Crônicas de Gelo e Fogo
George R. R. Martin
As Crônicas de Gelo e Fogo ganharam vida como uma trilogia, mas já se expandiram para
uma série que já conta com cinco obras publicadas1. Como J. R. R. Tolkien disse certa vez,
um conto cresce durante a narrativa.
O cenário dos livros é o grande continente de Westeros, um mundo ao mesmo tempo
parecido e diferente do nosso, no qual as estações duram anos e, algumas vezes, décadas.
Fazendo limite com o Mar do Poente, no lado ocidental do mundo conhecido, Westeros se
estende das areias vermelhas de Dorne, no sul, até as montanhas geladas e campos congelados
no norte, onde a neve cai mesmo durante os longos verões.
Os Filhos da Floresta foram os primeiros habitantes conhecidos de Westeros, durante a
Alvorada dos Dias: uma raça de baixa estatura que morava na floresta e esculpia estranhos
rostos nos represeiros, árvores imensas e brancas como ossos. Então vieram os Primeiros
Homens, que cruzaram o istmo vindos do continente maior do leste, com espadas de bronze e
cavalos, e guerrearam com os Filhos da Floresta por séculos, antes de finalmente fazerem as
pazes com a raça mais antiga e adotarem seus deuses antigos e sem nomes. O Pacto marcou o
início da Era dos Heróis, quando os Primeiros Homens e os Filhos da Floresta partilharam
Westeros, e uma centena de pequenos reinos surgiu e desapareceu.
Outros invasores vieram. Os Ândalos cruzaram o Mar Estreito em navios, e com ferro e
fogo varreram os reinos dos Primeiros Homens e tiraram os Filhos de suas florestas,
derrubando muitos represeiros com seus machados. Trouxeram sua própria fé, venerando um
deus com sete faces, cujo símbolo era uma estrela de sete pontas. Só no extremo norte, os
Primeiros Homens, liderados pelos Stark de Winterfell, repeliram os recém-chegados. Em
todos os outros lugares, os Ândalos triunfaram e ergueram seus próprios reinos. Os Filhos da
Floresta minguaram e desapareceram, enquanto os Primeiros Homens passaram a se unir aos
seus conquistadores por meio de casamentos.
Os Roinares chegaram mil anos depois dos Ândalos, e não vieram como invasores, mas
como refugiados, cruzando os mares em dez mil navios para escapar do poder crescente do
Domínio de Valíria. Os senhores de Valíria governavam a maior parte do mundo conhecido;
eram feiticeiros, grandes em sabedoria e, sozinhos entre todas as raças humanas, tinham
aprendido a criar dragões e a dobrá-los a sua vontade. Quatro séculos antes do início de As
Crônicas de Gelo e Fogo, no entanto, a Condenação se abateu em Valíria, destruindo a cidade
em uma única noite. Depois disso, o grande Império Valiriano se desintegrou em discórdias,
barbáries e guerras.
Westeros, do outro lado do Mar Estreito, foi poupada do pior do caos que se seguiu. Com o
tempo, apenas sete reinos restaram onde antigamente havia centenas – mas nem esses durariam
muito tempo. Um descendente da perdida Valíria, chamado Aegon Targaryen, desembarcou na
foz do Água Negra com um pequeno exército, suas duas irmãs (que também eram suas
esposas) e três grandes dragões. Montados nas costas dos dragões, Aegon e suas irmãs
venceram batalha após batalha e subjugaram seis dos sete reinos de Westeros pelo fogo,
espada e tratados. O Conquistador reuniu as lâminas derretidas e retorcidas de seus inimigos
caídos e as usou para fazer um trono monstruoso, gigantesco e farpado: o Trono de Ferro, do
qual governou como Aegon, o Primeiro de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos
Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos.
A dinastia fundada por Aegon e suas irmãs durou pelos trezentos anos seguintes. Outro rei
Targaryen, Daeron II, mais tarde trouxe Dorne para o reino, unindo toda Westeros sob um
único governante. Fez isso pelo casamento, não pela conquista, pois o último dragão morrera
meio século antes.
O Cavaleiro Andante ocorre nos últimos dias do reinado do Bom Rei Daeron, cerca de cem
anos antes do início do primeiro livro de As Crônicas de Gelo e Fogo, com o reino em paz e a
dinastia Targaryen no auge. Conta a história do encontro de Dunk, o escudeiro de um cavaleiro
andante, e Egg, um garoto que é mais do que parece ser, e do grande torneio em Campina de
Vaufreixo. A Espada Juramentada, o conto que se segue, continua a história deles cerca de um
ano depois. E, finalmente, O Cavaleiro Misterioso2 traz Dunk e Egg ao centro de
conspirações pelo Trono de Ferro.
O conto O Cavaleiro Andante foi publicado originalmente em Legends: Stories by the Masters of Modern Fantasy, em
1998; A Espada Juramentada, em Legends II: New Short Novels by the Masters of Modern Fantasy, em 2003; O
Cavaleiro Misterioso foi publicado originalmente em Warriors, em 2010. Essas três antologias serão publicadas pela LeYa
Brasil em breve. (N. do E.)
O Cavaleiro Andante
Um Conto dos Sete Reinos
A
s chuvas da primavera tinham amolecido o solo, então Dunk não teve dificuldade em
cavar a sepultura. Escolheu um lugar na encosta oeste de uma colina baixa, pois o velho
sempre gostara de ver o pôr do sol.
– Outro dia que se foi – suspirou – e quem sabe o que o amanhã nos trará, hein, Dunk?
Bem, um certo amanhã trouxera chuvas que os deixaram ensopados até os ossos, o seguinte
veio com ventos úmidos cortantes e o próximo trouxe um resfriado. No quarto dia, o velho
estava fraco demais para cavalgar. E agora se fora. Apenas alguns dias antes, o velho estava
cantando enquanto cavalgavam; a velha canção sobre ir para Vila Gaivota ver uma bela
donzela, mas em vez de Vila Gaivota, cantava sobre Vaufreixo. Até Vaufreixo para ver a bela
donzela, ei-ho, ei-ho, Dunk pensava com tristeza enquanto cavava.
Quando o buraco estava profundo o bastante, ergueu o corpo do velho nos braços e o
carregou até lá. O homem era pequeno e magro; despido da cota de malha, do elmo e do
cinturão da espada, parecia não pesar mais do que um saco de folhas. Dunk era incrivelmente
alto para sua idade, um garoto desajeitado, desgrenhado, de ossos grandes, de dezesseis ou
dezessete anos (ninguém tinha muita certeza da idade correta), que estava mais próximo dos
dois metros do que da altura mediana e tinha apenas começado a ganhar corpo. O velho com
frequência elogiava sua força. Sempre fora generoso nos elogios. Era tudo o que tinha para
dar.
Dunk o colocou no fundo da cova e ficou parado sobre ele por algum tempo. O cheiro da
chuva estava de novo no ar, e sabia que devia fechar o buraco antes que a chuva começasse a
cair, mas era difícil jogar terra naquele velho rosto cansado. Devia ter um septão aqui para
dizer algumas preces, mas ele só tem a mim. O velho ensinara a Dunk tudo o que sabia sobre
espadas, escudos e lanças, mas nunca fora muito bom em lhe ensinar palavras.
– Eu deixaria sua espada, mas ela vai enferrujar no solo – disse, por fim, como se estivesse
se desculpando. – Os deuses lhe darão uma nova, imagino. Gostaria que não tivesse morrido,
sor. – Fez uma pausa, inseguro do que mais precisava ser dito. Não conhecia prece alguma,
nenhuma inteira pelo menos; o velho nunca fora muito de rezar. – Você foi um cavaleiro de
verdade e nunca me bateu quando não mereci – finalmente conseguiu dizer. – Exceto aquela
vez na Lagoa da Donzela. Foi o garoto da estalagem que comeu a torta que a viúva fez, não eu,
eu disse para você. Não importa agora. Que os deuses o guardem, sor. – Chutou um pouco de
terra no buraco e então começou a enchê-lo metodicamente, sem olhar para a coisa no fundo.
Ele teve uma longa vida, Dunk pensou. Devia estar mais perto dos sessenta do que dos
cinquenta anos, e quantos homens podem dizer isso? Pelo menos vivera para ver outra
primavera.
O sol descia no oeste quando alimentou os cavalos. Eram três: seu castrado de costas
arqueadas, o palafrém do velho e Trovão, seu cavalo de guerra, que era cavalgado apenas em
torneios e batalhas. O grande garanhão castanho não era tão ágil quanto antes, mas ainda tinha
os olhos brilhantes e o temperamento violento, e era mais valioso do que tudo o que Dunk
possuía. Se eu vendesse Trovão e a velha Castanha, e as selas e os estribos também, poderia
ficar com prata suficiente para... Dunk franziu o cenho. A única vida que conhecia era a de
um cavaleiro andante, cavalgando de fortaleza em fortaleza, aceitando trabalho desse e
daquele senhor, lutando suas batalhas e comendo em seus salões até que a guerra acabava, e
então seguindo em frente. Também havia torneios de tempos em tempos, embora com menos
frequência, e ele sabia que alguns cavaleiros andantes viravam ladrões durante invernos
improdutivos, embora o velho nunca tivesse feito isso.
Eu podia encontrar outro cavaleiro andante que precisasse de um escudeiro para cuidar
dos animais e limpar sua cota de malha, pensou, ou podia ir para alguma cidade, como
Lannisporto ou Porto Real, e me juntar à Patrulha da Cidade. Ou então...
Empilhara as coisas do velho sob um carvalho. A bolsa de tecido continha três veados de
prata, dezenove moedas de cobre e uma granada lascada. Como a maioria dos cavaleiros
andantes, a maior parte de sua riqueza material fora investida em cavalos e armas. Dunk
possuía agora uma cota de malha da qual tirara a ferrugem mil vezes. Um meio elmo de ferro
com protetor nasal largo e um amassado na têmpora esquerda. Um cinturão de espada de couro
marrom rachado e uma espada longa com bainha de lã e couro. Um punhal, uma navalha, uma
pedra de amolar. Grevas e gorjal, uma lança de guerra de madeira de freixo torneada de dois
metros, com uma cruel ponta de ferro, e um escudo de carvalho com uma borda de metal cheia
de marcas e ostentando o brasão de Sor Arlan de Centarbor: um cálice alado, prateado sobre
marrom.
