipe ficava sentado do lado de fora de seu pavilhão negro, bebendo de seu cálice de prata e levantando-se de tempos em tempos para montar seu cavalo e derrotar outro cavaleiro sem importância. Tivera nove vitórias, mas parecia a Dunk que todas eram vazias. Ele está derrotando velhos e escudeiros recém-promovidos, e alguns senhores de nascimento elevado e poucas habilidades. Os homens realmente perigosos passam pelo seu escudo como se não o vissem. No fim do dia, uma fanfarra de metais anunciou a entrada de um novo desafiante nas listas. Ele cavalgava um grande corcel de guerra avermelhado, cujos arreios negros estavam cortados para revelar vislumbres de amarelo, carmesim e laranja por baixo. Enquanto se aproximava das arquibancadas para fazer sua saudação, Dunk viu o rosto sob a viseira levantada e reconheceu o príncipe que encontrara nos estábulos de Lorde Ashford. As pernas de Egg se apertaram ao redor de seu pescoço. – Pare com isso – Dunk retrucou, afastando-as. – Pretende me enforcar? – Príncipe Aerion Chamaviva – um arauto gritou – da Fortaleza Vermelha de Porto Real, filho de Maekar, Príncipe de Solarestival da Casa Targaryen, neto de Daeron, o Bom, Segundo de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos. Aerion usava o dragão de três cabeças no escudo, mas era apresentado em cores muito mais vivas do que o de Valarr; uma cabeça era laranja, uma amarela, uma vermelha, e as chamas que sopravam tinham o brilho da folha de ouro. Seu sobretudo era uma mistura de fumo e fogo entretecidos, e seu elmo enegrecido era encimado por um espigão de chamas vermelhas esmaltadas. Depois de uma pausa para baixar a lança para o Príncipe Baelor – uma pausa tão breve que foi quase negligente –, ele galopou até a extremidade norte do campo, passou pelo pavilhão de Lorde Leo e pelo de Tempestade Risonha, diminuindo apenas quando se aproximou da tenda do Príncipe Valarr. O Jovem Príncipe se levantou e ficou em pé rigidamente ao lado de seu escudo, e, por um momento, Dunk teve certeza de que Aerion pretendia desafiá-lo... mas então ele riu e avançou, e foi bater com força a ponta da lança contra os losangos de Sor Humfrey Hardyng. – Vamos lá, vamos lá, pequeno cavaleiro – cantarolou em uma voz alta e clara. – É hora de enfrentar o dragão. Sor Humfrey inclinou a cabeça rigidamente para seu adversário enquanto seu corcel de batalha lhe era trazido, e então o ignorou enquanto montava, colocava o elmo e pegava a lança e o escudo. Os espectadores ficaram em silêncio enquanto os dois cavaleiros assumiam suas posições. Dunk ouviu o crack quando o príncipe Aerion abaixou a viseira. A trombeta soou. Sor Humfrey saiu lentamente, ganhando velocidade, mas seu adversário instigou o corcel de guerra com força, usando as duas esporas, avançando rápido. As pernas de Egg apertaram o pescoço de Dunk de novo. – Mata ele! – gritou de repente. – Mata ele, ele está bem ali, mata ele, mata ele, mata ele! Dunk não sabia dizer para qual cavaleiro ele estava gritando. A lança do Príncipe Aerion, com ponta dourada e listras vermelhas, laranjas e amarelas, oscilou para o outro lado da barreira. Baixo, baixo demais, Dunk pensou no momento em que viu aquilo. Ele vai errar o cavaleiro e acertar o cavalo de Sor Humfrey; ele precisa levantar a lança. Então, com horror crescente, começou a suspeitar que Aerion não pretendia mudar o rumo da lança. Ele não pretende... No último instante possível, o garanhão de Sor Humfrey empinou para se afastar da ponta que vinha em sua direção, os olhos revirando de terror, mas era tarde demais. A lança de Aerion acertou o animal bem acima da armadura que protegia o esterno e explodiu pela parte de trás do pescoço em uma torrente de sangue brilhante. Gritando, o cavalo caiu de lado, fazendo a barreira de madeira em pedaços enquanto caía. Sor Humfrey tentou saltar fora, mas seu pé ficou preso no estribo e foi possível ouvir seu grito quando sua perna foi esmagada entre a cerca estilhaçada e o cavalo caído. Toda a Campina de Vaufreixo estava aos gritos. Homens correram para o campo para libertar Sor Humfrey, mas o garanhão, morrendo em agonia, escoiceou-os quando se aproximaram. Aerion, após contornar despreocupadamente a carnificina e seguir até o fim da lista, deu meia-volta no cavalo e regressou a galope. Ele também gritava, embora Dunk não conseguisse entender as palavras abafadas pelos gritos quase humanos do cavalo moribundo. Saltando da sela, Aerion desembainhou a espada e avançou até seu adversário caído. Seus próprios escudeiros e um de Sor Humfrey tiveram que puxá-lo de volta. Egg se contorceu nos ombros de Dunk. – Deixe-me descer – o garoto disse. – O pobre cavalo... deixe-me descer. Dunk também se sentia enjoado. O que eu faria se um destino desses se abatesse sobre Trovão? Um homem de armas com uma alabarda acabou com o garanhão de Sor Humfrey, encerrando os berros medonhos. Dunk deu meia-volta e abriu caminho entre a multidão. Quando alcançou o campo aberto, tirou Egg de seus ombros. O capuz do menino caíra para trás, e seus olhos estavam vermelhos. – Uma visão horrível, sim – ele disse ao garoto –, mas um escudeiro precisa ser forte. Temo que verá acidentes piores em outros torneios. – Não foi acidente – Egg disse, com a boca trêmula. – Aerion quis fazer aquilo. Você viu. Dunk franziu o cenho. Ele também teve essa impressão, mas era difícil aceitar que um cavaleiro pudesse ser tão pouco cavalheiresco, em especial um que era do sangue do dragão. – Vi um cavaleiro verde como a relva do verão perder o controle de sua lança – ele disse, teimoso. – E não quero ouvir mais nada sobre isso. As justas terminaram por hoje, eu acho. Venha, rapaz. Ele estava certo sobre o fim das competições do dia. Quando o caos foi controlado, o sol estava baixo no oeste, e Lorde Ashford ordenou uma pausa. Enquanto as sombras da noite se arrastavam pelo campo, uma centena de tochas foram acesas ao longo da fileira de comerciantes. Dunk comprou um corno de cerveja para ele e meio corno para o menino, para alegrá-lo. Vagaram por um tempo, ouvindo uma ária animada tocada com flautas e tambores, e assistiram a um espetáculo de títeres sobre Nymeria, a rainha guerreira com dez mil navios. Os titereiros tinham apenas dois navios, mas conseguiram encenar uma batalha naval vibrante do mesmo jeito. Dunk queria perguntar à garota Tanselle se ela terminara de pintar seu escudo, mas podia ver que ela estava ocupada. Vou esperar até que ela termine os espetáculos da noite, resolveu. Talvez ela tenha sede, então. – Sor Duncan – uma voz chamou atrás dele. E então, novamente: – Sor Duncan. – De repente, Dunk se lembrou de que aquele era seu nome. – Vi você entre os plebeus hoje, com este garoto nos ombros – disse Raymun Fossoway, que se aproximava, sorrindo. – De fato, vocês dois são difíceis de passar despercebidos. – O garoto é meu escudeiro. Egg, este é Raymun Fossoway. – Dunk teve que empurrar o menino para a frente e, mesmo assim, Egg abaixou a cabeça e encarou as botas de Raymun enquanto murmurava uma saudação. – Prazer em conhecê-lo, rapaz – Raymun disse descontraído. – Sor Duncan, por que não viu o torneio das arquibancadas? Todos os cavaleiros são bem-vindos lá. Dunk ficava mais à vontade entre plebeus e criados; a ideia de reivindicar um lugar entre senhores, senhoras e cavaleiros com terras o deixava desconfortável. – Não teria gostado de ter uma visão mais de perto daquela última disputa. Raymun fez uma careta. – Nem eu. Lorde Ashford declarou Sor Humfrey o vencedor e o premiou com o corcel de guerra do príncipe Aerion. Mesmo assim, ele não será capaz de continuar. Sua perna foi quebrada em dois lugares. O príncipe Baelor mandou seu próprio meistre cuidar dele. – Haverá outro campeão no lugar de Sor Humfrey? – Lorde Ashford tinha pensado em dar o lugar dele para Lorde Caron ou talvez para o outro Sor Humfrey, aquele que deu a Hardyng uma disputa esplêndida, mas o Príncipe Baelor lhe disse que não seria adequado remover o escudo e o pavilhão de Sor Humfrey dadas as circunstâncias. Acho que vão prosseguir com quatro campeões, em vez de cinco. Quatro campeões, Dunk pensou. Leo Tyrell, Lyonel Baratheon, Tybolt Lannister e o Príncipe Valarr. Vira o suficiente naquele primeiro dia para saber que tinha poucas chances contra os três primeiros. O que lhe deixava apenas... Um cavaleiro andante não pode desafiar um príncipe. Valarr é o segundo na linha de sucessão ao Trono de Ferro. É filho de Baelor Quebra-Lança, e seu sangue é o sangue de Aegon, o Conquistador, e do Jovem Dragão e do Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, e eu sou um garoto que o velho encontrou atrás de uma loja de vasos na Baixada das Pulgas. Sua cabeça doía só de pensar naquilo. – Quem seu primo pretende desafiar? – perguntou a Raymun. – Sor Tybolt, se tudo continuar como está. Eles combinam bem. De qualquer modo, meu primo fica atento a cada disputa. Se algum homem estiver ferido amanhã, ou mostrar sinais de exaustão ou fraqueza, Steffon será rápido em bater em seu escudo, pode contar com isso. Ninguém jamais pode acusá-lo de excesso de cavalheirismo. – Deu uma risada, como que para tirar a ferroada de suas palavras. – Sor Duncan, junta-se a mim para uma taça de vinho? – Tenho uma questão que preciso resolver – Dunk falou, desconfortável com a ideia de aceitar uma hospitalidade que não poderia retribuir. – Eu posso esperar aqui e pegar seu escudo quando o espetáculo de títeres tiver terminado, sor – disse Egg. – Vão encenar Symeon Olhos de Estrela e fazer a luta do dragão de novo também. – Pronto, vê? Sua questão já está resolvida, e o vinho nos espera – Raymun comentou. – É uma colheita especial da Árvore. Como pode recusar? Sem mais desculpas, Dunk não teve alternativa senão segui-lo, deixando Egg no espetáculo de títeres. A maçã da Casa Fossoway pairava sobre o pavilhão dourado onde Raymun servia o primo. Atrás do pavilhão, dois criados estavam regando uma cabra com mel e ervas sobre uma pequena fogueira. – Há comida também, se estiver com fome – Raymun disse em um tom negligente enquanto abria a aba para Dunk entrar. Um braseiro de carvão iluminava o interior e tornava o ar agradavelmente quente. Raymun encheu duas taças com vinho. – Dizem que Aerion está irado com Lorde Ashford por entregar seu corcel de guerra a Sor Humfrey – comentou enquanto servia –, mas aposto que foi o tio dele que o aconselhou a fazer isso. – Entregou uma taça para Dunk. – O Príncipe Baelor é um homem honrado. – E o Príncipe Brilhante não é? – Raymun deu uma gargalhada. – Não fique tão ansioso, Sor Duncan, não há ninguém aqui além de nós. Não é segredo que Aerion não vale nada. Graças aos deuses ele está bem abaixo na ordem da sucessão. – Realmente acredita que ele quis matar o cavalo? – Há dúvida disso? Se o Príncipe Maekar estivesse ali, teria sido diferente, eu lhe garanto. Se é verdade o que dizem, Aerion é todo sorriso e cavalheirismo enquanto