Dunk olhou para o escudo, pegou o cinturão da espada e olhou novamente para o escudo. O
cinto era feito para os quadris estreitos do velho. Nunca serviria em Dunk, nem a cota de
malha. Ele amarrou a bainha em uma corda de cânhamo, prendeu ao redor da cintura e
desembainhou a espada longa.
A lâmina era reta e pesada, de bom aço forjado em castelo, o punho de couro macio
enrolado em madeira, o botão, uma pedra negra lisa e polida. Simples como era, a espada
ficava bem em sua mão, e Dunk sabia o quanto era afiada por ter trabalhado nela com a pedra
de amolar e oleado muitas noites antes de dormir. Se ajusta ao meu punho tão bem quanto
sempre se ajustou ao dele, pensou consigo mesmo, e há um torneio na Campina de
Vaufreixo.
Passomanso tinha uma marcha mais suave do que a velha Castanha, mas mesmo assim Dunk
estava dolorido e cansado quando vislumbrou a estalagem adiante: um edifício alto de
madeira e argamassa ao lado de um córrego. A cálida luz amarela que jorrava das janelas
parecia tão convidativa que não conseguiu seguir em frente. Tenho três moedas de prata,
disse para si mesmo, o suficiente para uma boa refeição e tanta cerveja quanto eu puder
beber.
Enquanto desmontava, um garoto nu saiu pingando do córrego e começou a se secar com
uma capa de tecido grosseiro marrom.
– Você é o cavalariço? – Dunk perguntou para ele. O menino não parecia ter mais do que
oito ou nove anos, uma coisinha magrela com rosto descorado, os pés descalços cobertos de
lama até a altura do tornozelo. O cabelo era a coisa mais estranha nele. Não tinha nenhum. –
Quero que meu palafrém seja escovado. E aveia para os três. Pode cuidar deles?
O menino olhou para ele com audácia.
– Poderia. Se eu quisesse.
Dunk franziu o cenho.
– Não aceitarei isso. Sou um cavaleiro, farei com que entenda isso.
– Você não parece um cavaleiro.
– Todos os cavaleiros parecem iguais?
– Não, mas também não parecem com você. O cinturão da sua espada é feito de corda.
– Desde que segure minha bainha, serve. Agora cuide dos meus cavalos. Eu lhe darei um
cobre se cuidar bem deles e um tapa na orelha se não o fizer. – Não esperou para ver como o
cavalariço reagiria àquilo, deu as costas e empurrou a porta com o ombro.
Naquela hora, esperava que a estalagem estivesse cheia, mas a sala comum estava quase
vazia. Um jovem fidalgo em um elegante manto adamascado estava desacordado em uma das
mesas, roncando levemente em uma poça de vinho derramado. Além dele, não havia mais
ninguém. Dunk olhou ao redor, inseguro, até que uma mulher robusta, baixa e pálida saiu da
cozinha e disse:
– Sente onde quiser. É cerveja que deseja ou comida?
– Ambos. – Dunk pegou uma cadeira perto da janela, bem longe do homem adormecido.
– Há um bom cordeiro, assado com uma crosta de ervas, e alguns patos que meu filho caçou.
O que prefere?
Ele não comia em uma estalagem havia seis meses ou mais.
– Ambos.
A mulher gargalhou.
– Bem, você é grande o bastante para isso. – Encheu uma caneca de cerveja e trouxe até a
mesa dele. – Vai querer um quarto para a noite também?
– Não. – Nada teria agradado mais a Dunk do que um colchão de palha macia e um teto
sobre a cabeça, mas precisava ser cuidadoso com suas moedas. O chão serviria. – Alguma
comida, alguma cerveja e sigo para Vaufreixo. Qual é a distância daqui?
– Um dia de cavalgada. Vá para norte quando a estrada bifurcar perto do moinho queimado.
Meu garoto está vendo seus cavalos ou fugiu de novo?
– Não, está lá – Dunk falou. – Parece que vocês não têm clientela.
– Metade da cidade se foi para ver o torneio. Os meus também teriam ido, se eu permitisse.
Vão ficar com essa estalagem quando eu me for, mas o menino prefere ficar por aí contando
vantagem com os soldados, e a menina é só suspiros e risadinhas cada vez que um cavaleiro
aparece. Juro que não sei lhe dizer por quê. Cavaleiros são feitos da mesma matéria que os
outros homens, e nunca soube de uma justa que mudasse o preço dos ovos. – Olhou para Dunk
com curiosidade; a espada e o escudo dele diziam uma coisa, o cinturão da espada e a túnica
de tecido rústico diziam outra. – Também vai participar do torneio?
Ele tomou um gole de cerveja antes de responder. Tinha uma cor de avelã e era espessa na
língua, do jeito que gostava.
– Sim – confirmou. – Pretendo ser o campeão.
– Ah, é? – A estalajadeira respondeu, com educação razoável.
Do outro lado da sala, o fidalgo ergueu a cabeça da poça de vinho. Seu rosto tinha um matiz
amarelado, doentio, sob o ninho de rato que era seu cabelo castanho-claro, e uma barba loura
por fazer cobria-lhe o queixo. Ele esfregou a boca, pestanejou para Dunk e disse:
– Sonhei com você. – A mão dele tremia enquanto ele sustentava o dedo. – Fique longe de
mim, ouviu? Fique bem longe.
Dunk o encarou, inseguro:
– Meu senhor?
A estalajadeira se inclinou para perto dele.
– Não se incomode com aquele ali, sor. Tudo o que faz é beber e falar sobre seus sonhos.
Verei sua comida. – Saiu apressada.
– Comida? – O fidalgo fez a palavra parecer obscena. Levantou-se cambaleando, a mão na
mesa para impedi-lo de cair. – Vou vomitar – anunciou. A frente de sua túnica estava coberta
de velhas manchas vermelhas de vinho. – Queria uma puta, mas não há nenhuma por aqui.
Todas foram para a Campina de Vaufreixo. Deuses sejam bons, preciso de um pouco de vinho.
– Ele cambaleou instavelmente para fora da sala comum, e Dunk o ouviu subir as escadas,
cantando em voz baixa.
Uma triste criatura, Dunk pensou. Por que achou que me conhecia? Ponderou sobre aquilo
por um momento, enquanto bebia sua cerveja.
O cordeiro era melhor do que qualquer um que já havia comido, e o pato estava melhor
ainda, cozido com cerejas e limões, nem de perto tão gorduroso quanto muitos outros. A
estalajadeira trouxe ervilhas amanteigadas também e pão de aveia ainda quente do forno. É
isso o que significa ser um cavaleiro, ele disse para si mesmo enquanto arrancava o último
pedaço de carne do osso. Boa comida, cerveja sempre que eu quiser e ninguém me dando
pancadas na cabeça. Ele tomou uma segunda caneca de cerveja com a comida, uma terceira
para empurrar tudo para baixo e uma quarta porque não havia ninguém para lhe dizer que não
podia, e, quando acabou, pagou a mulher com um veado de prata e ainda recebeu de volta um
punhado de moedas de cobre.
Era noite fechada quando Dunk saiu da estalagem. Seu estômago estava cheio e sua bolsa,
um pouco mais leve, mas ele se sentia bem enquanto caminhava até os estábulos. Adiante,
ouviu um cavalo relinchar.
– Calma, rapaz – uma voz de menino disse. Dunk apertou o passo, franzindo o cenho.
Encontrou o cavalariço montado em Trovão e vestindo a armadura do velho. A cota de
malha era mais comprida do que ele, e tivera que inclinar o elmo para trás ou teria coberto
seus olhos. Ele parecia totalmente concentrado, mas a cena era totalmente absurda. Dunk
parou na porta do estábulo e gargalhou.
O garoto levantou o olhar, corou, saltou para o chão.
– Meu senhor, eu não pretendia...
– Ladrão! – Dunk disse, tentando parecer severo. – Tire essa armadura e fique feliz por
Trovão não ter dado um coice nessa cabeça tola. Ele é um cavalo de guerra, não um pônei de
menino.
O menino tirou o elmo e o jogou na palha.
– Eu o cavalgaria tão bem quanto você – disse com a maior ousadia.
– Feche a boca, não quero saber da sua insolência. Tire a cota de malha também. O que
achou que estava fazendo?
– Como posso falar com a boca fechada? – O garoto se contorceu para fora da cota de
malha e a deixou cair.
– Pode abrir a boca para responder – Dunk falou. – Agora pegue essa cota de malha, limpe
a sujeira e coloque-a onde a encontrou. E o meio elmo também. Alimentou os cavalos como
pedi? E escovou Passomanso?
– Sim – o menino respondeu enquanto abanava a palha da cota de malha. – Você vai a
Vaufreixo, não vai? Leve-me com você, sor.
A estalajadeira o advertira daquilo.
– E o que sua mãe diria disso?
– Minha mãe? – o menino fez uma careta. – Minha mãe está morta, ela não diria nada.
Dunk ficou surpreso. A estalajadeira não era mãe dele? Talvez fosse apenas o aprendiz dela.
A cabeça de Dunk estava um pouco zonza da cerveja.
– Você é órfão? – perguntou, inseguro.
– Você é? – o menino retrucou.
– Já fui – Dunk admitiu. Até o velho me aceitar.
– Se me aceitar, posso ser seu escudeiro.
– Não preciso de escudeiro – ele disse.
– Todo cavaleiro precisa de escudeiro – o menino respondeu. – Você parece precisar de um
mais do que a maioria.
Dunk ergueu a mão ameaçadoramente.
– E você parece que precisa de um safanão na orelha, é o que eu acho. Encha os sacos com
aveia. Estou indo para Vaufreixo... sozinho.
Se o menino ficou assustado, disfarçou bem. Ficou parado por um momento, desafiador, os
braços cruzados, mas bem quando Dunk se preparava para desistir dele, o garoto se virou e
foi pegar aveia.
Dunk ficou aliviado. Uma pena que eu não possa... mas ele tem uma vida boa aqui na
estalagem, melhor do que a que teria como escudeiro de um cavaleiro andante. Levá-lo não
seria gentileza alguma.