seu pai está observando, mas quando não está... – Vi que a cadeira do Príncipe Maekar estava vazia. – Ele deixou Vaufreixo para procurar seus filhos, juntamente com Roland Crakehall da Guarda Real. Há uma história louca sobre cavaleiros assaltantes, mas aposto que o príncipe está só por aí, bêbado novamente. O vinho era bom e frutado, melhor que qualquer taça que já experimentara. Rolou a bebida na boca, engoliu e disse. – Que príncipe é esse? – O herdeiro de Maekar, Daeron. Recebeu esse nome por causa do rei. É chamado de Daeron, o Bêbado, embora não perto dos ouvidos de seu pai. O menino mais novo estava com ele também. Deixaram Solarestival, mas nunca chegaram a Vaufreixo. – Raymun esvaziou sua taça e a deixou de lado. – Pobre Maekar. – Pobre? – Dunk comentou, espantado. – O filho do rei? – É o quarto filho do rei – Raymun falou. – Não é exatamente ousado como o Príncipe Baelor, nem esperto como o Príncipe Aerys, nem gentil como o Príncipe Rhaegel. E agora tem de sofrer vendo seus próprios filhos à sombra dos filhos do irmão. Daerion é um beberrão, Aerion é vaidoso e cruel, e o terceiro filho era tão pouco promissor que foi mandado à Cidadela para se tornar um meistre, e o mais jovem... – Sor! Sor Duncan! – Egg entrou de repente, ofegante. O capuz caíra para trás e a luz do braseiro brilhava em seus grandes olhos escuros. – Tem que correr, ele a está machucando! Dunk se levantou de um salto, confuso. – Machucando? Quem? – Aerion! – o menino gritou. – Ele a está machucando! A titereira, rápido! – Dando meiavolta, disparou noite adentro. Dunk fez menção de segui-lo, mas Raymun segurou seu braço. – Sor Duncan. Ele falou Aerion. Um príncipe do sangue. Tome cuidado. Era um bom conselho, Dunk sabia. O velho teria dito o mesmo. Mas ele não podia ouvir. Libertou-se da mão de Raymun e saiu correndo para fora do pavilhão. Ouvia gritos vindos da fileira dos comerciantes. Egg estava quase fora de vista. Dunk correu atrás dele. Suas pernas eram compridas e as do menino, curtas; ele rapidamente cobriu a distância entre eles. Uma muralha de observadores se reunira em volta dos titereiros. Dunk abriu caminho entre eles aos empurrões, ignorando os xingamentos. Um homem de armas com libré real avançou para impedir sua passagem. Dunk colocou a mão enorme no peito do homem e o empurrou, fazendo-o cair de costas e se estatelar com o traseiro no chão. A barraca dos titereiros fora derrubada. A dornesa gorda estava chorando no chão. Um homem de armas estava com os títeres de Florian e Jonquil pendurados em uma mão, enquanto outro colocava fogo nos bonecos com uma tocha. Outros três homens abriam baús, espalhando mais bonecos pelo chão e pisando neles. O títere do dragão estava espalhado por todos os lados; uma asa quebrada ali, uma cabeça acolá, a cauda em três partes. E no meio de tudo isso estava o Príncipe Aerion, resplandecente em um gibão de veludo vermelho com mangas longas pendentes, torcendo o braço de Tanselle com as mãos. Ela estava de joelhos, implorando. Aerion a ignorava. Obrigou-a a abrir a mão e agarrou um de seus dedos. Dunk ficou parado ali, estupidamente, quase sem acreditar no que via. Então ouviu um crack, e Tanselle gritou. Um dos homens de Aerion tentou agarrá-lo e saiu voando. Três passos longos e Dunk agarrou o ombro do príncipe e o virou com violência. Sua espada e punhal foram esquecidos, assim como tudo o que o velho lhe ensinara. Seu punho levou Aerion ao chão, e a ponta de sua bota acertou a barriga do príncipe. Quando Aerion tentou pegar sua faca, Dunk pisou em seu punho e o chutou novamente, bem na boca. Teria chutado o rapaz até a morte bem ali, mas os homens do principezinho caíram sobre ele. Ele tinha um homem em cada braço e outro pendurado nas costas. Nem bem se libertava de um e outros dois estavam sobre ele. Finalmente, conseguiram jogá-lo no chão e prender seus braços e pernas. Aerion estava em pé de novo. A boca do príncipe estava ensanguentada. Enfiou um dedo nela. – Você afrouxou um dos meus dentes – reclamou. – Então vamos começar a quebrar todos os seus. – Afastou o cabelo dos olhos. – Você parece familiar. – Você me confundiu com um cavalariço. Aerion deu um sorriso vermelho. – Eu me lembro. Você se recusou a pegar meu cavalo. Por que jogou sua vida fora? Por esta puta? – Tanselle estava curvada no chão, segurando a mão fraturada. Ele lhe deu um empurrão com a ponta da bota. – Ela dificilmente vale isso. Uma traidora. O dragão nunca deve perder. Ele é louco, Dunk pensou, mas ainda é o filho do príncipe, e pretende me matar. Poderia ter rezado, se conhecesse uma prece até o fim, mas não havia tempo. Mal havia tempo para ficar com medo. – Nada mais a dizer? – Aerion perguntou. – Você me aborrece, sor. – Cutucou a boca ensanguentada de novo. – Pegue um martelo e quebre todos os dentes dele, Wate – ordenou. – Depois vamos abri-lo e mostrar para ele a cor de suas entranhas. – Não! – uma voz de menino disse. – Não o machuque! Deuses sejam bons, o menino, o tolo menino corajoso, Dunk pensou. Lutou contra os braços que o prendiam, em vão. – Controle a língua, garoto estúpido. Corra. Vão machucá-lo! – Não, não vão – Egg se aproximou. – Se fizerem isso, terão que responder ao meu pai. E ao meu tio também. Deixem-no ir, eu disse. Wate, Yorkel, vocês me conhecem. Façam o que eu digo. As mãos que seguravam seu braço esquerdo sumiram, e então as outras. Dunk não entendia o que estava acontecendo. Os homens de armas estavam retrocedendo. Um deles até mesmo se ajoelhou. Então a multidão se abriu para deixar Raymun Fossoway passar. Usava cota de malha e elmo, e tinha a mão sobre a espada. Seu primo, Sor Steffon, logo atrás, já estava com a lâmina desembainhada e com eles estava meia dúzia de homens de armas com o símbolo da maçã vermelha costurado no peito. O Príncipe Aerion não prestou atenção neles. – Patifezinho imprudente – disse para Egg, cuspindo um punhado de sangue nos pés do menino. – O que aconteceu com seu cabelo? – Eu cortei, irmão – Egg falou. – Não queria parecer com você. O segundo dia do torneio estava carregado de nuvens, com rajadas de vento soprando do oeste. A multidão deve ser menor em um dia assim, Dunk pensou. Teria sido mais fácil encontrar um lugar próximo da cerca para ver as justas mais de perto. Egg poderia ter sentado no parapeito, enquanto eu ficaria em pé atrás dele. Em vez disso, Egg tinha um lugar na arquibancada, vestido em sedas e peles, enquanto a vista de Dunk estava limitada a quatro paredes da cela da torre onde os homens de Lorde Ashford o haviam confinado. A câmara tinha uma janela, mas dava para o lado errado. Mesmo assim, Dunk empoleirou-se no assento da janela quando o sol nasceu e olhou com melancolia para a vila, os campos e a floresta. Tinham lhe tirado o cinturão de cânhamo da espada, e a espada e a adaga com ele, e haviam levado sua prata também. Esperava que Egg ou Raymun se lembrassem de Castanha e Trovão. – Egg – murmurou baixinho. Seu escudeiro, o pobre garoto tirado das ruas de Porto Real. Algum cavaleiro já fora tão idiota? Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo e lento como um auroque. Não tivera permissão para falar com Egg desde que os soldados de Sor Ashford prenderam todos no espetáculo de títeres. Nem com Raymun, nem com Tanselle, nem com ninguém, nem mesmo com o próprio Lorde Ashford. Ele se perguntava se veria algum deles novamente. Pelo que sabia, pretendiam mantê-lo naquele quartinho até que morresse. O que eu achei que aconteceria?, perguntou a si mesmo, amargo. Bati no filho de um príncipe e chutei seu rosto. Sob aquele céu cinzento, os enfeites flutuantes dos senhores de nascimento elevado e dos grandes campeões não pareciam tão esplêndidos quanto no dia anterior. O sol, emparedado atrás das nuvens, não pincelaria os elmos de aço com brilho, nem faria as cinzelagens de ouro e prata cintilarem e reluzirem, mas mesmo assim Dunk desejava estar entre a multidão para assistir às justas. Seria um bom dia para os cavaleiros andantes, para homens em cotas de malha simples e cavalos sem arreios. Ao menos podia ouvi-los. As cornetas dos arautos eram bem audíveis, e de tempos em tempos o rugir da multidão lhe dizia que alguém caíra, ou se erguera, ou fizera algo especialmente ousado. Ouvia um fraco ruído de cascos também e, muito de vez em quando, o choque de espadas ou a ruptura de uma lança. Dunk estremecia sempre que ouvia este último som; lembrava-lhe o barulho que o dedo de Tanselle fizera quando Aerion o quebrou. Havia outros ruídos também, mais próximos dele: passos no corredor do lado de fora, a batida de cascos no pátio abaixo, gritos e vozes das muralhas do castelo. Algumas vezes, eles se sobrepunham aos do torneio. Dunk supunha que fosse melhor assim. “Um cavaleiro andante é o tipo mais verdadeiro de cavaleiro, Dunk”, o velho lhe dissera havia muito tempo. “Outros cavaleiros servem os senhores que os sustentam, ou em nome daqueles de quem têm terras, mas nós servimos quem queremos, homens em cujas causas acreditamos. Todo cavaleiro jura proteger os fracos e inocentes, mas nós mantemos melhor nosso voto, acho.” Estranho o quanto essa lembrança parecia forte agora. Dunk quase se esquecera daquelas palavras. E talvez o velho também as tenha esquecido no fim. A manhã se transformou em tarde. Os sons distantes do torneio começaram a diminuir até morrer. O crepúsculo começou a penetrar na cela, mas Dunk continuou sentado no assento da janela, olhando a escuridão que crescia e tentando ignorar a barriga vazia. E então ouviu passos e um retinir de chaves de ferro. Levantou-se e ficou em pé enquanto a porta se abria. Dois guardas entraram, um deles segurando uma lamparina a óleo. Uma criada vinha atrás com uma bandeja de comida. Por fim, vinha Egg. – Deixem a lamparina e a comida e saiam – o garoto disse para eles. Fizeram como ordenado, embora Dunk percebesse que deixaram a pesada porta de madeira entreaberta. O cheiro de comida fez com que percebesse o quanto estava faminto. Havia pão quente e mel, uma tigela de purê de ervilha, um espeto de cebolas assadas e carne bem passada. Sentou-se ao lado da bandeja, partiu o pão com as mãos e enfiou um pedaço na boca. – Não tem faca – observou. – Eles acharam que eu iria esfaqueá-lo, garoto? – Não me disseram o que pensaram – Egg usava um gibão justo de lã negra com a cintura pregueada e mangas compridas forradas com cetim vermelho. No peito tinha costurado o dragão de três cabeças da Casa Targaryen. – Meu tio diz que devo humildemente implorar seu perdão por tê-lo enganado. – Seu tio – Dunk falou. – Quer dizer o Príncipe Baelor. O menino parecia extremamente infeliz. – Nunca pretendi mentir. – Mas mentiu. Sobre tudo. Começando com seu nome. Nunca ouvi falar de um Príncipe Egg. – É apelido de Aegon. Meu irmão Aemon me chamava de Egg. Ele está na Cidadela agora, estudando para ser meistre. E Daeron algumas vezes me chama de Egg também, assim como minhas irmãs. Dunk levantou o espeto e mordeu um pedaço de carne. Cabra temperada com alguma especiaria nobre que jamais provara antes. A gordura escorreu por seu queixo. – Aegon – repetiu. – É claro que tinha que ser Aegon. Como Aegon, o Dragão. Quantos Aegons foram reis? – Quatro – o menino disse. – Quatro Aegons. Dunk mastigou, engoliu e partiu mais um pouco de pão. – Por que fez isso? Era alguma brincadeira para fazer de tolo o estúpido cavaleiro andante? – Não. – Os olhos do menino se encheram de lágrimas, mas ele ficou parado corajosamente. – Eu devia ser escudeiro de Daeron. Ele é meu irmão mais velho. Aprendi tudo o que tinha que aprender para ser um bom escudeiro, mas Daeron não é um cavaleiro muito bom. Ele não queria competir no torneio, então, depois que deixamos o Solarestival, ele escapou da nossa escolta, só que em vez de voltar para trás foi direto para Vaufreixo, achando que nunca nos procurariam nessa direção. Foi ele quem raspou minha cabeça. Ele sabia que meu pai enviaria homens atrás de nós. Daeron tem o cabelo comum, em tom castanho-claro, nada especial, mas o meu é como o de Aerion e o de meu pai. – O sangue do dragão – Dunk comentou. – Cabelo louro-prateado e olhos púrpura, todo mundo sabe disso. – Cabeça-dura como uma muralha de castelo, Dunk. – Sim. Então Daeron o cortou. Ele pretendia nos manter escondidos até que o torneio acabasse. Só que então você me confundiu com um cavalariço e... – Ele abaixou os olhos. – Não me importava se Daeron lutasse ou não, mas eu queria ser o escudeiro de alguém. Sinto muito, sor. Realmente sinto. Dunk olhou para ele pensativo. Sabia como era querer tanto algo a ponto de ser capaz de dizer uma mentira monstruosa só para chegar perto do que se deseja. – Pensei que você fosse como eu – ele disse. – Talvez seja. Só que não do jeito que pensei. – Nós dois somos de Porto Real – o menino falou, esperançoso. Dunk teve que rir. – Sim, você do alto da Colina de Aegon e eu da baixada. – Não é tão distante, sor. Dunk deu uma mordida em uma cebola. – Preciso chamá-lo de Senhor ou Vossa Graça ou algo assim? – Na corte – o menino admitiu –, mas em outras ocasiões pode continuar me chamando de Egg se quiser, sor. – O que vão fazer comigo, Egg? – Meu tio quer vê-lo. Depois que terminar de comer, sor. Dunk deixou o prato de lado e se levantou. – Terminei, então. Já chutei um príncipe na boca, não pretendo deixar o outro esperando. Lorde Ashford tinha cedido seus aposentos para o príncipe Baelor durante sua estada, então foi para a sala de visitas do senhor que Egg – não, Aegon, ele teria que se acostumar com isso – o conduziu. Baelor restava sentado, lendo sob a luz de velas de cera de abelha. Dunk ajoelhou-se diante dele. – Levante-se – o príncipe disse. – Gostaria de vinho? – Se for do seu agrado, Vossa Graça. – Sirva a Sor Duncan uma taça de tinto doce de Dorne, Aegon – o príncipe ordenou. – Tente não derramar sobre ele, já lhe causou mal suficiente. – O garoto não vai derramar, Vossa Graça – Dunk falou. – É um bom menino. Um bom escudeiro. E não quis me fazer mal, sei disso. – Não é necessário ter intenção de fazer mal para fazê-lo. Aegon devia ter vindo a mim quando viu o que seu irmão estava fazendo com aqueles titereiros. Em vez disso, correu para você. Isso não foi amável. O que você fez, sor... bem, eu teria feito o mesmo em seu lugar, mas sou um príncipe do reino, não um cavaleiro andante. Jamais é boa ideia bater no neto do rei em fúria, não importa o motivo. Dunk assentiu, sombrio. Egg lhe ofereceu um cálice de prata, com vinho até a borda. Ele aceitou e deu um longo gole. – Odeio Aerion – Egg disse com veemência. – E tive que correr até Sor Duncan, tio; o castelo estava longe demais. – Aerion é seu irmão – o príncipe disse com firmeza –, e os septões dizem que devemos amar nossos irmãos. Aegon, deixe-nos agora, quero falar com Sor Duncan a sós. O menino colocou de lado o jarro de vinho e fez uma mesura rígida. – Como desejar, Vossa Graça. – Foi até a porta da sala e a fechou com suavidade atrás de si. Baelor Quebra-Lança estudou os olhos de Dunk por um longo momento. – Sor Duncan, deixe-me perguntar uma coisa. Quão bom cavaleiro você é de verdade? Quão habilidoso com as armas? Dunk não sabia o que responder. – Sor Arlan me ensinou a usar a espada e o escudo, e como investir contra anéis e estafermos. O Príncipe Baelor pareceu perturbado com aquela resposta. – Meu irmão Maekar voltou ao castelo há algumas horas. Encontrou seu herdeiro bêbado em uma estalagem a um dia de cavalgada para o sul. Maekar nunca admitiria isso, mas acredito que tinha a esperança secreta de que seus filhos pudessem ofuscar os meus neste torneio. Em vez disso, ambos o envergonharam. Mas o que ele vai fazer? São sangue de seu sangue. Maekar está zangado e precisa de um alvo para a sua ira. Ele escolheu você. – Eu? – Dunk disse, infeliz. – Aerion já encheu o ouvido do pai. E Daeron não o ajudou tampouco. Para desculpar a própria covardia, ele disse para meu irmão que um imenso cavaleiro assaltante, encontrado ao acaso na estrada, levou Aegon dele. Temo que você tenha sido escolhido para ser esse cavaleiro assaltante, sor. Na história de Daeron, ele passou três dias perseguindo você de um lado para o outro, para recuperar o irmão. – Mas Egg lhe contará a verdade. Aegon, quero dizer. – Egg contará para ele, não tenho dúvida – disse o Príncipe Baelor –, mas o menino também é conhecido por mentir, como você bem sabe. Em qual filho meu irmão acreditará? Quanto a esses titereiros, quando Aerion terminar sua história deturpada, serão condenados por alta traição. O dragão é o símbolo da Casa Real. Retratar um sendo morto, com sangue de serragem saindo pelo pescoço... Bem, sem dúvida é inocente, mas nem um pouco sensato. Aerion chama isso de um ataque velado à Casa Targaryen, um incitamento à revolta. Maekar concordará de bom grado. Meu irmão tem uma natureza irritadiça e, desde que Daeron se tornou um grande desapontamento para ele, depositou todas as suas melhores esperanças em Aerion. – O príncipe tomou um gole de vinho e colocou o cálice de lado. – No que quer que meu irmão acredite ou deixe de acreditar, uma verdade não está em questão. Você colocou as mãos no sangue do dragão. Por essa ofensa, tem que ser julgado, sentenciado e punido. – Punido? – Dunk não gostou de como aquilo soou. – Aerion gostaria da sua cabeça, com ou sem dentes. Não a terá, prometo, mas não posso negar a ele um julgamento. Como meu real pai está a quilômetros de distância, meu irmão e eu teremos que julgá-lo, juntamente com Lorde Ashford, em cujos domínios estamos, e Lorde Tyrell de Jardim de Cima, seu suserano. Da última vez que um homem foi considerado culpado de agredir alguém de sangue real, decretou-se que ele deveria perder a mão ofensora. – Minha mão? – Dunk exclamou, aterrorizado. – E seu pé. Você o chutou também, não chutou? Dunk não conseguiu falar. – Certamente pedirei aos meus companheiros juízes que sejam misericordiosos. Sou a Mão do Rei e herdeiro do trono, minha palavra tem algum peso. Mas a do meu irmão também tem. O risco existe. – Eu – disse Dunk –, eu... Vossa Graça, eu... – Eles não pretendiam cometer nenhuma traição, era só um dragão de madeira, nunca se pretendeu que fosse um príncipe real, queria dizer, mas as palavras o abandonaram de uma vez por todas. Nunca fora bom com as palavras. – Você tem uma alternativa, no entanto – o Príncipe Baelor disse em voz baixa. – Se é melhor ou pior, não sei dizer, mas devo lembrá-lo de que qualquer cavaleiro acusado de um crime tem o direito de exigir julgamento por combate. Então, eu lhe perguntou novamente, Sor Duncan, o Alto... quão bom cavaleiro você é? De verdade. – Um julgamento de sete – o Príncipe Aerion disse, sorrindo. – Esse é meu direito, acredito. O Príncipe Baelor tamborilou com os dedos na mesa, franzindo o cenho. À sua esquerda, Lorde Ashford assentiu lentamente. – Por quê? – o Príncipe Maekar exigiu saber, inclinando-se na direção do filho. – Tem medo de encarar sozinho este cavaleiro andante e deixar os deuses decidirem a verdade de suas acusações? – Medo? – Aerion perguntou. – De um tipo desses? Não seja insano, pai. Meu pensamento é por meu amado irmão. Daeron foi prejudicado por este Sor Duncan também e tem o direito de reclamar seu sangue. Um julgamento de sete permitirá que nós dois o encaremos. – Não me faça favores, irmão – murmurou Daeron Targaryen. O filho mais velho do Príncipe Maekar parecia ainda pior do que quando Dunk o encontrara na estalagem. Aparentemente estava sóbrio dessa vez, o gibão vermelho e negro sem manchas de vinho, mas seus olhos estavam injetados de sangue, e uma fina camada de suor cobria-lhe a testa. – Fico satisfeito em aplaudi-lo quando matar o patife. – Você é muito gentil, doce irmão – o Príncipe Aerion comentou, todo sorrisos –, mas seria egoísmo meu negar a você o direito de provar a verdade de suas palavras colocando seu corpo em risco. Devo insistir no julgamento de sete. Dunk estava perdido. – Vossa Graça, meus senhores – disse, dirigindo-se para o estrado. – Não entendo. O que é esse julgamento de sete? O Príncipe Baelor se mexeu com desconforto em seu assento. – É outra forma de julgamento por combate. Antigo, raramente invocado. Veio do Mar Estreito com os ândalos e os sete deuses. Em qualquer julgamento por combate, o acusado e o acusador pedem aos deuses que decidam a questão entre eles. Os ândalos acreditavam que se sete campeões lutassem de cada lado, os deuses, sendo assim honrados, ficariam mais dispostos a intervir e garantir que o resultado justo fosse alcançado. – Ou talvez simplesmente tivessem gosto pela esgrima – comentou Lorde Leo Tyrell, com um sorriso cínico. – Seja como for, Sor Aerion está no seu direito. Que seja um julgamento de sete. – Terei que lutar contra sete homens, então? – Dunk perguntou, desesperado. – Não sozinho, sor – o Príncipe Maekar respondeu, impaciente. – Não banque o tolo, não vai adiantar. Deve ser sete contra sete. Precisa encontrar mais seis cavaleiros para lutar ao seu lado. Seis cavaleiros, Dunk pensou. Seria o mesmo que terem me pedido para encontrar seis mil. Não tinha irmãos, nem primos, ou velhos companheiros que tivessem estado ao seu lado em batalha. Por que seis estranhos arriscariam a vida para defender um cavaleiro andante contra dois principezinhos reais? – Vossa Graça, meus senhores – ele disse –, e se ninguém quiser ficar ao meu lado? Maekar Targaryen olhou para ele friamente. – Se a causa é justa, bons homens lutarão por ela. Se não conseguir encontrar campeões, sor, significa que é culpado. Pode algo ser mais claro? Dunk nunca se sentira tão só como quando atravessou a pé o portão do Castelo de Vaufreixo e ouviu a ponte levadiça descer chacoalhando atrás de si. Uma chuva suave, leve como orvalho, estava caindo em sua pele e, mesmo assim, ele estremecia com seu toque. Do outro lado do rio, anéis coloridos aureolavam os