No entanto, ele ainda podia sentir o desapontamento do menino. Enquanto montava
Passomanso e pegava a rédea de Trovão, Dunk decidiu que uma moeda de cobre poderia
alegrá-lo.
– Aqui, garoto, pela sua ajuda. – Jogou a moeda para ele com um sorriso, mas o cavalariço
não fez tentativa alguma para pegá-la. A moeda caiu na terra, entre seus pés descalços, e foi
ali que ele a deixou.
Ele vai pegá-la assim que eu me for, Dunk disse para si mesmo. Virou o palafrém e
cavalgou para fora da estalagem, levando os outros dois cavalos. As árvores estavam
brilhantes com a luz da lua, e o céu estava sem nuvens e salpicado de estrelas. Mesmo assim,
enquanto seguia estrada abaixo, podia sentir o cavalariço encarando suas costas, malhumorado
e silencioso.
As sombras da tarde estavam ficando mais compridas quando Dunk puxou as rédeas do cavalo
na borda da ampla Campina de Vaufreixo. Sessenta pavilhões já estavam erguidos no campo
gramado. Alguns eram pequenos, outros grandes; alguns quadrados, outros redondos; alguns
eram de lona, outros de linho, ou de seda; mas todos eram de cores vivas, com longos
estandartes esvoaçando nos mastros centrais, mais coloridos do que um campo de flores
silvestres, com vermelhos fortes, amarelos solares, incontáveis tons de verde e azul, negros
profundos, cinza e púrpura.
O velho havia cavalgado com alguns daqueles cavaleiros; outros, Dunk conhecia das
histórias contadas nas salas comuns e ao redor das fogueiras nos acampamentos. Embora
nunca tivesse aprendido a mágica de ler e escrever, o velho fora implacável para lhe ensinar
heráldica, testando seus conhecimentos com frequência enquanto viajavam. Os rouxinóis
pertenciam a Lorde Caron da Marca, tão habilidoso com a harpa vertical quanto com uma
lança. O veado coroado era de Sor Lyonel Baratheon, o Tempestade Risonha. Dunk localizou
o caçador dos Tarly, o relâmpago púrpura da Casa Dondarrion, a maçã vermelha dos
Fossoway. Ali rugia o leão dos Lannister, ouro sobre carmesim, e lá estava a tartaruga
marinha verde-escura dos Estermont nadando em um fundo verde-claro. A tenda marrom
embaixo do garanhão vermelho só podia pertencer a Sor Otho Bracken, chamado de Bracken,
o Bruto, desde que matara Lorde Quentyn Blackwood três anos atrás durante um torneio em
Porto Real. Dunk ouviu dizer que Sor Otho acertou o machado embotado com tanta força que
enfiou o visor para dentro do elmo de Lorde Blackwood, juntamente com o rosto embaixo
dele. Dunk viu alguns estandartes de Blackwood também, no lado oeste do campo, o mais
distante possível de Sor Otho. Marbrand, Mallister, Cargyll, Westerling, Swann, Mullendore,
Hightower, Florent, Frey, Penrose, Stokeworth, Darry, Parren, Wylde; parecia que cada casa
senhorial do oeste e do sul enviara um cavaleiro ou dois a Vaufreixo para ver a bela donzela e
enfrentar as listas em sua honra.
Mas por mais que aqueles pavilhões fossem belos de se olhar, Dunk sabia que ali não havia
lugar para ele. Um manto de lã puído seria todo o seu abrigo naquela noite. Enquanto os
senhores e grandes cavaleiros jantavam capões e leitões, a refeição de Dunk seria um pedaço
duro e viscoso de carne salgada. Sabia muito bem que se acampasse naquele campo
espalhafatoso teria que suportar em silêncio tanto o escárnio quanto a zombaria descarada.
Alguns talvez o tratassem com gentileza, mas de um jeito que seria até pior.
Um cavaleiro andante precisa se agarrar com força ao seu orgulho. Sem isso, não era mais
do que um mercenário. Tenho que conquistar meu lugar naquela companhia. Se eu lutar
bem, algum senhor pode me aceitar em sua casa. Aí vou cavalgar em companhia nobre e
comer carne fresca toda noite em um salão de castelo, e erguer meu próprio pavilhão em
torneios. Mas primeiro preciso me sair bem. Relutante, virou as costas para os campos do
torneio e levou seus cavalos até as árvores.
Nos arredores do grande campo, a quase um quilômetro da vila e do castelo, encontrou um
lugar onde uma curva no riacho formava uma lagoa profunda. Um juncal denso crescia na
margem e um grande olmo frondoso se destacava acima de tudo. A grama primaveril estava
tão verde quanto o estandarte de qualquer cavaleiro, e suave ao toque. Era um belo lugar, e
ninguém o reclamara para si ainda. Esse será meu pavilhão, Dunk disse para si mesmo, um
pavilhão coberto por folhas, mais verde do que o estandarte dos Tyrell e dos Estermont.
Os cavalos vieram primeiro. Depois que haviam sido cuidados, Dunk tirou a roupa e entrou
na lagoa para lavar a poeira da viagem. “Um verdadeiro cavaleiro é tão limpo quanto
devoto”, o velho sempre dizia, insistindo para que se lavassem da cabeça aos pés cada vez
que a lua virasse, quer cheirassem mal ou não. Agora que era um cavaleiro, Dunk jurou fazer o
mesmo.
Sentou-se nu sob o olmo enquanto se secava, desfrutando o calor do ar de primavera na
pele, enquanto observava uma libélula que se movia preguiçosamente entre os juncos. Em
alguns lugares é chamada de mosca-dragão. Por que teria esse nome?, ele se perguntou.
Não parece em nada com um dragão. Não que Dunk já tivesse visto um dragão. Mas o velho
já. Dunk ouvira a história meia centena de vezes: como Sor Arlan era apenas um garotinho
quando seu avô o levara a Porto Real, e como haviam visto ali o último dragão um ano antes
de sua morte. Era uma fêmea verde, pequena e atrofiada, as asas mirradas. Nenhum de seus
ovos eclodira. “Alguns dizem que o Rei Aegon a envenenou”, o velho contava. “Aquele era o
terceiro Aegon, não o pai do Rei Daeron, mas o que chamavam de Desgraça dos Dragões, ou
Aegon, o Azarado. Ele tinha medo dos dragões, pois vira o animal devorar a própria mãe. Os
verões têm sido mais curtos desde que o último dragão morreu, e os invernos mais longos e
mais cruéis.”
O ar começou a esfriar conforme o sol mergulhava abaixo das copas das árvores. Quando
Dunk sentiu arrepios nos braços, bateu a túnica e a calça contra o tronco do olmo para tirar o
grosso da sujeira e vestiu-as novamente. Na manhã seguinte, procuraria o mestre dos jogos e
inscreveria seu nome, mas tinha outros assuntos de que precisava tratar naquela noite se
quisesse ter esperança de lutar.
Não precisava examinar seu reflexo na água para saber que não se parecia muito com um
cavaleiro, então colocou o escudo de Sor Arlan nas costas para exibir o brasão. Prendendo os
cavalos, Dunk deixou-os aparando a densa relva verde sob o olmo enquanto se dirigia a pé
para o local do torneio.
Em épocas normais, o campo servia como pastagem comunitária para o povo da vila de
Vaufreixo, do outro lado do rio, mas agora estava transformada. Uma segunda vila nascera da
noite para o dia – uma cidade de seda em vez de pedra, maior e mais bonita do que a irmã
mais velha. Dúzias de comerciantes haviam erguido suas barracas ao longo do limite do
campo, vendendo feltros e frutas, cintos e botas, peles e falcões, artefatos de barro, pedras
preciosas, utensílios de peltre, temperos, penas e todo tipo de mercadorias. Malabaristas,
titereiros e mágicos vagavam entre a multidão, exercitando seus ofícios... assim como as putas
e os punguistas. Dunk mantinha uma mão cautelosa em suas moedas.
Quando sentiu o cheiro de linguiça chiando sobre uma fogueira esfumaçada, sua boca se
encheu de água. Comprou uma com uma moeda de cobre de sua bolsa e também uma caneca de
cerveja para empurrá-la para baixo. Enquanto comia, viu um cavaleiro lutando contra um
dragão, ambos de madeira pintada. A titereira que controlava o dragão também era bonita de
se ver; muito alta, com a pele cor de oliva e o cabelo negro de Dorne. Era esguia como uma
lança, sem seios que pudessem ser notados, mas Dunk gostou do seu rosto e do jeito como
seus dedos faziam o dragão abocanhar e deslizar na ponta dos fios. Ele teria jogado um cobre
para a garota se tivesse um para dar, mas nesse momento precisava de todas as suas moedas.
Havia armeiros entre os comerciantes, como esperava que houvesse. Um tyroshi com uma
barba azul bifurcada estava vendendo elmos ornamentados, coisas maravilhosas esculpidas
em forma de aves e feras, gravadas com ouro e prata. Em outro lugar, encontrou um fabricante
de espadas vendendo lâminas de aço baratas pela rua, e outro cujo trabalho era muito melhor,
mas não era uma espada que lhe faltava.
O homem de que ele precisava estava no fundo da fileira, com uma camisa de cota de malha
e um par de manoplas articuladas de aço exibido na mesa à sua frente. Dunk inspecionou-os de
perto.
– Você faz um bom trabalho – disse.
– Não há melhor. – Um homem atarracado, o ferreiro não tinha mais do que um metro e meio
de altura, ainda que fosse tão largo quanto Dunk no peito e nos braços. Tinha uma barba negra,
mãos imensas e nenhum traço de humildade.
– Preciso de uma armadura para o torneio – Dunk lhe disse. – Uma boa cota de malha, com
gorjal, grevas e elmo. – O meio elmo do velho cabia-lhe na cabeça, mas ele queria mais
proteção para o rosto do que a que uma simples proteção nasal podia proporcionar.
O armeiro o olhou de cima a baixo.