escassos pavilhões onde o fogo ainda ardia. Metade da noite já se fora, ele calculou. O amanhecer chegaria em poucas horas. E, com o amanhecer, vem a morte. Haviam lhe devolvido sua espada e sua prata, ainda assim, enquanto atravessava o vau, seus pensamentos eram desoladores. Ele se perguntava se esperavam que selasse um cavalo e fugisse. Poderia, se quisesse. Seria o fim de sua posição como cavaleiro, certamente; a partir daí, não seria mais do que um fora da lei, até o dia em que algum senhor o capturasse e lhe cortasse a cabeça. Melhor morrer como cavaleiro do que assim, disse a si mesmo, teimoso. Molhado até os joelhos, caminhou penosamente as listas vazias. A maior parte dos pavilhões estava escura, os proprietários havia muito estavam adormecidos, mas aqui e ali algumas velas ainda queimavam. Dunk ouviu gemidos suaves e gritos de prazer vindos de uma das tendas. Isso o fez se perguntar se morreria sem ter conhecido uma donzela. Então ouviu o resfolegar de um cavalo, que de algum modo sabia ser de Trovão. Mudou de direção e correu, e lá estava ele, amarrado com Castanha do lado de fora de um pavilhão redondo, iluminado por dentro com um vago brilho dourado. No mastro central, o estandarte pendia, ensopado, mesmo assim Dunk conseguiu perceber a curva escura da maçã Fossoway. Aquilo se parecia com esperança. – Um julgamento por combate – Raymun disse com seriedade. – Que os deuses sejam bons, Duncan. Isso quer dizer lanças de guerra, maças, machados de batalha... As espadas não estarão cegas, entende isso? – Raymun, o Relutante – zombou seu primo, Sor Steffon. Uma maçã feita de ouro e granadas prendia seu manto de lã amarela. – Não tenha medo, primo, isso é um combate de cavaleiros. Como você não é cavaleiro, sua pele não está em risco. Sor Duncan, você tem um Fossoway pelo menos. O maduro. Vi o que Aerion fez com aqueles titereiros. Estou com você. – E eu também – Raymun replicou, zangado. – Só quis dizer... O primo o interrompeu. – Quem mais lutará conosco, Sor Duncan? Dunk abriu as mãos, impotente. – Não conheço mais ninguém. Bem, exceto Sor Manfred Dondarrion. Ele nem quis atestar que sou um cavaleiro, jamais arriscaria a vida por mim. Sor Steffon pareceu pouco perturbado. – Então precisamos de mais cinco bons homens. Felizmente, tenho mais do que cinco amigos. Leo Longthorn, Tempestade Risonha, Lorde Caron, os Lannister, Sor Otho Bracken... sim, e os Blackwood também, embora nunca se tenha visto Blackwood e Bracken do mesmo lado de um corpo a corpo. Vou falar com alguns deles. – Eles não ficarão felizes em ser acordados – o primo objetou. – Excelente – declarou Sor Steffon. – Se estiverem zangados, vão lutar com mais ferocidade. Pode contar comigo, Sor Duncan. Primo, se eu não voltar antes do amanhecer, traga minha armadura e assegure-se de que Ira esteja selado e com arreios para mim. Encontro vocês no cercado dos desafiadores. – Deu uma gargalhada. – Será um dia por muito tempo lembrado, acredito. – Quando saiu da tenda, até parecia feliz. Raymun, nem tanto. – Cinco cavaleiros – disse mal-humorado depois que seu primo se foi. – Duncan, não quero estragar suas esperanças, mas... – Se seu primo conseguir trazer os homens dos quais falou... – Leo Longthorn? Bracken, o Bruto? Tempestade Risonha? – Raymun se levantou. – Ele conhece todos eles, não tenho dúvidas, mas não tenho tanta certeza se algum deles o conhece. Steffon vê isso como uma chance para a glória, mas representa sua vida. Você deveria encontrar seus próprios homens. Vou ajudar. Melhor ter campeões demais do que de menos. – Um ruído do lado de fora fez Raymun virar a cabeça. – Quem vem aí? – quis saber, enquanto um garoto se abaixava para entrar pela aba, seguido por um homem magro com um manto negro ensopado. – Egg? – Dunk ficou em pé. – O que está fazendo aqui? – Sou seu escudeiro – o menino disse. – Você vai precisar de alguém para armá-lo, sor. – O senhor seu pai sabe que você saiu do castelo? – Deuses sejam bons, espero que não. – Daeron Targaryen soltou a fivela de seu manto e deixou-o escorregar pelos ombros magros. – Você? Está louco, vindo até aqui? – Dunk puxou o punhal da bainha. – Eu devia enfiar isso na sua barriga. – Provavelmente – o Príncipe Daeron admitiu. – Embora eu preferiria que me servisse uma taça de vinho. Veja minhas mãos – levantou uma das mãos e deixou que todos vissem como estava tremendo. Dunk deu um passo na direção dele, furioso. – Não me importo com suas mãos. Você mentiu sobre mim. – Eu tinha que dizer alguma coisa quando meu pai exigiu saber onde meu irmãozinho tinha se metido – o príncipe respondeu. Sentou-se, ignorando Dunk e sua faca. – Verdade seja dita, nem mesmo percebi que Egg tinha ido embora. Ele não estava no fundo da minha taça de vinho, e eu não olhei para nenhum outro lado, então... – suspirou. – Sor, meu pai vai se juntar aos sete acusadores – Egg interrompeu. – Implorei para ele não fazer isso, mas ele não me ouviu. Diz que é a única maneira de recuperar a honra de Aerion e de Daeron. – Não que eu tenha pedido que minha honra fosse recuperada – disse o Príncipe Daeron, com amargura. – Quem quer que esteja com ela, pode ficar, no que me diz respeito. Mesmo assim, estamos aqui. Se serve de consolo, Sor Duncan, você tem pouco a temer de mim. A única coisa de que gosto menos do que cavalos são espadas. Coisas pesadas e bestialmente afiadas. Farei o melhor possível para parecer galante na primeira investida, mas depois disso... bem, talvez você pudesse me acertar com um belo golpe na lateral do elmo. Faça-o ressoar, mas não muito alto, se entende o que quero dizer. Meus irmãos são melhores do que eu no que diz respeito a lutar, dançar, pensar e ler livros, mas nenhum deles chega aos meus pés quando se trata de ficar desmaiado na lama. Dunk só conseguiu encará-lo e se perguntar se o principezinho estava tentando fazê-lo de bobo. – Por que veio? – Para avisá-lo do que o aguarda – Daeron disse. – Meu pai ordenou que a Guarda Real lute com ele. – A Guarda Real? – Dunk repetiu, estarrecido. – Bem, os três que estão aqui. Graças aos deuses, o tio Baelor deixou os outros quatro em Porto Real com nosso avô, o rei. Egg forneceu os nomes. – Sor Roland Crakehall, Sor Donnel de Valdocaso e Sor Willem Wylde. – Eles têm pouca escolha – Daeron comentou. – Juraram proteger a vida do rei e da família real, e meus irmãos e eu somos sangue do dragão, que os deuses nos ajudem. Dunk contou nos dedos. – Com isso são seis. Quem é o sétimo homem? O Príncipe Daeron deu de ombros. – Aerion encontrará alguém. Se for preciso, comprará um campeão. Não lhe falta ouro. – Quem você tem? – Egg perguntou. – O primo de Raymun, Sor Steffon. Daeron estremeceu. – Só um? – Sor Steffon foi atrás de alguns amigos. – Posso trazer algumas pessoas – Egg sugeriu. – Cavaleiros. Eu consigo. – Egg – Dunk disse –, estarei lutando contra seus irmãos. – Mas você não vai machucar Daeron – o garoto lembrou. – Ele lhe contou que vai cair. E Aerion... lembro-me de que, quando eu era pequeno, ele costumava entrar no meu quarto à noite e colocar uma faca entre minhas pernas. Tinha tantos irmãos homens, dizia, que talvez uma noite me transformasse em sua irmã, então poderia se casar comigo. Além disso, jogou meu gato no poço. Ele diz que não, mas sempre mente. O Príncipe Daeron deu de ombros, cansado. – Egg diz a verdade. Aerion é quase um monstro. Acha que é um dragão em forma humana, sabe. E foi por isso que ficou tão furioso com o espetáculo de títeres. Uma pena que ele não tenha nascido um Fossoway, pois pensaria que é uma maçã e todos estaríamos em segurança, mas aqui estamos nós. – Dobrando-se, pegou o manto caído e sacudiu a água da chuva dele. – Tenho que me esgueirar de volta ao castelo antes que meu pai se pergunte por que estou demorando tanto para amolar a espada, mas, antes de eu ir, gostaria de uma palavra a sós, Sor Duncan. Poderia me acompanhar? Por um momento, Dunk olhou para o principezinho com desconfiança. – Como desejar, Vossa Graça. – Embainhou o punhal. – Preciso buscar meu escudo também. – Egg e eu procuraremos cavaleiros – Raymun prometeu. O Príncipe Daeron prendeu seu manto ao redor do pescoço e ergueu o capuz. Dunk o seguiu até a chuva leve. Caminharam na direção das carroças dos comerciantes. – Sonhei com você – o príncipe disse. – Você disse isso na estalagem. – Disse? Bem, é verdade. Meus sonhos não são como os seus, Sor Duncan. Os meus são de verdade. Assustam-me. Você me assusta. Sonhei com você e um dragão morto, veja. Um animal grande, imenso, com asas tão grandes que podiam cobrir este campo. Tinham caído em cima de você, mas você estava vivo e o dragão morto. – Eu o matei? – Isso eu não sei dizer, mas você estava lá, assim como o dragão. Fomos os mestres dos dragões, antigamente, nós, os Targaryen. Agora todos se foram, mas nós permanecemos. Eu não gostaria de morrer hoje. Só os deuses sabem o porquê, eu não sei. Então, faça-me uma gentileza, se puder, e assegure-se de que seja Aerion quem você vai matar. – Tampouco quero morrer – Dunk comentou. – Bem, eu não o matarei, sor. Também vou retirar minha acusação, mas isso não servirá de nada, a menos que Aerion retire a dele. – Suspirou. – Pode ser que eu o tenha matado com a minha mentira. Nesse caso, sinto muito. Estou condenado a algum inferno, sei disso. Provavelmente, um sem vinho. – Deu de ombros, e nesses termos se separaram, ali na leve chuva fria. Os comerciantes tinham parado suas carroças ao limite ocidental do campo, sob um aglomerado de bétulas e freixos. Dunk parou embaixo das árvores e olhou impotente para o lugar vazio onde a carroça dos titereiros estivera. Sumiram. Temera que isso acontecesse. Eu também fugiria se não fosse tão cabeça-dura quanto uma muralha de castelo. Ele se perguntava o que usaria como escudo agora. Tinha prata para comprar um, supunha, se conseguisse encontrar um à venda... – Sor Duncan – uma voz chamou da escuridão. Dunk se virou e deu de cara com Pate de Aço parado atrás dele, segurando uma lamparina de ferro. Sob um manto curto de couro, o armeiro estava nu da cintura para cima, o peito largo e os braços grandes cobertos de pelos grossos e negros. – Se veio buscar seu escudo, ela o deixou comigo. – Olhou para Dunk de alto a baixo. – Consigo contar duas mãos e dois pés. Então será julgamento por combate? – Um julgamento de sete. Como sabe? – Bem, eles podiam tê-lo beijado e lhe concedido um título de lorde, mas não parecia provável, e, se as coisas tivessem seguido por outro caminho, você estaria sem alguns pedaços. Agora, siga-me. Sua carroça era fácil de distinguir pela espada e bigorna pintadas na lateral. Dunk seguiu Pate para dentro. O armeiro pendurou a lamparina em um gancho, tirou o manto molhado e vestiu uma túnica de tecido áspero pela cabeça. Uma tábua com dobradiças caiu de uma das paredes para fazer uma mesa. – Sente-se – Pate disse, empurrando um banco baixo em sua direção. Dunk se sentou. – Para