– Você é dos grandes, mas já fiz armaduras para maiores. – Saiu de trás da mesa. – Ajoelhe,
quero medir seus ombros. Sim, e esse pescoço grosso. – Dunk se ajoelhou. O armeiro esticou
uma tira de couro cru com nós ao longo de seus ombros, grunhiu, passou a tira em volta da sua
garganta, grunhiu de novo. – Levante o braço. Não, o direito. – Grunhiu uma terceira vez. –
Agora, pode ficar em pé. – A parte interna da perna, a grossura da panturrilha e o tamanho de
sua cintura suscitaram mais grunhidos. – Tenho algumas peças na carroça que podem servir
para você – o homem disse quando terminou. – Nada enfeitado com ouro ou prata, veja bem,
apenas bom aço, forte e simples. Faço elmos que parecem elmos, não porcos alados ou frutas
estrangeiras estranhas, mas os meus servirão melhor se levar um golpe de lança no rosto.
– É tudo o que quero – Dunk falou. – Quanto custa?
– Oitocentos veados, porque hoje estou bondoso.
– Oitocentos veados? – Era mais do que ele esperava. – Eu... eu podia trocar uma armadura
velha, feita para um homem menor... um meio elmo, uma cota de malha...
– Pate de Aço vende apenas seu próprio trabalho – o homem declarou –, mas talvez eu
possa fazer uso do metal. Se não estiver muito enferrujado, aceito isso e armo você por
seiscentos veados.
Dunk podia implorar que Pate lhe desse a armadura em confiança, mas sabia o tipo de
resposta que o pedido certamente teria. Viajara com o velho tempo suficiente para aprender
que comerciantes eram notoriamente desconfiados com cavaleiros andantes, alguns dos quais
pouco melhores do que ladrões.
– Eu lhe darei duas moedas de prata agora e a armadura, e o resto das moedas pela manhã.
O armeiro o estudou por um momento.
– Duas moedas compram um dia. Depois disso, vendo meu trabalho para o próximo cliente.
Dunk pegou os veados de sua bolsa e os colocou na mão calejada do armeiro.
– Você receberá tudo. Pretendo ser um campeão aqui.
– Pretende? – Pate mordeu uma das moedas. – E aqueles outros, suponho que tenham todos
vindo aqui apenas para aplaudi-lo?
A lua estava bem alta quando ele voltou seus passos na direção do olmo. Atrás dele, a
Campina de Vaufreixo era um clarão de luzes de tochas. Os sons das músicas e risadas
pairavam por sobre a relva, mas o humor de Dunk estava sombrio. Só conseguia pensar em um
jeito de conseguir moedas para a armadura. E se fosse derrotado...
– Uma vitória é tudo de que preciso – murmurou. – Isso não é esperar demais.
Mesmo assim, o velho nunca teria esperado por isso. Sor Arlan não cavalgara em uma justa
desde que fora desmontado pelo príncipe de Pedra do Dragão em um torneio em Ponta
Tempestade, havia muitos anos.
– Não é todo homem que pode se gabar de ter quebrado sete lanças contra o melhor
cavaleiro dos Sete Reinos – ele dizia. – Nunca poderia esperar fazer algo melhor, então por
que tentar?
Dunk suspeitava que a idade de Sor Arlan tinha mais a ver com isso do que o príncipe de
Pedra do Dragão, mas nunca ousara dizer nada. O velho tinha seu orgulho, mesmo no fim. Sou
rápido e forte, ele sempre dizia. O que era verdade para ele não precisa ser verdade para
mim, Dunk disse para si mesmo teimosamente.
Estava atravessando um caminho de relva alta, ruminando algumas alternativas, quando viu
o tremeluzir de uma tocha através dos arbustos. O que é isso? Dunk não parou para pensar.
Logo estava com sua espada na mão, correndo pela relva.
Irrompeu urrando e xingando, até parar de supetão ao ver o garoto ao lado da fogueira.
– Você! – Abaixou a espada. – O que está fazendo aqui?
– Cozinhando um peixe – disse o garoto careca. – Quer um pouco?
– Quero dizer, como chegou aqui? Roubou um cavalo?
– Viajei na traseira de uma carroça, com um homem que estava trazendo alguns cordeiros
para o castelo para a mesa do senhor de Vaufreixo.
– Bem, é melhor ver se ele já foi, ou então encontrar outra carroça. Não quero você aqui.
– Não pode me obrigar a ir – o menino disse, impertinente. – Já tive o suficiente daquela
estalagem.
– Não vou aguentar mais insolências suas – Dunk avisou. – Eu devia jogá-lo sobre meu
cavalo agora mesmo e levá-lo para casa.
– Você precisaria cavalgar até Porto Real – o garoto comentou. – Perderia o torneio.
Porto Real. Por um momento, Dunk se perguntou se estava sendo zombado, mas o menino
não tinha como saber que ele nascera em Porto Real também. Outro infeliz da Baixada das
Pulgas, provavelmente, e quem pode culpá-lo por querer sair daquele lugar?
Sentiu-se um tolo parado ali, com a espada na mão, por causa de um órfão de oito anos.
Embainhou a arma, olhando carrancudo para o menino, para que ele soubesse que não
toleraria provocações. Eu devia pelo menos dar uma boa surra nele, pensou, mas o garoto
parecia tão digno de pena que não pôde se convencer a bater nele. Olhou ao redor do
acampamento. O fogo estava queimando alegremente dentro de um esmerado círculo de
pedras. Os cavalos haviam sido escovados e as roupas estavam penduradas no olmo, secando
sobre as chamas.
– O que as roupas estão fazendo ali?
– Eu as lavei – o garoto explicou. – E cuidei dos cavalos, acendi o fogo e peguei esse peixe.
Eu teria erguido seu pavilhão, mas não encontrei nenhum.
– Ali está meu pavilhão – Dunk apontou sobre a cabeça para os galhos do grande olmo que
se erguia sobre eles.
– Isso é uma árvore – o garoto falou, nem um pouco impressionado.
– É todo pavilhão de que um verdadeiro cavaleiro precisa. Eu prefiro dormir sob as estrelas
a uma tenda esfumaçada.
– E se chover?
– A árvore vai me abrigar.
– As árvores têm goteiras.
Dunk gargalhou.
– De fato. Bem, verdade seja dita, não tenho moedas para um pavilhão. E é melhor virar
esse peixe ou ele ficará queimado embaixo e cru em cima. Você nunca seria um ajudante de
cozinha.
– Seria se eu quisesse – o garoto disse, mas virou o peixe.
– O que aconteceu com seu cabelo? – Dunk perguntou para ele.
– Os meistres o rasparam. – Repentinamente constrangido, o garoto puxou o capuz do manto
marrom-escuro, cobrindo a cabeça.
Dunk ouvira dizer que faziam isso de vez em quando, para tratar piolhos, vermes ou certas
doenças.
– Está doente?
– Não – o garoto respondeu. – Qual é seu nome?
– Dunk – respondeu.
O miserável garoto deu uma sonora gargalhada, como se aquela fosse a coisa mais
engraçada que já ouvira.
– Dunk? – disse. – Sor Dunk? Isso não é nome de cavaleiro. É diminutivo de Duncan?
Era? O velho o chamava simplesmente de Dunk desde que era capaz de se lembrar, e ele
não se lembrava muito de sua vida antes.
– Duncan, sim – confirmou. – Sor Duncan de... – Dunk não tinha outro nome, nem casa
alguma; Sor Arlan o encontrara vivendo como um selvagem nos bordéis e becos da Baixada
das Pulgas. Nunca conhecera seu pai ou sua mãe. O que diria? “Sor Duncan da Baixada das
Pulgas” não soaria muito cavalheiresco. Poderia usar Centarbor, mas e se lhe perguntassem
onde era? Dunk nunca estivera em Centarbor, nem o velho falara muito sobre o lugar. Franziu
o cenho por um momento, então exclamou: – Sor Duncan, o Alto. – Ele era alto, ninguém
podia questionar isso, e soava poderoso.
O pilantrinha não parecia pensar da mesma maneira.
– Nunca ouvi falar de nenhum Sor Duncan, o Alto.
– Por acaso você conhece todos os cavaleiros dos Sete Reinos?
O menino olhou para ele com ousadia.
– Os bons.
– Sou tão bom quanto qualquer um. Depois do torneio, todos saberão disso. Você tem um
nome, ladrão?
O menino hesitou.
– Egg – disse.
Dunk não riu. A cabeça dele realmente parece um ovo3. Os garotinhos podem ser cruéis, e
os adultos também.
– Egg – disse –, eu devia lhe dar uma surra até sangrar e mandá-lo embora, mas a verdade é
que não tenho pavilhão e tampouco tenho escudeiro. Se jurar fazer o que eu lhe disser,
deixarei que me sirva durante o torneio. Depois disso, bem, veremos. Se eu decidir que vale a
pena manter você, terá roupas no corpo e comida na barriga. As roupas podem ser de tecido
grosso, e a comida, carne salgada e peixe salgado, e talvez um pouco de carne de veado de
vez em quando, onde não houver guardas da floresta por perto, mas não passará fome. E
prometo não bater em você a menos que mereça.
Egg sorriu.
– Sim, meu senhor.
– Sor – Dunk o corrigiu. – E sou apenas um cavaleiro andante. – Ele se perguntou se o velho
estava olhando por ele. Eu ensinarei a ele as artes da batalha, da mesma forma que me
ensinou, sor. Parece um rapaz apto; talvez um dia eu possa torná-lo um cavaleiro.
O peixe ainda estava um pouco cru por dentro quando o comeram, e o menino não removera
todas as espinhas, mas mesmo assim o sabor era muitíssimo melhor do que o de carne salgada
dura.
Egg logo adormeceu ao lado da fogueira que apagava. Dunk deitou de costas perto dele, as
grandes mãos atrás da cabeça, olhando para o céu noturno. Podia ouvir a música distante que
vinha do terreno do torneiro, a quase um quilômetro de distância. As estrelas estavam por todo
lado, milhares e milhares delas. Uma caiu enquanto ele a observava – um risco verde brilhante
que cintilou através das trevas e desapareceu.
Uma estrela cadente traz sorte para quem a vê, Dunk pensou. Mas os demais estão nos
pavilhões agora, encarando a seda em vez do céu. Então a sorte é só minha.
De manhã, despertou com o som de um galo cantando. Egg ainda estava ali, enrolado embaixo
do segundo melhor manto do velho. Bem, o garoto não fugiu durante a noite. É um começo.