onde ela foi? – Foram para Dorne. O tio da garota é um homem prudente. Desaparecido é esquecido. Fique e seja visto, e talvez o dragão se lembre. Além disso, ele achou que ela não devia vê-lo morrer. – Pate foi até o fundo da carroça, remexeu por uns momentos na sombra e voltou com o escudo. – O rebordo era de aço barato, velho, quebradiço e enferrujado – comentou. – Fiz um novo para você, duas vezes mais grosso, e coloquei algumas faixas na parte de trás. Vai ficar mais pesado agora, mas mais forte também. A garota fez a pintura. Ela havia feito um trabalho melhor do que ele jamais esperara. Mesmo sob a luz da lamparina, as cores do pôr do sol eram ricas e vivas, a árvore, alta, forte e nobre. A estrela cadente era uma pincelada de tinta brilhante através do céu de carvalho. Mas agora que Dunk o tinha nas mãos, tudo parecia errado. A estrela estava caindo, que tipo de símbolo era aquele? Ele cairia tão rápido quanto ela? E o poente anuncia a noite. – Eu devia ter ficado com o cálice – disse, sentindo-se muito infeliz. – Pelo menos tinha asas, para voar para longe, e Sor Arlan disse que a taça era cheia de fé e amizade e coisas boas para se beber. O escudo está todo pintado como a morte. – O olmo está vivo – Pate assinalou. – Vê como as folhas estão verdes? Folhas de verão, com certeza. E já vi escudos com brasões com crânios, lobos, corvos e até homens enforcados e cabeças ensanguentadas. No entanto, serviram bem o bastante. Conhece a velha rima do escudo? Carvalho e ferro, guardem-me bem... – ... senão estou morto e no inferno também – Dunk completou. Não pensava nessa rima há anos. O velho a ensinara para ele, havia muito tempo. – Quanto lhe devo pelo novo rebordo e tudo o mais? – perguntou para Pate. – Você? – Pate coçou a barba. – Uma moeda de cobre. A chuva quase parara por completo quando a primeira luz pálida se derramou pelo céu oriental, mas fizera seu trabalho. Os homens de Lorde Ashford haviam removido as barreiras, e o campo do torneio era um grande pântano de lama marrom-acinzentada e relva arrancada. Tentáculos de fumaça se contorciam pelo chão como pálidas serpentes brancas enquanto Dunk fazia o percurso até as listas. Pate de Aço caminhava com ele. A arquibancada já começava a encher; os senhores e senhoras apertando os mantos de encontro ao corpo para se proteger do frio da manhã. Os plebeus também perambulavam em direção ao campo e centenas deles já se aglomeravam ao longo das cercas. Tanta gente veio para me ver morrer, Dunk pensou com amargura, mas estava sendo injusto. A alguns passos dali, uma mulher gritou: – Boa sorte para você. E um homem deu um passo adiante, pegou sua mão e disse: – Que os deuses lhe deem força, sor. Então um irmão mendicante, em uma túnica marrom esfarrapada, abençoou sua espada e uma donzela lhe deu um beijo no rosto. Estão do meu lado. – Por quê? – perguntou a Pate. – O que eu sou para eles? – Um cavaleiro que se lembra de seus votos – o ferreiro respondeu. Encontraram Raymun do lado de fora do cercado dos desafiadores na extremidade sul das listas, esperando com o cavalo do primo e com o de Dunk. Trovão se mexia irrequieto sob o peso da testeira, da barda e da pesada manta de cota de malha. Pate inspecionou a armadura e afirmou que era um bom trabalho, embora outra pessoa a tivesse forjado. De onde quer que a armadura tivesse vindo, Dunk estava grato. Então viu os outros: o homem caolho com a barba grisalha, o jovem cavaleiro com o casaco listrado de amarelo e negro, com as colmeias no escudo. Robyn Rhysling e Humfrey Beesbury, pensou, espantado. E Sor Humfrey Hardyng também. Hardyng estava montado no corcel de guerra ruivo de Aerion, que agora tinha arreios com seus losangos vermelhos e brancos. Foi até eles. – Sores, estou em dívida com vocês. – A dívida é de Aerion – Sor Humfrey Hardyng respondeu. – E pretendemos cobrá-la. – Ouvi dizer que sua perna foi quebrada. – Ouviu a verdade – Hardyng disse. – Não posso andar. Mas enquanto puder montar um cavalo, posso lutar. Raymun puxou Dunk de lado. – Eu esperava que Hardyng fosse querer outra oportunidade para lutar com Aerion, e ele queria. Acontece que o outro Humfrey é seu irmão pelo casamento. Egg é responsável por Sor Robyn, a quem conhecia de outros torneios. Então vocês são cinco. – Seis – Dunk falou, assombrado, apontando. Um cavaleiro estava entrando no cercado, seu escudeiro levando o cavalo de guerra atrás dele. – O Tempestade Risonha. – Uma cabeça mais alto do que Sor Raymun e quase da mesma altura de Dunk, Sor Lyonel usava um casaco de samito que ostentava o veado coroado da Casa Baratheon e carregava seu elmo com chifres embaixo do braço. Dunk lhe estendeu a mão. – Sor Lyonel, não tenho como agradecer o suficiente por ter vindo, nem a Sor Steffon por trazê-lo. – Sor Steffon? – Sor Lyonel lhe deu um olhar intrigado. – Foi seu escudeiro quem foi atrás de mim. O menino Aegon. Meu rapaz tentou mandá-lo embora, mas ele passou por baixo de suas pernas e jogou um jarro de vinho na minha cabeça. – Deu uma gargalhada. – Não há um julgamento de sete há mais de cem anos, sabia disso? Eu não ia perder uma oportunidade de lutar contra os cavaleiros da Guarda Real e, ao mesmo tempo, torcer o nariz do Príncipe Maekar. – Seis – Dunk disse esperançoso para Raymun Fossoway enquanto Sor Lyonel se juntava aos demais. – Seu primo me trará o último, certamente. Um rugido se ergueu da multidão. Na extremidade norte do campo, uma coluna de cavaleiros veio trotando da névoa do rio. Os três membros da Guarda Real vinham primeiro, como fantasmas em suas cintilantes armaduras de esmalte branco, com longos mantos brancos esvoaçando pelas costas. Até mesmo seus escudos eram brancos, vazios e limpos, como um campo de neve recém-caída. Atrás deles vinham o Príncipe Maekar e seus filhos. Aerion estava montado em um malhado cinzento, com laranja e vermelho tremeluzindo nos arreios a cada passo do cavalo. O corcel de batalha de seu irmão era um baio menor, armado com escamas sobrepostas negras e douradas. Uma pluma de seda verde esvoaçava do elmo de Daerion. Era o pai deles, no entanto, quem tinha a aparência mais terrível. Dentes negros curvos de dragão corriam por seus ombros, seguiam até o alto do elmo e desciam pelas costas, e o imenso mangual com saliências pontudas preso à sua sela era a arma de aspecto mais mortal que Dunk jamais vira. – Seis – Raymun exclamou de repente. – São apenas seis. Era verdade, Dunk viu. Três cavaleiros negros e três brancos. Estão com um homem a menos também. Seria possível que Aerion não tivesse sido capaz de encontrar um sétimo homem? O que aquilo significava? Lutariam seis contra seis se ninguém achasse um sétimo? Egg surgiu ao seu lado enquanto ele tentava chegar a uma conclusão. – Sor, é hora de vestir sua armadura. – Obrigado, escudeiro. Será que faria a gentileza? Pate de Aço deu uma mão ao menino. Cota de malha e gorjal, grevas e manoplas, touca e calção, eles o transformaram em aço, conferindo cada fivela e fecho três vezes. Sor Lyonel estava sentado, afiando sua espada em uma pedra de amolar enquanto os Humfrey conversavam em voz baixa, Sor Robyn rezava e Raymun Fossoway andava de um lado para o outro, perguntando-se onde seu primo se metera. Dunk estava completamente armado quando Sor Steffon finalmente apareceu. – Raymun – chamou –, minha cota de malha, por favor. – Havia vestido um gibão almofadado para usar por baixo do aço. – Sor Steffon – Dunk falou –, e seus amigos? Precisamos de outro cavaleiro para formar sete. – Temo que precise de dois – Sor Steffon comentou. Raymun amarrou a parte de trás da cota de malha. – Senhor? – Dunk não entendeu. – Dois? Sor Steffon pegou uma manopla de aço articulado de boa qualidade e a vestiu na mão esquerda, flexionando os dedos. – Vejo cinco aqui – disse enquanto Raymun prendia seu cinturão da espada. – Beesbury, Rhysling, Hardyng, Baratheon e você. – E você – Dunk completou. – Você é o sexto. – Sou o sétimo – Sor Steffon falou, sorrindo. – Mas para o outro lado. Luto com o Príncipe Aerion e seus acusadores. Raymun estava prestes a entregar o elmo ao primo. Parou como se tivesse levado um golpe. – Não. – Sim – Sor Steffon deu de ombros. – Sor Duncan compreende, tenho certeza. Tenho um dever para com meu príncipe. – Disse a ele para confiar em você. – Raymun estava pálido. – Disse? – Pegou o elmo das mãos do primo. – Não duvido de que tenha sido sincero no momento. Traga meu cavalo. – Pegue você mesmo – Raymun respondeu, zangado. – Se acha que desejo fazer parte disso, é tão idiota quanto vil. – Vil? – Sor Steffon estalou a língua. – Dobre a língua, Raymun. Somos ambos maçãs da mesma árvore. E você é meu escudeiro. Ou já esqueceu seus votos? – Não. Você esqueceu os seus? Jurou ser um cavaleiro. – Serei mais do que um cavaleiro quando o dia de hoje terminar. Lorde Fossoway. Gosto de como soa. – Sorrindo, vestiu a outra manopla, deu meia-volta e cruzou o cercado para pegar seu cavalo. Embora os outros defensores o encarassem com olhar de desprezo, ninguém fez um movimento sequer para impedi-lo. Dunk observou Sor Steffon levar seu corcel de guerra para o outro lado do campo. Suas mãos se fecharam em punho, mas sua garganta estava ferida demais para que pudesse falar. Nenhuma palavra demoveria alguém como ele, de qualquer modo. – Me arme cavaleiro. – Raymun colocou a mão no ombro de Dunk e o virou. – Tomarei o lugar do meu primo. Sor Duncan, me arme. – Apoiou-se sobre um joelho. Franzindo o cenho, Dunk levou a mão até o cabo de sua espada longa, mas hesitou. – Raymun, eu... eu não devo. – Você deve. Sem mim, são apenas cinco. – O rapaz está certo – disse Sor Lyonel Baratheon. – Faça isso, Sor Duncan. Qualquer cavaleiro pode armar um cavaleiro. – Duvida da minha coragem? – Raymun perguntou. – Não – Dunk respondeu. – Não é isso, mas... – Ainda assim hesitava. Uma fanfarra de trombetas cortou o ar nebuloso da manhã. Egg veio correndo até eles. – Sor, Lorde Ashford o convoca. Tempestade Risonha fez um aceno impaciente com a mão. – Vá, Sor Duncan. Armarei Sor Raymun cavaleiro. – Desembainhou sua espada e afastou Dunk com um empurrão. – Raymun da Casa Fossoway – começou solenemente, tocando a lâmina no ombro direito do escudeiro –, em nome do Guerreiro, eu o exorto a ter coragem. – A espada se moveu do ombro direito para o esquerdo. – Em nome do Pai, eu o exorto a ser justo. – De volta ao direito. – Em nome da Mãe, eu o exorto a defender os jovens e inocentes. – Para o esquerdo. – Em nome da Donzela, eu o exorto a proteger todas as mulheres... Dunk os deixou lá, sentindo-se tão aliviado quanto culpado. Ainda temos um a menos, pensou enquanto Egg segurava Trovão para ele. Onde vou encontrar outro homem? Virou o cavalo e cavalgou lentamente na direção da arquibancada, onde Lorde Ashford esperava. Da extremidade norte das listas, o Príncipe Aerion avançou para encontrá-lo. – Sor Duncan – disse alegremente –, vejo que só tem cinco