Cutucou-o com o pé, para que despertasse.
– De pé. Há trabalho a fazer. – O menino até que se levantou rápido, esfregando os olhos. –
Ajude-me a selar Passomanso – Dunk lhe disse.
– E quanto ao desjejum?
– Temos carne salgada. Depois que terminarmos.
– Eu preferia comer o cavalo – Egg falou. – Sor.
– Vai comer meu punho se não fizer o que lhe digo. Pegue as escovas. Estão no alforje. Sim,
esse mesmo.
Escovaram juntos o pelo cor de canela do palafrém, colocaram a melhor sela de Sor Arlan
no dorso do animal e prenderam bem. Egg era um bom trabalhador quando queria, Dunk
percebeu.
– Espero ficar fora a maior parte do dia – disse para o garoto enquanto montava. – Fique
aqui e deixe o acampamento em ordem. Assegure-se de que outros ladrões não venham meter
o nariz aqui.
– Posso ficar com uma espada para espantá-los? – Egg perguntou. O garoto tinha olhos
azuis, Dunk notou, muito escuros, quase púrpura. De algum modo, a cabeça careca os fazia
parecer ainda maiores.
– Não – Dunk respondeu. – Um punhal é o bastante. E é melhor estar aqui quando eu voltar,
ouviu? Roube-me e fuja, que eu o caçarei, juro que sim. Com cães.
– Você não tem cães – Egg afirmou.
– Arranjo um – Dunk assegurou. – Só para você. – Virou Passomanso na direção do campo e
se afastou a trote, esperando que a ameaça tivesse sido suficiente para manter a honestidade
do garoto. Exceto pelas roupas que usava, pela armadura em seu alforje e pelo cavalo que
montava, tudo o que Dunk possuía no mundo estava naquele acampamento. Sou um grande
tolo em confiar tanto no garoto, mas isso não é mais do que o velho fez por mim, refletiu. A
Mãe deve tê-lo mandado para mim, para que eu possa pagar minha dívida.
Enquanto cruzava o campo, ouviu o bater de martelos vindo da margem do rio, onde
carpinteiros estavam pregando as barreiras para justas e erguendo uma arquibancada. Alguns
pavilhões novos também estavam sendo montados, enquanto os cavaleiros que haviam
chegado antes dormiam para se recuperar das diversões da noite ou se sentavam para quebrar
o jejum. Dunk podia sentir o cheiro da fumaça da lenha, assim como o do toicinho.
Ao norte do campo corria o rio Molusqueiro, afluente do poderoso Vago. Depois do vau
estreito estava a vila e o castelo. Dunk vira muitas vilas mercantis durante suas jornadas com
o velho. Esta era mais bonita do que a maioria; as casas caiadas com os telhados de palha
tinham um aspecto convidativo. Quando Dunk era menor, costumava se perguntar como seria
viver em um lugar desses; dormir todas as noites com um teto sobre a cabeça e acordar toda
manhã com as mesmas paredes ao seu redor. Pode ser que eu saiba em breve. Sim, e Egg
também. Podia acontecer. Coisas estranhas aconteciam todos os dias.
O Castelo de Vaufreixo era uma estrutura de pedra construída na forma de um triângulo, com
torres redondas erguendo-se a nove metros de altura em cada ponta e muros grossos com
ameias correndo entre eles. Estandartes laranja esvoaçavam nas ameias, mostrando o brasão
com a faixa vincada e o sol branco de seu senhor. Homens de armas em mantos laranja e
branco estavam ao lado do portão com alabardas, observando as pessoas irem e virem,
parecendo mais interessados em flertar com uma bela leiteira do que em manter alguém do
lado de fora. Dunk parou diante do homem mais baixo e barbudo que tomou por capitão e
perguntou pelo mestre dos jogos.
– Você está procurando Plummer, ele é intendente aqui. Vou lhe mostrar.
No pátio, um cavalariço ficou com Passomanso. Dunk pendurou o escudo desgastado de Sor
Arlan no ombro e seguiu o capitão da guarda até o fundo dos estábulos e depois até uma torre
construída em um ângulo da muralha exterior. Degraus de pedra íngremes levavam ao adarve.
– Veio inscrever o nome do seu mestre para as listas? – o capitão perguntou enquanto
subiam.
– É meu próprio nome que vou colocar.
– Ah, é? – Estava o homem com um sorrisinho irônico? Dunk não tinha certeza. – É aquela
porta. Deixarei você aqui e voltarei ao meu posto.
Quando Dunk abriu a porta, o intendente estava sentado a uma mesa de armar, rabiscando
com uma pena um pedaço de pergaminho. Tinha o cabelo grisalho ralo e um rosto estreito e
encovado.
– Sim? – ele disse, olhando para cima. – O que você quer?
Dunk fechou a porta.
– Você é Plummer, o intendente? Vim para o torneio. Para entrar nas listas.
Plummer contraiu os lábios.
– O torneio do meu senhor é uma disputa para cavaleiros. Você é um cavaleiro?
Ele assentiu, pensando consigo mesmo se suas orelhas estariam vermelhas.
– Um cavaleiro com um nome, suponho?
– Dunk. – Por que dissera isso? – Sor Duncan, o Alto.
– E de onde você seria, Sor Duncan, o Alto?
– De todos os lugares. Fui escudeiro de Sor Arlan de Centarbor desde que eu tinha cinco ou
seis anos. Este é o escudo dele. – Mostrou-o para o intendente. – Ele estava vindo para o
torneio, mas pegou um resfriado e morreu, então vim em seu lugar. Ele me armou cavaleiro
antes de morrer, com sua própria espada. – Dunk desembainhou a espada longa e a apoiou na
mesa de madeira gasta entre eles.
O mestre das listas não deu à lâmina mais do que uma olhada de relance.
– É uma espada, com certeza. No entanto, nunca ouvi falar nesse Arlan de Centarbor. Você
disse que era escudeiro dele?
– Ele sempre disse que pretendia que eu fosse um cavaleiro, como ele era. Quando estava
morrendo, pediu-me a espada longa e mandou que eu me ajoelhasse. Tocou-me uma vez no
ombro direito, uma vez no esquerdo, disse algumas palavras e, quando me levantei, ele disse
que eu era um cavaleiro.
– Humpf. – O homem Plummer esfregou o nariz. – Qualquer cavaleiro pode armar um
cavaleiro, é verdade, embora seja mais costumeiro ficar de vigília e ser ungido por um septão
antes de fazer seus votos. Houve alguma testemunha dessa sua cerimônia?
– Só um pisco, em cima de um espinheiro. Eu o ouvi enquanto o velho dizia as palavras. Ele
me encarregou de ser um cavaleiro bom e verdadeiro, de obedecer aos sete deuses, defender
os fracos e os inocentes, servir fielmente ao meu senhor e defender o reino com todas as
minhas forças, e eu jurei que o faria.
– Não duvido. – Plummer não se permitiu chamá-lo de sor, Dunk não pôde deixar de notar.
– Preciso consultar Lorde Ashford. Você ou seu antigo mestre eram conhecidos de algum dos
bons cavaleiros aqui reunidos?
Dunk pensou por um momento.
– Havia um pavilhão com o estandarte da Casa Dondarrion? O negro, com o relâmpago
púrpura?
– Trata-se de Sor Manfred, daquela casa.
– Sor Arlan serviu o senhor seu pai em Dorne, há três anos. Sor Manfred pode se lembrar de
mim.
– Eu o aconselho a falar com ele. Se ele atestar sua identidade, traga-o aqui com você
amanhã, neste mesmo horário.
– Como quiser, senhor. – E se dirigiu para a porta.
– Sor Duncan – o intendente o chamou.
Dunk se virou.
– Está ciente de que aqueles que são derrotados em torneio perdem as armas, a armadura e o
cavalo para os vitoriosos, e de que é necessário resgate para tê-los de volta? – o homem
disse.
– Eu sei.
– E tem moedas para pagar o resgate?
Agora ele sabia que suas orelhas estavam vermelhas.
– Não vou precisar de moedas – disse, rezando para que fosse verdade. Tudo de que
preciso é uma vitória. Se eu ganhar minha primeira disputa, terei o cavalo e a armadura do
perdedor, ou seu ouro, e poderei aguentar uma derrota.
Desceu lentamente os degraus, relutante com o que precisava fazer a seguir. No pátio,
agarrou um dos cavalariços pelo colarinho.
– Preciso falar com o mestre dos cavalos de Lorde Ashford.
– Eu o encontrarei para você.
Os estábulos estavam frescos e escuros. Um garanhão cinzento indisciplinado tentou mordê-
lo quando passou por ele, mas Passomanso só relinchou baixinho e encostou o focinho na mão
de Dunk quando ele a levou até sua cabeça.
– Você é uma boa garota, não é? – murmurou. O velho sempre dizia que um cavaleiro nunca
deve amar um cavalo, já que era provável que alguns morreriam sob sua sela, mas nunca
seguiu o próprio conselho. Dunk com frequência o via gastar o último cobre em uma maçã
para a velha Castanha ou um punhado de aveia para Passomanso e Trovão. O palafrém fora a
égua de montar de Sor Arlan, e o carregara incansavelmente por milhares de quilômetros, de
um lado para o outro pelos Sete Reinos. Dunk sentia como se estivesse traindo uma velha
amiga, mas que escolha tinha? Castanha era velha demais para valer alguma coisa, Trovão iria
levá-lo às listas.
Algum tempo passou antes que o mestre dos cavalos se dignasse a aparecer. Enquanto
esperava, Dunk ouviu o retumbar de trompetes das muralhas e uma voz no pátio. Curioso,
levou Passomanso pela porta do estábulo para ver o que estava acontecendo. Um grande grupo
de cavaleiros e arqueiros montados entrava pelos portões, uma centena de homens no mínimo,
cavalgando alguns dos cavalos mais esplêndidos que Dunk já vira. Algum grande senhor está
chegando. Agarrou o braço de um cavalariço que passava correndo.
– Quem são eles?
O menino olhou para ele com estranheza.
– Não vê os estandartes? – Puxou o braço para se libertar e saiu em disparada.
Os estandartes... Quando Dunk virou a cabeça, uma rajada de vento ergueu a seda negra da
flâmula no alto de uma vara alta, e o feroz dragão de três cabeças da Casa Targaryen pareceu
abrir as asas, soltando fogo escarlate. O porta-estandarte era um cavaleiro alto, vestido com
uma armadura de escamas brancas entalhadas em ouro e um manto branco puro fluindo dos
ombros. Dois dos outros cavaleiros também estavam armados de branco da cabeça aos pés.
Cavaleiros da Guarda Real com o estandarte do rei. Não era de estranhar que Lorde Ashford
e seus filhos saíssem correndo pelas portas da fortaleza, e a bela donzela também, uma garota
baixa, com cabelos louros e rosto rosado redondo. Ela não me parece tão bela, Dunk pensou.
A garota titereira é mais bonita.
– Garoto, largue esse pangaré e venha cuidar do meu cavalo.
Um cavaleiro desmontara diante dos estábulos. Ele está falando comigo, Dunk percebeu.
– Não sou um cavalariço, senhor.
– Não é esperto o bastante para isso? – O interlocutor usava um manto negro debruado de
cetim escarlate, mas por baixo seu traje era resplandecente como uma chama, todo vermelho,
amarelo e dourado. Magro e empertigado como uma adaga, ainda que de altura mediana, devia
ter quase a mesma idade de Dunk. Cachos de cabelo louro-prateado emolduravam um rosto
esculpido e imperioso; testa alta e maçãs do rosto pronunciadas, nariz afilado e uma pele clara
e lisa, sem manchas. Seus olhos eram de um violeta profundo. – Se não consegue cuidar de um
cavalo, arranje-me algum vinho e uma prostituta bonita.
– Eu... senhor, perdão, não sou um criado tampouco. Tenho a honra de ser um cavaleiro.
– A cavalaria entrou em tristes dias – disse o principezinho, mas então um dos cavalariços
apareceu correndo e ele se voltou para lhe entregar as rédeas de seu palafrém, um esplêndido
baio puro-sangue. Dunk foi esquecido num instante. Aliviado, entrou novamente nos estábulos
para esperar pelo mestre dos cavalos. Já se sentia desconfortável o bastante perto dos
senhores em seus pavilhões, não tinha nada que falar com príncipes.
Aquele belo jovem era um príncipe, disso não tinha dúvidas. Os Targaryen tinham o sangue
da perdida Valíria, do outro lado do mar, e seus cabelos louro-prateados e olhos cor de
violeta os diferenciavam dos homens comuns. Dunk sabia que o Príncipe Baelor era mais
velho, mas o jovem bem que podia ser um de seus filhos: Valarr, que era com frequência
chamado de “Jovem Príncipe” para distingui-lo de seu pai, ou Matarys, “Príncipe Ainda Mais
Jovem”, como o bobo da corte do velho Lorde Swann o chamara uma vez. Havia outros
principezinhos também, primos de Valarr e Matarys. O bom Rei Daeron tinha quatro filhos
adultos, três deles com seus próprios filhos. A linhagem dos reis-dragões quase desaparecera
durante a época de seu pai, mas era senso comum que Daeron II e seus filhos a tinham
assegurado para sempre.
– Você. Homem. Perguntou por mim. – O mestre dos cavalos de Lorde Ashford tinha um
rosto vermelho que ficava ainda mais vermelho com a libré laranja e um jeito brusco de falar.
– O que é? Não tenho tempo para...
– Quero vender este palafrém – Dunk o interrompeu rapidamente, antes que o homem o
mandasse embora. – É uma boa égua, segura no passo...
– Não tenho tempo, já lhe disse. – O homem não deu mais do que um olhar de relance para
Passomanso. – Meu senhor de Ashford não precisa disso. Leve-a até a cidade, talvez Henly
lhe dê uma moeda de prata ou duas. – E com a mesma rapidez, deu as costas.
– Obrigado, senhor. – Dunk disse antes que o homem partisse. – Senhor, o rei veio?
O mestre dos cavalos riu para ele.
– Não, graças aos deuses. Essa infestação de príncipes já é provação suficiente. Onde vou
arrumar cocheiras para todos esses animais? E forragem? – Foi embora a passos largos,
gritando com seus cavalariços.
Quando Dunk deixou o estábulo, Lorde Ashford havia escoltado seus convidados
principescos para o salão, mas dois dos cavaleiros da Guarda Real em suas armaduras
brancas e mantos nevados ainda permaneciam no pátio, conversando com o capitão da guarda.
Dunk parou diante deles.
– Senhores, sou Sor Duncan, o Alto.
– Prazer em conhecê-lo, Sor Duncan – respondeu o maior dos cavaleiros brancos. – Sou Sor
Roland Crakehall, e este é meu irmão juramentado, Sor Donnel de Valdocaso.
Os sete campeões da Guarda Real eram os guerreiros mais poderosos de todos os Sete
Reinos, exceto, talvez, pelo príncipe herdeiro, o próprio Baleor Quebra-Lança.
– Vieram para entrar nas listas? – Dunk perguntou ansiosamente.
– Não seria adequado para nós lutarmos contra aqueles que juramos proteger – respondeu
Sor Donnel, ruivo de cabelo e barba.
– O Príncipe Valarr tem a honra de ser um dos campeões da Senhora Ashford – explicou Sor
Roland –, e dois de seus primos pretendem desafiá-lo. O resto de nós veio apenas assistir.
Aliviado, Dunk agradeceu os cavaleiros brancos pela gentileza e saiu pelos portões do
castelo antes que o outro príncipe pensasse em abordá-lo. Três principezinhos, ponderou
enquanto virava o palafrém na direção das ruas da vila de Vaufreixo. Valarr era o filho mais
velho do Príncipe Baelor, segundo na linha de sucessão ao Trono de Ferro, mas Dunk não
sabia quanto da fabulosa perícia do pai com a lança e a espada ele teria herdado. Sobre os
outros Targaryen, sabia menos ainda. O que farei se tiver uma disputa contra um príncipe?
Terei permissão de desafiar alguém de nascimento tão elevado? Não sabia a resposta. O
velho com frequência dizia que ele tinha a cabeça tão dura quanto a muralha de um castelo,
mas só agora percebia isso.
Henly gostou bastante da aparência de Passomanso até ouvir Dunk dizer que queria vendê-la.
Então tudo o que o cocheiro conseguia ver nela eram defeitos. Ofereceu trezentas moedas de
prata. Dunk disse que precisava de três mil. Depois de muita discussão e impropérios,
fecharam em setecentos e cinquenta veados de prata. Era um acordo mais próximo do preço
inicial de Henly que do de Dunk, o que o fez se sentir perdedor no embate, mas o cocheiro não
subiria o preço, então, no fim, não tinha outra escolha senão se render. Uma segunda discussão
começou quando Dunk declarou que o preço não incluía a sela, e Henly insistiu que sim.
Finalmente foi tudo acertado. Quando Henly saiu para pegar suas moedas, Dunk acariciou a
crina de Passomanso e lhe disse para ser corajosa.
– Se eu vencer, volto e compro você novamente, prometo. – Não tinha dúvida de que todos
os defeitos do palafrém desapareceriam nos dias que se passariam até lá, e que ela valeria
duas vezes o preço atual.
O cocheiro lhe deu três peças de ouro e o resto em prata. Dunk mordeu uma das moedas de
ouro e sorriu. Nunca provara ouro antes, nem o manuseara.
– Dragões – o homem se referiu às moedas, uma vez que um dos lados era estampado com o
dragão de três cabeças da Casa Targaryen. O outro trazia o busto do Rei. Duas das moedas
que Henly lhe deu tinham o rosto do Rei Daeron; a terceira era mais antiga, bastante gasta e
mostrava um homem diferente. O nome estava embaixo do busto, mas Dunk não conseguia ler.
Viu que um pouco de ouro fora raspado das bordas. Ele disse isso a Henly, e em voz alta. O
cocheiro resmungou, mas lhe deu mais algumas moedas de prata e um punhado de cobres para
compensar o peso. Dunk lhe devolveu alguns cobres e acenou com a cabeça na direção de
Passomanso.
– Isso é para ela – falou. – Garanta que receba um pouco de aveia esta noite. E uma maçã
também.
Com o escudo no braço e a algibeira da velha armadura pendurada no ombro, Dunk saiu a
pé pelas ruas ensolaradas da vila de Vaufreixo. O peso de todas aquelas moedas em sua bolsa
o fazia se sentir estranho; por um lado, quase tonto e, por outro, ansioso. O velho nunca
confiara nele com mais de uma moeda ou duas por vez. Poderia viver um ano com essas
moedas. E o que farei quando acabar? Vender Trovão? Essa estrada terminaria na
mendicância ou na vida do crime. Nunca mais terei essa chance, preciso arriscar tudo.
Quando voltou chapinhando pelo vau para a margem sul do Molusqueiro, a manhã estava
quase no fim e o terreno do torneio ganhava vida mais uma vez. Os vendedores de vinho e os
fabricantes de linguiças faziam um comércio animado; um urso dançarino se movia ao som da
música de seu mestre e, enquanto um cantor interpretava “O urso e a bela donzela”, artistas
faziam malabarismos e os titereiros terminavam outra luta.
Dunk parou para ver o dragão de madeira ser morto. Quando o boneco do cavaleiro cortou a
cabeça do animal e a serragem vermelha se espalhou pela relva, ele deu uma gargalhada alta e
jogou dois cobres para a garota.
– Um pela noite passada – gritou. Ela apanhou as moedas no ar e lhe devolveu o sorriso
mais doce que já vira.
É para mim que ela sorri ou para as moedas? Dunk nunca estivera com uma garota, e elas
o deixavam nervoso. Uma vez, há três anos, quando a bolsa do velho estava cheia depois de
meio ano de serviços para o cego Lorde Florent, ele disse a Dunk que era hora de levá-lo a
um bordel e torná-lo homem. Mas estava bêbado e, quando ficou sóbrio, não se lembrou do
que dissera. Dunk ficara envergonhado demais para lembrá-lo. De qualquer modo, não tinha
certeza se queria uma puta. Se não podia ter uma donzela bem-nascida como um cavaleiro de
verdade, queria uma que pelo menos gostasse mais dele do que de sua prata.