campeões. – Seis – Dunk o corrigiu. – Sor Lyonel está armando Raymun Fossoway. Lutaremos seis contra sete. – Sabia que homens haviam vencido com perspectivas muito piores. Mas Lorde Ashford negou com a cabeça. – Isso não é permitido, sor. Se não pode encontrar outro cavaleiro para lutar ao seu lado, deve ser declarado culpado dos crimes de que foi acusado. Culpado, Dunk pensou. Culpado pela perda de um dente, e por isso devo morrer. – Senhor, peço um momento. – Pois o tem. Dunk cavalgou lentamente ao longo da cerca. A arquibancada estava lotada de cavaleiros. – Senhores – gritou para eles –, alguém se lembra de Sor Arlan de Centarbor? Eu era seu escudeiro. Ele serviu muitos de vocês. Comeu em suas mesas e dormiu em seus salões. – Viu Manfred Dondarrion sentado na fileira mais alta. – Sor Arlan foi ferido a serviço de seu pai. – O cavaleiro disse alguma coisa para a senhora ao seu lado, sem prestar atenção. Dunk foi obrigado a avançar. – Lorde Lannister, Sor Arlan o desmontou certa vez em um torneio. – O Leão Grisalho examinou sua luva, recusando-se deliberadamente a levantar os olhos. – Ele era um bom homem, e ensinou-me a ser um cavaleiro. Não só a lutar com a espada e a lança, mas a ter honra. Um cavaleiro defende os inocentes, ele dizia. Foi tudo o que fiz. Preciso de mais um cavaleiro para lutar ao meu lado. Um, é tudo. Lorde Caron? Lorde Swann? – Lorde Swann riu de leve quando Lorde Caron sussurrou em seu ouvido. Dunk se dirigiu a Sor Otho Bracken, abaixando a voz. – Sor Otho, todos sabemos que é um grande campeão. Junte-se a nós, eu lhe peço. Em nome dos deuses antigos e dos novos. Minha causa é justa. – Pode ser – disse Bracken, o Bruto, que ao menos teve a educação de responder –, mas é a sua causa, não a minha. Não o conheço, garoto. Desolado, Dunk deu meia-volta com Trovão e correu de um lado para o outro diante das fileiras de homens pálidos e frios. O desespero o fez gritar: – NÃO HÁ CAVALEIROS DE VERDADE ENTRE VOCÊS? Só o silêncio respondeu. Do outro lado do campo, o Príncipe Aerion gargalhou. – Não se zomba do dragão – gritou. Então veio uma voz. – Tomarei partido de Sor Duncan. Um garanhão negro emergiu das névoas do rio, com um cavaleiro negro no dorso. Dunk viu o escudo do dragão e o espigão esmaltado de vermelho no alto do elmo com três cabeças rugindo. O Jovem Príncipe. Deuses sejam bons, é realmente ele? Lorde Ashford cometeu o mesmo engano. – Príncipe Valarr? – Não. – O cavaleiro negro ergueu a viseira do elmo. – Não pensava em entrar nas listas em Vaufreixo, meu senhor, então não trouxe armadura. Meu filho foi bastante gentil em me emprestar a dele. – O Príncipe Baelor sorriu quase com tristeza. Os acusadores estavam confusos, Dunk podia ver. O Príncipe Maekar esporeou o cavalo adiante. – Irmão, você perdeu o juízo? – Apontou um dedo revestido em cota de malha para Dunk. – Este homem atacou meu filho. – Este homem protegeu o fraco, como todo cavaleiro de verdade deve fazer – o Príncipe Baelor respondeu. – Deixe que os deuses determinem se ele estava certo ou errado. – Deu um puxão em suas rédeas, virou o imenso cavalo de guerra de Valarr e trotou para a extremidade sul do campo. Dunk parou Trovão ao lado dele, e os outros defensores se reuniram ao redor deles: Robyn Rhysling e Sor Lyonel, os Humfrey. Todos bons homens, mas serão bons o bastante? – Onde está Raymun? – Sor Raymun, por favor. – Ele se aproximou a meio galope, um sorriso impiedoso iluminando seu rosto sob o elmo emplumado. – Minhas desculpas, sor. Precisei fazer uma pequena mudança no meu símbolo para não ser confundido com meu desonroso primo. – Mostrou o escudo para todos. O polido escudo dourado permanecia o mesmo, assim como a maçã Fossoway, mas a fruta era verde em vez de vermelha. – Temo ainda não estar maduro... mas melhor verde do que estragado, não? Sor Lyonel gargalhou e Dunk deu um sorriso involuntário. Até o Príncipe Baelor pareceu aprovar. O septão de Lorde Ashford foi até a frente da arquibancada e ergueu o cristal para convocar a multidão para uma prece. – Prestem atenção, todos vocês – Baelor disse em voz baixa. – Os acusadores virão armados com pesadas lanças de guerra na primeira investida. Lanças de freixo, com dois metros de comprimento, com bandas para evitar que quebrem e com ponta de aço suficientemente afiada para penetrar a armadura com o peso de um cavalo de guerra por trás. – Usaremos o mesmo – disse Sor Humfrey Beesbury. Atrás dele, o septão convocava os Sete a olhar para baixo e julgar essa disputa, e garantir a vitória para os homens cuja causa fosse justa. – Não – Baelor falou. – Vamos nos armar com lanças de torneio, em vez disso. – Lanças de torneio são feitas para quebrar – Raymun objetou. – Também têm três metros de comprimento. Se nossas pontas atingirem o alvo, as deles não poderão nos tocar. Mirem no elmo ou no peito. Em um torneio é uma coisa valente quebrar sua lança contra o escudo do adversário, mas aqui isso também significa morte. Se pudermos desmontá-los e nos manter em nossas selas, a vantagem será nossa. – Olhou para Dunk. – Se Sor Duncan for morto, significará que os deuses o julgaram culpado, e a disputa estará acabada. Se ambos os acusadores forem mortos ou retirarem as acusações, significará o mesmo. De outro modo, todos os sete de um lado ou do outro deverão perecer ou se render para que o julgamento termine. – O Príncipe Daeron não vai lutar – Dunk falou. – Não lutaria bem de qualquer modo – Sor Lyonel gargalhou. – Contra isso, temos três das Espadas Brancas para combater. Baelor encarou aquilo com calma. – Meu irmão errou quando exigiu que a Guarda Real lutasse por seu filho. Seus votos os proíbem de ferir um príncipe do sangue. Felizmente, é o que sou. – Deu um sorriso leve. – Mantenham os outros longe de mim durante tempo suficiente, que lidarei com a Guarda Real. – Meu príncipe, isso é cavalheiresco? – Sor Lyonel Baratheon perguntou enquanto o septão terminava sua invocação. – Os deuses nos farão saber – disse Baelor Quebra-Lança. Um profundo silêncio de expectativa caiu sobre a Campina de Vaufreixo. A setenta metros de distância, o garanhão cinzento de Aerion relinchava impaciente e batia com a pata no chão lamacento. Trovão estava muito quieto em comparação; era um cavalo mais velho, veterano de meia centena de batalhas, sabia o que era esperado dele. Egg entregou o escudo a Dunk. – Que os deuses estejam com você, sor – o garoto disse. A visão de seu olmo e da estrela cadente lhe deu ânimo. Dunk passou o braço esquerdo pela correia e apertou os dedos em volta do punho. Carvalho e ferro, guardem-me bem, senão estou morto e no inferno também. Pate de Aço lhe trouxe sua lança, mas Egg insistiu que ele é quem devia colocá-la na mão de Dunk. De ambos os lados, seus companheiros pegaram as lanças e se espalharam em uma longa fileira. O Príncipe Baelor estava à sua direita e Sor Lyonel, à esquerda, mas a abertura estreita do elmo limitava a visão de Dunk ao que estava diretamente à sua frente. A arquibancada desaparecera, assim como os plebeus que lotavam as cercas; havia apenas o campo enlameado, a bruma pálida soprada pelo vento, o rio, a vila e o castelo ao norte, e o principezinho em seu cavalo de guerra cinzento com chamas no elmo e um dragão no escudo. Dunk viu o escudeiro de Aerion lhe dar uma lança de guerra, com dois metros de comprimento e negra como a noite. Ele atravessará meu coração com ela se puder. Uma corneta soou. Por um segundo, Dunk ficou imóvel como uma mosca em âmbar, embora todos os cavalos estivessem se movendo. Uma pontada de pânico o atravessou. Esqueci, pensou enlouquecido, esqueci tudo, vou me envergonhar, vou perder tudo. Trovão o salvou. O grande garanhão castanho sabia o que fazer, mesmo que seu cavaleiro não soubesse. Arrancou em um trote lento. Então o treinamento de Dunk assumiu o controle. Deu um leve toque com as esporas no cavalo de guerra e posicionou a lança. Ao mesmo tempo, virou o escudo de forma a cobrir a maior parte da lateral esquerda de seu corpo. Segurou-o em um ângulo que defletisse os golpes para longe dele. Carvalho e ferro, guardemme bem, senão estou morto e no inferno também. O ruído da multidão não era mais do que o rebentar distante de ondas. Trovão começou a galopar. Os dentes de Dunk rangeram violentamente com o ritmo. Pressionou os calcanhares para baixo, apertando as pernas com toda a força e deixando que seu corpo se tornasse parte do movimento do cavalo embaixo dele. Sou Trovão e Trovão sou eu, somos um único animal, estamos unidos, somos um. O ar dentro de seu elmo já estava tão quente que ele mal podia respirar. Em uma justa de torneio, seu adversário estaria à sua esquerda, do outro lado da barreira, e ele teria que virar a lança por cima do pescoço de Trovão. O ângulo fazia com que fosse mais provável que a madeira rompesse com o impacto. Mas o jogo daquele dia era mais mortal. Sem barreiras para separá-los, os cavalos investiam diretamente um contra o outro. O imenso cavalo negro do Príncipe Baelor era muito mais rápido do que Trovão, e Dunk o vislumbrou cavalgando na sua frente através do canto do visor do elmo. Sentia os outros mais do que os via. Eles não importam, apenas Aerion importa, só ele. Via o dragão se aproximar. Respingos de lama saltavam dos cascos do cavalo cinzento do Príncipe Aerion, e Dunk podia ver as narinas do animal se dilatarem. A lança negra ainda se inclinava para cima. Um cavaleiro que segura sua lança para o alto e a alinha no último momento sempre corre o risco de abaixar tarde demais, o velho lhe dizia. Dunk mirou a ponta de sua arma no meio do peito do principezinho. Minha lança é parte do meu braço, disse para si mesmo. É meu dedo, um dedo de madeira. Tudo o que preciso fazer é tocá-lo com meu longo dedo de madeira. Tentou não ver a ponta de ferro afiada na extremidade da lança negra de Aerion, ficando maior a cada passo. O dragão, olhe para o dragão, Dunk pensou. O grande animal de três cabeças cobria o escudo do príncipe, asas vermelhas e fogo dourado. Não, olhe só para onde pretende atingir, lembrou-se de repente, mas sua lança já começara a deslizar para o lado. Tentou corrigi-la, mas era tarde demais. Viu a ponta acertar o escudo de Aerion, atingindo o dragão entre duas de suas cabeças, arrancando uma gota de chama pintada. Quando soou um estalo abafado, sentiu Trovão se retrair sob seu corpo, tremendo com a força do impacto, e, meio segundo mais tarde, algo se esmagou contra seu flanco com uma força incrível. Os cavalos colidiram violentamente, as armaduras batendo e ressoando, enquanto Trovão tropeçava e a lança de Dunk caía de sua mão. Então ele havia passado por seu adversário, agarrado à sua sela, em um esforço desesperado para continuar montado. Trovão se inclinou de lado na lama escorregadia e Dunk sentiu suas patas traseiras escorregarem por baixo do cavalo. Elas deslizaram, rodopiaram e então o traseiro do garanhão bateu com força no