– Quer tomar uma caneca de cerveja? – perguntou para a titereira enquanto ela enfiava o
sangue-serragem de volta no dragão. – Comigo, quero dizer? Ou uma linguiça? Experimentei a
linguiça noite passada, e estava boa. São feitas de porco, acho.
– Agradeço, senhor, mas tenho outro espetáculo. – A garota se levantou e correu até a
mulher dornesa gorda e feroz que manejava o cavaleiro fantoche, enquanto Dunk ficou ali
parado, sentindo-se estúpido. No entanto, gostou do jeito como ela correu. Uma garota
bonita, e alta. Eu não teria que me ajoelhar para beijar essa aí. Ele sabia como beijar. Uma
taverneira lhe mostrara uma noite em Lannisporto, havia um ano, mas era tão baixa que tivera
que se sentar na mesa para alcançar os lábios dele. A lembrança fez suas orelhas queimarem.
Que grande tolo ele era. Era na justa que tinha que pensar, não em beijos.
Os carpinteiros de Lorde Ashford estavam caiando as barreiras de madeira acima da cintura
que separariam os adversários. Dunk observou-os trabalhar por um tempo. Havia cinco pistas,
dispostas de norte a sul, para que nenhum dos competidores cavalgasse com o sol nos olhos.
Uma arquibancada de três níveis fora erguida no lado oriental das listas, com uma cobertura
laranja para proteger os senhores e as senhoras da chuva e do sol. A maior parte se sentaria
em bancos. Mas quatro cadeiras de espaldar alto foram erguidas no centro da plataforma para
Lorde Ashford, a bela donzela e os príncipes visitantes.
Na beira oriental do campo, um estafermo fora erguido e uma dúzia de cavaleiros o
golpeava com suas lanças, fazendo o braço de madeira girar todas as vezes que atingiam o
escudo maltratado suspenso em uma das pontas. Dunk observou o Bracken, o Bruto, atacar na
sua vez, e em seguida Lorde Caron da Marca. Não monto tão bem como nenhum deles,
pensou inquieto.
Por todos os lados, homens treinavam a pé, atirando-se uns contra os outros com espadas de
madeira, enquanto seus escudeiros ficavam gritando conselhos irreverentes. Dunk viu um
jovem atarracado tentando resistir a um cavaleiro musculoso que parecia ágil e rápido como
um gato da montanha. Ambos tinham a maçã vermelha dos Fossoway pintada nos escudos, mas
o do homem mais jovem logo foi cortado e quebrado em pedaços.
– Aqui está uma maçã que ainda não está madura – o mais velho disse enquanto acertava o
elmo do outro. O Fossoway mais jovem estava com hematomas e sangrando quando desistiu,
mas seu adversário quase não ofegava. Levantou o visor, olhou ao redor, viu Dunk e disse: –
Você aí. Sim, você, o grandão. Cavaleiro do cálice alado. Está usando uma espada longa?
– É minha por direito – Dunk disse na defensiva. – Sou Sor Duncan, o Alto.
– E eu sou Sor Steffon Fossoway. Importa-se de treinar comigo, Sor Duncan, o Alto? Seria
bom ter alguém novo com quem cruzar espadas. Meu primo ainda não está maduro, como pode
ver.
– Faça isso, Sor Duncan – instou o Fossoway espancado enquanto tirava o elmo. – Posso
não estar maduro, mas meu bom primo está podre até o caroço. Arranque as sementes dele na
pancada.
Dunk balançou a cabeça. Por que aqueles fidalgos o envolviam em suas disputas? Não
queria fazer parte daquilo.
– Agradeço, sor, mas tenho questões a resolver. – Estava desconfortável por carregar tantas
moedas. Quanto antes pagasse Pate de Aço e conseguisse sua armadura, mais feliz ficaria.
Sor Steffon o olhou com desdém.
– O cavaleiro andante tem questões. – Olhou em volta e encontrou outro possível oponente
passando indolentemente ali perto. – Sor Grance, prazer em vê-lo. Venha treinar comigo. Sei
cada truque fraco que meu primo Raymun aprendeu, e parece que Sor Duncan precisa voltar
para suas andanças. Venha, venha.
Dunk se afastou enrubescido. Ele nem tinha muitos truques, fracos ou não, e não queria que
ninguém o visse lutar até o torneio. O velho sempre dizia que quanto melhor conhecesse seu
adversário, mais fácil seria derrotá-lo. Cavaleiros como Sor Steffon tinham olhos aguçados
para descobrir a fraqueza de um homem em um relance. Dunk era forte e rápido, e tinha o peso
e o alcance a seu favor, mas não acreditava nem por um momento que suas habilidades se
comparassem às dos demais. Sor Arlan lhe ensinara o melhor que podia, mas o velho nunca
fora o melhor dos cavaleiros, nem quando jovem. Grandes cavaleiros não viviam em
andanças, nem morriam na beira de uma estrada enlameada. Isso não vai acontecer comigo,
Dunk prometeu. Vou mostrar que posso ser mais do que um cavaleiro andante.
– Sor Duncan – o Fossoway mais jovem correu para alcançá-lo. – Eu não devia tê-lo
incentivado a treinar com meu primo. Eu estava zangado com a arrogância dele, e você é tão
grande que pensei... bem, foi errado de minha parte. Você não está de armadura. Ele teria
quebrado sua mão se pudesse, ou um joelho. Ele gosta de espancar os homens no campo de
treinamento para que estejam feridos e vulneráveis mais tarde, caso ele os encontre nas listas.
– Ele não quebrou você.
– Não, mas eu sou do sangue dele, embora ele seja do ramo principal da macieira, como
nunca cansa de me lembrar. Sou Raymun Fossoway.
– Muito prazer. Você e seu primo vão combater no torneio?
– Ele vai, com certeza. Quanto a mim, gostaria de poder. Sou só um escudeiro por enquanto.
Meu primo prometeu me armar cavaleiro, mas insiste que ainda não estou maduro. – Raymun
tinha o rosto quadrado, nariz achatado e cabelo curto e lanoso, mas seu sorriso era
contagiante. – Você tem uma aparência desafiadora, me parece. Pretende acertar o escudo de
quem?
– Não faz diferença – Dunk falou. Aquilo era o que se esperava que dissesse, embora
fizesse toda a diferença do mundo. – Não vou entrar nas listas até o terceiro dia.
– E até lá, alguns dos campeões já terão caído, sim – Raymun disse. – Bem, que o Guerreiro
sorria para você, sor.
– E para você. – Se ele é só um escudeiro, que direito tenho de ser um cavaleiro? Um de
nós é um tolo. A prata na bolsa de Dunk tilintava a cada passo, mas ele poderia perder tudo
em um piscar de olhos, e sabia disso. Mesmo as regras do torneio trabalhavam contra ele,
tornando muito improvável que viesse a enfrentar um adversário pouco experiente ou fraco.
Havia uma dúzia de formatos diferentes que um torneio podia seguir, de acordo com a
vontade do senhor que o organizava. Alguns eram batalhas simuladas entre equipes de
cavaleiros, outros eram selvagens combates corpo a corpo nos quais a glória ficava para o
último cavaleiro a permanecer em pé. Enquanto os combates individuais eram a regra, os
pares eram algumas vezes determinados por sorteio, outras pelo mestre dos jogos.
Lorde Ashford estava organizando aquele torneio para celebrar o décimo terceiro dia do
nome de sua filha. A bela donzela se sentaria ao lado do pai como principal rainha do amor e
da beleza. Cinco campeões usando seus favores a defenderiam. Todos os outros deviam
obrigatoriamente ser desafiantes, mas qualquer homem que derrotar um dos campeões tomaria
seu lugar e ficaria como campeão, até que outro desafiante o derrotasse. No final de três dias
de justas, os cinco que permanecessem determinariam se a bela donzela manteria a coroa do
amor e da beleza, ou se outra a usaria em seu lugar.
Dunk encarou as pistas cobertas de relva e as cadeiras vazias nas arquibancadas e ponderou
suas chances. Uma vitória era tudo de que precisava; então poderia se intitular um dos
campeões da Campina de Vaufreixo, mesmo que só por uma hora. O velho vivera quase
sessenta anos e nunca fora campeão. Não é esperar demais, se os deuses forem bons.
Recordou de todas as canções que ouvira, canções do cego Symeon Olhos de Estrela e do
nobre Serwyn do Escudo-Espelhado, sobre o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, sobre
Sor Ryam Redwyne e sobre Florian, o Bobo. Todos tinham alcançado vitórias contra inimigos
muito mais terríveis do que qualquer um que ele fosse encarar. Mas eles eram grandes heróis,
homens corajosos de nascimento nobre, exceto Florian. E o que eu sou? Dunk da Baixada
das Pulgas? Ou Sor Duncan, o Alto?
Supunha que descobriria a verdade em breve. Ergueu a algibeira com a armadura e virou os
pés na direção das bancas dos comerciantes, em busca de Pate de Aço.
Egg trabalhara corajosamente no acampamento. Dunk estava satisfeito; tinha ficado com um
pouco de medo que o escudeiro fugisse novamente.
– Conseguiu um bom preço pelo palafrém? – o garoto perguntou.
– Como sabe que a vendi?
– Você saiu cavalgando e voltou andando. Se ladrões o tivessem roubado, estaria mais
zangado do que está.
– Consegui o bastante para isso – Dunk pegou a nova armadura para mostrar ao menino. –
Se chegar a ser um cavaleiro, vai precisar distinguir aço bom de ruim. Olhe aqui, isso é
trabalho bom. Essa cota de malha é dupla, cada elo ligado a outros dois, vê? Dá mais proteção
do que a simples. E o elmo, Pate o arredondou em cima, vê como ele se curva? Uma espada
ou um machado vão escorregar por ele, em vez de penetrarem como em um elmo de topo
plano. – Dunk colocou o grande elmo sobre a cabeça. – Como fico?
– Não tem viseira – Egg afirmou.
– Há buracos para o ar. Viseiras são pontos fracos. – Pate de Aço dissera isso. “Se
soubesse quantos cavaleiros levaram uma flecha no olho quando ergueram a viseira para
tomar um pouco de ar fresco, nunca ia querer uma”, ele contara para Dunk.
– Também não tem espigão – Egg comentou. – É simples.