chão. – Para cima! – Dunk rugiu, golpeando com as esporas. – Para cima, Trovão! – E, de algum modo, o velho cavalo de guerra ficou em pé novamente. Dunk sentia uma dor aguda nas costelas, e seu braço esquerdo estava sendo puxado para baixo. Aerion levara sua lança através do carvalho, da lã e do aço; um metro de freixo estilhaçado e ferro afiado projetava-se na lateral de seu corpo. Dunk estendeu a mão direita, agarrou a lança logo abaixo da cabeça, travou os dentes e arrancou-a com um puxão violento. O sangue veio, jorrando pelos elos da cota de malha e manchando de vermelho o sobretudo. O mundo girou e ele quase caiu. Vagamente, através da dor, podia ouvir vozes chamando seu nome. Seu belo escudo era inútil agora. Jogou-o de lado, olmo, estrela cadente, lança quebrada e tudo o mais, e desembainhou a espada, mas sentia tanta dor que não achava que pudesse golpear. Virando Trovão em um círculo estreito, tentou ter uma ideia do que estava acontecendo em outros lugares do campo. Sor Humfrey Hardyng estava agarrado ao pescoço de sua montaria, obviamente ferido. O outro Sor Humfrey jazia imóvel em um lago de lama manchada de sangue, com uma lança quebrada saindo de sua virilha. Viu o Príncipe Baelor passar galopando, a lança ainda intacta, e derrubar da sela um dos homens da Guarda Real. Outro cavaleiro branco já estava caído, e Maekar também fora desmontado. O terceiro cavaleiro da Guarda Real estava rechaçando Sor Robyn Rhysling. Aerion, onde está Aerion? O som de cascos tamborilando atrás de si fez Dunk virar a cabeça rapidamente. Trovão bramiu e empinou, sacudindo os cascos inutilmente enquanto o garanhão cinzento de Aerion ia contra ele a todo galope. Dessa vez não havia esperança de recuperação. A espada longa saiu rodopiando de suas mãos e o chão se ergueu para encontrar Dunk. Aterrissou com um impacto doloroso que o sacudiu até os ossos. A dor o apunhalou com tanta força que soluçou. Por um momento, tudo o que pôde fazer foi ficar deitado ali. O gosto de sangue enchia-lhe a boca. Dunk, o pateta, pensou que podia ser um cavaleiro. Ele sabia que tinha de ficar em pé novamente, ou morreria. Gemendo, obrigou-se a apoiar o corpo nas mãos e nos joelhos. Não conseguia respirar, não conseguia ver. A fenda de seu elmo estava entupida de lama. Ficando em pé sem enxergar, Dunk raspou a lama com um dedo recoberto de cota de malha. Ali, aquilo é... Através dos dedos, vislumbrou um dragão voando, e um mangual cheio de pontas rodopiando na ponta de uma corrente. Então sua cabeça pareceu explodir em pedacinhos. Quando seus olhos se abriram, estava no chão novamente, estatelado de costas. A lama havia sido arrancada do elmo, mas agora um olho estava fechado por causa do sangue. Acima não havia nada além do céu cinza-escuro. Seu rosto latejava, e conseguia sentir o metal frio e úmido pressionando sua bochecha e as têmporas. Ele quebrou minha cabeça, e estou morrendo. O pior era que os outros morreriam com ele, Raymun e o Príncipe Baelor e o restante. Falhei com eles. Não sou um campeão. Não sou nem mesmo um cavaleiro andante. Não sou coisa alguma. Lembrou-se do Príncipe Daeron gabando-se de que ninguém conseguia ficar desmaiado na lama tão bem quanto ele. Ele nunca viu Dunk, o pateta, viu? A vergonha era pior do que a dor. O dragão apareceu sobre ele. Tinha três cabeças e asas brilhantes como chamas, vermelha, amarela e laranja. Estava gargalhando. – Já está morto, cavaleiro andante? – perguntou. – Peça misericórdia e admita sua culpa, e talvez eu só reivindicarei uma mão e um pé. Ah, e esses dentes. Mas o que são alguns dentes? Um homem pode viver anos a base de papa de ervilhas. – O dragão gargalhou novamente. – Não? Coma isto, então. – A bola pontiaguda rodopiou uma e outra vez no céu e caiu na direção de sua cabeça tão rápido quanto uma estrela cadente. Dunk rolou. Onde encontrou forças, não saberia dizer, mas encontrou. Rolou até as pernas de Aerion, envolveu a coxa dele com um braço vestido de aço, arrastou-o para a lama e rolou por cima dele. Quero ver ele rodopiar o maldito mangual agora. O príncipe tentou forçar a borda de seu escudo contra a cabeça de Dunk, mas o elmo amassado absorveu a maior parte do impacto. Aerion era forte, mas Dunk era mais forte, maior e mais pesado também. Agarrou o escudo do príncipe e o torceu até que as correias arrebentassem. Então bateu com ele no alto do elmo do principezinho, uma vez e outra e mais outra, esmagando as chamas esmaltadas de seu espigão. O escudo era mais grosso que o de Dunk, carvalho sólido reforçado com ferro. Uma chama quebrou. Depois outra. O príncipe ficou sem chamas muito antes que Dunk parasse com os golpes. Aerion finalmente largou o cabo do inútil mangual e tentou agarrar o seu punhal. Conseguiu tirá-lo da bainha, mas quando Dunk lhe deu uma pancada na mão com o escudo, o punhal saltou para a lama. Ele podia vencer Sor Duncan, o Alto, mas não Dunk da Baixada das Pulgas. O velho lhe ensinara a disputar justas e a lutar com espadas, mas esse tipo de luta ele aprendera antes, nas ruelas sombrias e vielas sinuosas atrás das tavernas da cidade. Dunk jogou longe o escudo amassado e abriu a viseira do elmo de Aerion. Uma viseira é um ponto fraco, lembrou-se do que disse Pate de Aço. O príncipe tinha parado completamente de lutar. Seus olhos estavam roxos e cheios de terror. Dunk teve uma vontade súbita de agarrar um deles e esmagá-lo como uma uva entre dois dedos de aço, mas isso não seria cavalheiresco. – RENDA-SE! – gritou. – Eu me rendo – o dragão sussurrou, os lábios pálidos mal se movendo. Dunk pestanejou para ele. Por um momento, não conseguiu acreditar em seus ouvidos. Acabou, então? Virou a cabeça lentamente, de um lado para o outro, tentando ver. A fresta do elmo estava parcialmente fechada pelo golpe que esmagara o lado esquerdo de seu rosto. Vislumbrou o Príncipe Maekar, a maça na mão, tentando abrir caminho para junto do filho. Baelor QuebraLança o detinha. Dunk se levantou e colocou o Príncipe Aerion em pé. Tateando os cordões de seu elmo, arrancou-o e jogou-o longe. Imediatamente foi submergido em cenas e sons; grunhidos e xingamentos, os gritos da multidão, um garanhão berrando enquanto outro corria sem cavaleiro pelos campos. Por todos os lados, aço ressoava em aço. Raymun e o primo golpeavam um ao outro em frente à arquibancada, ambos em pé. Seus escudos estavam em frangalhos, a maçã verde e a vermelha transformadas em mechas. Um dos cavaleiros da Guarda Real carregava o irmão ferido para fora do campo. Ambos pareciam iguais em suas armaduras e mantos brancos. O terceiro dos cavaleiros brancos estava caído, e Tempestade Risonha se juntara ao Príncipe Baelor contra o Príncipe Maekar. Maça, machado de batalha e espada longa retiniam e ressoavam em elmos e escudos. Maekar recebia três golpes para cada um que dava, e Dunk percebeu que logo estaria acabado. Preciso dar um fim nisso antes que mais algum de nós acabe morto. O Príncipe Aerion deu um mergulho súbito para o mangual. Dunk o chutou nas costas e o atirou de rosto no chão, então agarrou uma de suas pernas e o arrastou pelo campo. Quando chegou à arquibancada onde Lorde Ashford estava, o Príncipe Brilhante estava sujo como uma latrina. Dunk o colocou em pé e o sacudiu, respingando um pouco de lama em Lorde Ashford e na bela donzela. – Diga a ele! Aerion Chamaviva cuspiu um bocado de relva e terra. – Retiro minha acusação. Mais tarde, Dunk não foi capaz de dizer se saiu do campo por conta própria ou se precisara de ajuda. Seu corpo doía por todo lado, e alguns lugares eram piores do que outros. Sou um cavaleiro de verdade agora?, lembrava-se de ter perguntado a si mesmo. Sou um campeão? Egg o ajudou a tirar as grevas e o gorjal, e Raymun também, e até Pate de Aço. Estava aturdido demais para distinguir um do outro. Eram dedos, polegares e vozes. Pate era aquele que estava reclamando, Dunk sabia. – Olhe o que ele fez com minha armadura – falou. – Toda golpeada, amassada e riscada. Sim, eu lhe pergunto, por que me incomodo? Temo que tenha que cortar essa cota de malha. – Raymun – Dunk disse com urgência, segurando a mão do amigo. – Os outros. Como se saíram? – Tinha que saber. – Alguém morreu? – Beesbury – Raymun contou. – Morto por Donnel de Valdocaso na primeira investida. Sor Humfrey está gravemente ferido também. O resto de nós está machucado e ensanguentado, nada de mais. Exceto você. – E eles? Os acusadores? – Sor Willem Wylde da Guarda Real foi levado do campo inconsciente, e acho que quebrei algumas costelas do meu primo. Pelo menos espero que sim. – E o Príncipe Daeron? – Dunk questionou. – Sobreviveu? – Assim que Sor Robyn o desmontou, ele ficou deitado onde caiu. Pode ter quebrado um pé. Seu próprio cavalo o pisoteou enquanto corria solto pelo campo. Aturdido e confuso como estava, Dunk sentiu uma enorme sensação de alívio. – O sonho dele estava errado, então. O dragão morto. A menos que Aerion morresse. Mas ele não morreu, morreu? – Não – Egg falou. – Você o poupou. Não se lembra? – Acho que sim. – As lembranças da luta já estavam ficando confusas e vagas. – Em um momento, sinto como se estivesse bêbado. No outro, dói tanto que sei que estou morrendo. Eles o fizeram se deitar de costas e ficaram conversando enquanto ele olhava o turbulento céu cinzento. Parecia para Dunk que ainda era manhã. Perguntou-se quanto tempo teria durado a luta. – Que os deuses sejam bons, a ponta da lança enterrou profundamente os elos na carne – ouviu Raymun dizer. – Vai necrosar, a menos que... – Embebede-o e despeje um pouco de óleo fervente na ferida – alguém sugeriu. – É assim que os meistres fazem. – Vinho. – A voz tinha uma ressonância metálica. – Óleo não, isso vai matá-lo. É vinho fervente. Vou mandar Meistre Yormwell dar uma olhada nele assim que acabar de cuidar do meu irmão. Um cavaleiro alto assomou-se sobre ele, a armadura negra amassada e riscada por vários golpes. Príncipe Baelor. O dragão escarlate em seu elmo perdera uma cabeça, as duas asas e grande parte da cauda. – Vossa Graça – Dunk disse. – Sou seu homem. Por favor. Seu homem. – Meu homem. – O cavaleiro negro colocou a mão no ombro de Raymun para se equilibrar. – Preciso de bons homens, Sor Duncan. O reino... – Sua voz parecia estranhamente arrastada. Talvez tivesse mordido a língua. Dunk estava muito cansado. Era difícil permanecer acordado. – Seu homem – murmurou mais uma vez. O príncipe moveu lentamente a cabeça de um lado para o outro. – Sor Raymun... meu elmo, por gentileza. A viseira... a viseira está rachada, e meus dedos... meus dedos parecem de madeira... – Imediatamente, Vossa Graça. – Raymun pegou o elmo do príncipe com as duas mãos e grunhiu. – Mestre Pate, ajude. Pate de Aço arrastou um banquinho para perto. – Está esmagado na parte de trás, Vossa Graça, do lado esquerdo. Foi esmagado para dentro do gorjal. Aço bom, esse, para deter um golpe assim. – O mangual do meu irmão, provavelmente – Baelor disse com a voz grossa. – Ele é forte. – Estremeceu. – Isso... parece estranho, eu... – Aí vem – Pate ergueu o elmo amassado. – Que os deuses sejam bons. Ah, deuses, ah, deuses, ah, deuses protejam... Dunk viu algo vermelho e úmido cair do elmo. Alguém estava gritando, um grito alto e terrível. Contra o céu cinzento sombrio, um príncipe alto de armadura negra cambaleou com metade do crânio apenas. Dunk pôde ver o sangue vermelho e o osso claro por baixo e algo mais, algo azul-acinzentado e mole. Uma expressão estranha e perturbada passou pelo rosto de Baelor Quebra-Lança, como uma nuvem passando diante do sol. Ele levantou a mão e tocou a parte de trás da cabeça com dois dedos, levemente. E então caiu. Dunk o segurou. – Para cima – dizem que ele falou, assim como fizera com Trovão no corpo a corpo. – Para cima, para cima. – Mas nunca se lembraria disso depois, e o príncipe não se levantou. Baelor da Casa Targaryen, Príncipe de Pedra do Dragão, Mão do Rei, Protetor do Reino e herdeiro legítimo do Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros, foi entregue ao fogo no pátio do Castelo de Vaufreixo, na margem norte do rio Molusqueiro. Outras grandes casas podiam escolher entre enterrar seus mortos na terra escura ou afundá-los no mar verde e frio, mas os Targaryen eram o sangue do dragão, e seu final era escrito em chamas. Fora o melhor cavaleiro da sua época, e alguns argumentaram que ele devia partir para enfrentar as trevas com cota de malha e placa de aço, e uma espada em cada mão. No fim, no entanto, prevaleceram os desejos de seu real pai, e Daeron II tinha uma natureza pacífica. Quando Dunk passou pelo ataúde de Baelor arrastando os pés, o príncipe usava uma túnica negra de veludo com o dragão de três cabeças realçado com linha escarlate sobre o peito. Ao redor de sua garganta havia uma pesada corrente de ouro. Sua espada estava embainhada ao lado do corpo, mas ele usava um elmo, um fino elmo dourado com uma viseira aberta para que as pessoas pudessem ver seu rosto. Valarr, o Jovem Príncipe, ficou de vigília aos pés do ataúde do pai enquanto Baelor era velado. Era uma versão mais baixa, mais magra, mais bonita do seu progenitor, sem o nariz duas vezes quebrado que fazia Baelor parecer mais humano do que régio. O cabelo de Valarr era castanho, mas atravessado por uma brilhante mecha de louro-prateado. Essa visão fez Dunk se lembrar de Aerion, mas sabia que não era justo. O cabelo de Egg crescia claro como o do irmão, e Egg era um garoto bem decente para um príncipe. Quando parou para oferecer desajeitadas condolências, bem carregadas de agradecimentos, o Príncipe Valarr pestanejou os frios olhos azuis para ele e disse: – Meu pai tinha apenas trinta e nove anos. Tinha qualidades para ser um grande rei, o maior desde Aegon, o Dragão. Por que os deuses o levaram e deixaram você? – Balançou a cabeça. – Vá embora, Sor Duncan. Vá embora. Sem palavras, Dunk mancou para fora do castelo e dirigiu-se para o acampamento ao lado da lagoa verde. Não tinha resposta para Valarr. Nem para as perguntas que fazia a si mesmo. Os meistres e o vinho fervente haviam feito seu trabalho e seu ferimento sarava de forma limpa, embora fosse ficar com uma profunda cicatriz franzida entre o braço esquerdo e o mamilo. Não conseguia olhar para o ferimento sem pensar em Baelor. Ele me salvou uma vez com sua espada e uma vez com uma palavra, apesar de já ser um homem morto quando estava parado ali. O mundo não fazia sentido quando um grande príncipe morria para que um cavaleiro andante pudesse viver. Dunk sentou-se sob o olmo e encarou sombriamente os pés. Quando quatro guardas com a libré real apareceram em seu acampamento no final de uma tarde, Dunk teve certeza de que iam matá-lo no final das contas. Muito fraco e muito cansado para estender a mão e pegar uma espada, ficou sentado com as costas apoiadas no olmo, esperando. – Nosso príncipe suplica o favor de uma conversa privada. – Qual príncipe? – Dunk perguntou, cauteloso. – Este príncipe – uma voz brusca disse antes que o capitão pudesse responder. Maekar Targaryen avançou, vindo de trás do olmo. Dunk se levantou lentamente. O que ele quer de mim agora? Maekar fez um gesto e os guardas desapareceram tão repentinamente quanto haviam aparecido. O príncipe o estudou por um longo momento, então deu meia-volta e se afastou até parar ao lado da lagoa, olhando o próprio reflexo na água. – Mandei Aerion para Lys – anunciou abruptamente. – Talvez alguns anos nas Cidades Livres o mudem para melhor. Dunk nunca estivera nas Cidades Livres, então não sabia o que responder. Estava satisfeito por Aerion ter saído dos Sete Reinos e esperava que nunca mais voltasse, mas isso não era uma coisa para dizer a um pai sobre seu filho. Ficou em silêncio. O Príncipe Maekar virou o rosto para ele. – Alguns homens dirão que eu pretendia matar meu irmão. Os deuses sabem que é mentira, mas ouvirei os sussurros até o dia da minha morte. E foi minha maça que deu o golpe fatal, não tenho dúvidas. Os outros únicos adversários que ele enfrentou no corpo a corpo foram os três cavaleiros da Guarda Real, cujos votos proíbem que façam qualquer outra coisa além de se defender. Então, fui eu. Estranho dizer, não me lembro do golpe que arrebentou seu crânio. É uma bênção ou uma maldição? Um pouco dos dois, acho. Pelo jeito que olhava para Dunk, parecia que o príncipe queria uma resposta. – Não posso dizer, Vossa Graça. – Talvez devesse odiar Maekar, mas, em vez disso, sentia uma estranha simpatia pelo homem. – Você o acertou com a maça, senhor, mas foi por mim que o Príncipe Baelor morreu. Então eu o matei tanto quanto o senhor. – Sim – o príncipe admitiu. – Você os ouvirá sussurrar também. O rei está velho. Quando ele morrer, Valarr assumirá o Trono de Ferro no lugar de seu pai. Cada vez que uma batalha for perdida ou uma colheita der errado, os tolos dirão “Baelor não deixaria isso acontecer, mas o cavaleiro andante o matou”. Dunk podia ver a verdade naquilo. – Se eu não lutasse, vocês teriam cortado minha mão. E meu pé. Algumas vezes me sento sob aquela árvore e olho para meus pés e me pergunto se não podia ter dado um deles. Como meu pé pode valer mais do que a vida de um príncipe? E os outros dois também, os Humfrey, eram bons homens. – Sor Humfrey Hardyng havia sucumbido aos ferimentos na noite anterior. – E que resposta sua árvore dá? – Nenhuma que eu consiga escutar. Mas o velho, Sor Arlan, dizia todos os dias ao cair da noite: “Pergunto-me o que o amanhã trará”. Ele nunca soube, não mais do que eu sei. Bem, pode ser que chegue algum amanhã em que eu precise do meu pé? Em que o reino precise desse pé ainda mais do que da vida de um príncipe? Maekar remoeu aquilo por um tempo, a boca travada sob a barba prateada que fazia seu rosto parecer tão quadrado. – Não é nem um pouco provável – disse com dureza. – O reino tem tantos cavaleiros andantes quanto andanças, e todos eles têm pés. – Se Vossa Graça tem uma resposta melhor, eu gostaria de ouvir. Maekar franziu o cenho. – Pode ser que os deuses gostem de piadas cruéis. Ou talvez não existam deuses. Talvez nada disso tenha significado algum. Eu perguntaria ao Alto Septão, mas da última vez que fui até ele, ele me disse que nenhum homem pode realmente entender as obras dos deuses. Talvez ele devesse experimentar dormir embaixo de uma árvore. – Fez uma careta. – Meu filho mais novo parece ter se ligado a você, sor. É hora de ele ser um escudeiro, mas ele me diz que não servirá a nenhum cavaleiro além de você. É um rapaz indisciplinado, como deve ter notado. Ficará com ele? – Eu? – a boca de Dunk abriu e fechou, e abriu novamente. – Egg... Aegon, quero dizer... ele é um bom garoto, mas, Vossa Graça, sei que me honra, mas... sou só um cavaleiro andante. – Isso pode ser mudado – Maekar falou. – Aegon vai retornar para meu castelo em Solarestival. Há um lugar para você, se desejar. Um cavaleiro da minha casa. Jure sua espada para mim e Aegon poderá ser seu escudeiro. Enquanto você o treinar, meu mestre de armas completará seu treinamento. – O príncipe lhe deu um olhar astuto. – Seu Sor Arlan fez tudo o que podia por você, mas ainda tem muito o que aprender. – Eu sei, meu senhor. – Dunk olhou ao seu redor. Para a relva verde e os juncos, o olmo alto, as ondulações dançando pela superfície da lagoa iluminada pelo sol. Outra libélula se movia pela água, ou talvez fosse a mesma do outro dia. O que vai ser, Dunk?, perguntou a si mesmo. Libélulas ou dragões? Alguns dias antes, teria respondido imediatamente. Era tudo com o que sempre sonhara, mas agora que a perspectiva estava ao seu alcance, aquilo o assustava. – Imediatamente antes de o Príncipe Baelor morrer, jurei ser seu homem. – Presunçoso de sua parte – Maekar comentou. – O que ele disse? – Que o reino precisava de bons homens. – Isso é verdade. E o que tem? – Aceitarei seu filho como meu escudeiro, Vossa Graça, mas não em Solarestival. Não por um ano ou dois. Ele já viu castelos suficientes, imagino. Só o aceitarei se puder levá-lo comigo para a estrada – apontou para a velha Castanha. – Ele montará meu corcel, vestirá meu manto velho e manterá minha espada afiada e minha cota de malha limpa. Dormiremos em estalagens e estábulos e, de vez em quando, nos salões de algum cavaleiro com terras ou senhor de menor importância, e talvez sob as árvores quando for necessário. O príncipe Maekar lhe deu um olhar incrédulo. – O julgamento abalou seu juízo, homem? Aegon é um príncipe real. O sangue do dragão. Príncipes não são feitos para dormir em valas e comer carne salgada dura. – Viu que Dunk hesitou. – O que tem medo de me dizer? Diga o que desejar, sor. – Daeron nunca dormiu em uma vala, aposto – Dunk disse, muito baixinho. – E toda a carne que Aerion já comeu era grossa, tenra e ensanguentada, provavelmente. Maekar Targaryen, Príncipe de Solarestival, olhou Dunk da Baixada das Pulgas por um longo tempo, a mandíbula movendo-se em silêncio sob a barba prateada. Por fim, deu meiavolta e afastou-se, sem dizer uma palavra. Dunk o ouviu partir com seus homens. Quando se foram, o único som era o tênue zumbido das asas da libélula que voava rente sobre a água. O menino chegou na manhã seguinte, no momento em que o sol nascia. Usava botas velhas, calção marrom, uma túnica de lã marrom e um manto velho de viagem. – O senhor meu pai diz que tenho de servi-lo. – Servi-lo, sor – Dunk o recordou. – Pode começar selando os cavalos. Castanha é sua, trate-a com gentileza. Não quero encontrá-lo montado no Trovão, a menos que eu o coloque lá. Egg foi até as selas. – Para onde vamos, sor? Dunk pensou por um momento. – Nunca estive para os lados das Montanhas Vermelhas. Gostaria de dar uma olhada em Dorne? Egg sorriu. – Ouvi dizer que eles têm bons espetáculos de títeres – comentou.

Trocadilho, em inglês, com o nome do personagem “egg”, ou seja “ovo”. (N. do E.)

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