Dunk tirou o elmo.
– Simples está bom para aqueles como eu. Vê como o aço é brilhante? Será sua tarefa
mantê-lo assim. Sabe como limpar a cota de malha?
– Em um barril de areia – o garoto disse. – Mas você não tem um barril. Comprou um
pavilhão também, sor?
– Não consegui um preço tão bom. – O garoto é ousado demais; eu devia acabar com isso
na pancada. No entanto, ele sabia que não faria isso. Gostava da ousadia. Ele precisava ser
ousado. Meu escudeiro é mais corajoso do que eu, e mais esperto. – Fez um bom trabalho
aqui, Egg. – Dunk comentou. – Amanhã, irá comigo. Dar uma olhada nos campos do torneio.
Compraremos aveia para os cavalos e pão fresco para nós. Talvez um pedaço de queijo
também; estão vendendo um bom queijo em uma das barracas.
– Não preciso entrar no castelo, preciso?
– Por que não? Um dia pretendo viver em um castelo. Espero conquistar um lugar acima do
sal antes de morrer.
O menino não disse nada. Talvez tenha receio de entrar no salão de um senhor, Dunk
refletiu. Não é mais do que esperado. Ele superará isso com o tempo. Voltou a admirar sua
armadura e a se perguntar quanto tempo a usaria.
Sor Manfred era um homem magro com uma expressão amarga. Usava um sobretudo preto
recortado com o relâmpago púrpura da Casa Dondarrion, mas Dunk teria se lembrado dele do
mesmo modo, pela juba rebelde de cabelos louro-avermelhados.
– Sor Arlan serviu seu pai quando ele e Lorde Caron expulsaram o Rei Abutre das
Montanhas Vermelhas, sor – disse apoiado em um joelho. – Eu era um menino naquela época,
mas era escudeiro dele. Sor Arlan de Centarbor.
Sor Manfred fez uma careta.
– Não. Não o conheço. Nem a você, garoto.
Dunk lhe mostrou o escudo do velho.
– Este era o brasão dele, o cálice alado.
– O senhor meu pai levou oitocentos cavaleiros e quase quatro mil homens a pé para as
montanhas. Não dá para esperar que eu me lembre de cada um deles, nem dos escudos que
carregavam. Pode ser que estivesse conosco, mas... – Sor Manfred deu de ombros.
Dunk ficou sem palavras por um instante. O velho foi ferido servindo seu pai, como pode
ter esquecido dele?
– Não permitirão que eu desafie, a menos que algum cavaleiro ou senhor ateste minha
identidade.
– E o que eu tenho com isso? – Sor Manfred falou. – Já lhe dei o suficiente do meu tempo,
sor.
Se voltasse para o castelo sem Sor Manfred, estaria perdido. Dunk olhou o relâmpago
púrpura bordado na lã negra do sobretudo de Sor Manfred e disse:
– Lembro-me de seu pai contar no acampamento como sua casa obteve esse símbolo. Uma
noite de tempestade, enquanto o primeiro de sua linhagem levava uma mensagem pela Marca
de Dorne, uma flecha matou o cavalo que ele montava e o atirou ao chão. Dois dorneses
saíram das trevas com cotas de malha e elmos espigados. A espada dele quebrara embaixo do
corpo quando caíra. Quando viu isso, pensou que estivesse condenado. Mas quando os
dorneses se aproximaram para acabar com ele, um relâmpago estalou no céu. Era púrpura
brilhante e ardente, e se dividiu, atingindo os dorneses e matando-os ali mesmo. A mensagem
garantiu ao Rei da Tempestade a vitória sobre os dorneses, e em agradecimento ele elevou o
mensageiro à nobreza. Foi o primeiro Lorde Dondarrion, que então adotou como armas um
relâmpago púrpura bifurcado sobre um fundo negro salpicado de estrelas.
Se Dunk pensou que a história impressionaria Sor Manfred, não podia estar mais enganado.
– Todo camareiro e lacaio que já serviu meu pai escuta essa história cedo ou tarde. Saber
disso não o torna um cavaleiro. Desapareça da minha vista, sor.
Foi com o coração pesado que Dunk voltou ao Castelo de Vaufreixo, perguntando-se o que
poderia dizer para que Plummer lhe garantisse o direito de desafiar. No entanto, o intendente
não estava em seu aposento na torre. Um guarda lhe disse que ele poderia ser encontrado no
Grande Salão.
– Devo esperar aqui? – Dunk perguntou. – Quanto tempo ele vai demorar?
– Como vou saber? Faça o que quiser.
O Grande Salão não era tão grande quanto os salões costumavam ser, mas Vaufreixo era um
castelo pequeno. Dunk entrou por uma porta lateral e viu o intendente imediatamente. Estava
com Lorde Ashford e uma dúzia de outros homens no fundo do salão. Caminhou na direção
deles, ao longo de uma parede na qual estavam penduradas tapeçarias de frutas e flores.
– ... mais preocupado se fossem seus filhos, aposto – um homem zangado dizia quando Dunk
se aproximou. Seu cabelo liso e a barba aparada eram tão claros que pareciam brancos na
penumbra do salão, mas, quando chegou mais perto, Dunk viu que na verdade eram de uma
pálida cor prateada com toques de ouro.
– Daeron já fez isso antes – outro respondeu. Plummer estava posicionado de modo que
impedia que Dunk visse quem falava. – Nunca devia ter ordenado que ele entrasse nas listas.
Ele pertence a um campo de torneios tanto quanto Aerys ou Rhaegel.
– Com isso você quer dizer que ele preferiria montar uma puta a um cavalo – o primeiro
homem comentou. De constituição forte e poderosa, o príncipe (certamente era um príncipe)
usava uma couraça de couro coberta com rebites de prata sob um pesado manto enfeitado com
arminho. Cicatrizes de varíola marcavam suas bochechas, apenas parcialmente ocultas pela
barba prateada. – Não preciso ser recordado das falhas do meu filho, irmão. Ele só tem
dezoito anos. Pode mudar. Vai mudar, malditos sejam os deuses, ou juro que mando matá-lo.
– Não seja tão idiota. Daeron é o que é, mas ainda é nosso sangue. Não tenho dúvidas de
que Sor Roland vai transformá-lo, junto com Aegon.
– Depois que o torneio acabar, talvez.
– Aerion está aqui. É um lanceiro melhor do que Daeron, de qualquer modo, se é o torneio
que o preocupa. – Dunk podia ver o homem que falava agora. Estava sentado na cadeira
principal, com um maço de pergaminhos na mão e Lorde Ashford por sobre seu ombro.
Mesmo sentado, parecia ser uma cabeça mais alto do que o outro, a julgar pelas longas pernas
esticadas diante de si. Seu cabelo cortado curto era escuro e estava salpicado de cinza; o
maxilar era forte, sem barba. Seu nariz parecia ter sido quebrado mais de uma vez. Embora
estivesse vestido com simplicidade, com um gibão verde, manto marrom e botas gastas, havia
um peso nele, uma impressão de poder e certeza.
Ocorreu a Dunk que ele havia se intrometido em algo que nunca devia ter ouvido. É melhor
ir embora e voltar mais tarde, depois que terminarem, decidiu. Mas já era tarde demais. De
repente, o príncipe com barba prateada reparou nele.
– Quem é você e o que pretende nos interrompendo? – exigiu saber com aspereza.
– É o cavaleiro que nosso bom intendente estava esperando – o homem sentado falou,
sorrindo para Dunk de uma maneira que sugeria que estivera ciente da presença dele todo o
tempo. – Você e eu somos os intrusos aqui, irmão. Aproxime-se, sor.
Dunk avançou, incerto do que era esperado dele. Olhou para Plummer, mas não obteve
nenhuma ajuda ali. O intendente de cara encovada que fora tão enérgico no dia anterior agora
estava em silêncio, estudando as pedras do chão.
– Senhores – falou –, pedi a Sor Manfred Dondarrion que atestasse minha identidade para
que eu pudesse entrar nas listas, mas ele se recusa. Diz que não me conhece. Mas Sor Arlan o
serviu, eu juro. Tenho sua espada e seu escudo, eu...
– Um escudo e uma espada não fazem um cavaleiro – declarou Lorde Ashford, um homem
grande e calvo, com um rosto redondo e vermelho. – Plummer me falou de você. Mesmo que
acreditemos que essas armas pertenceram a esse Sor Arlan de Centarbor, você poderia ter
achado o homem morto e as ter roubado. A menos que tenha uma prova melhor do que diz,
alguma coisa escrita ou...
– Eu me lembro de Sor Arlan de Centarbor – comentou em voz baixa o homem sentado na
cadeira principal. – Nunca ganhou um torneio, que eu saiba, mas nunca se envergonhou
tampouco. Há dezesseis anos, em Porto Real, ele derrotou Lorde Stokeworth e o Bastardo de
Harrenhal no corpo a corpo, e muitos anos antes, em Lannisporto, derrubou o próprio Leão
Grisalho do cavalo. O leão não era tão grisalho naquela época, certamente.
– Ele me falou sobre isso muitas vezes – Dunk falou.
O homem alto o observou.
– Então, sem dúvida, você se lembra do nome verdadeiro do Leão Grisalho.
Por um momento, não havia coisa alguma na cabeça de Dunk. Mil vezes o velho me contou
essa história, mil vezes, o leão, o leão, o nome dele, o nome dele, o nome dele... Estava
quase entrando em desespero quando de repente lembrou.
– Sor Damon Lannister! – gritou. – O Leão Grisalho! É Senhor do Rochedo Casterly agora.
– É isso mesmo – disse o homem alto de modo agradável. – E entra nas listas de amanhã. –
Sacudiu a pilha de pergaminhos na mão.
– Como é possível que se lembre de um cavaleiro andante insignificante que teve a sorte de
desmontar Damon Lannister há dezesseis anos? – disse o príncipe de barba prateada,
franzindo o cenho.
– Tenho o costume de aprender tudo o que posso sobre meus adversários.
– Por que se dignaria a participar de uma justa com um cavaleiro andante?
– Foi há nove anos, em Ponta Tempestade. Lorde Baratheon organizou um torneio de lanças
para celebrar o nascimento de um neto. O sorteio fez de Sor Arlan meu oponente no primeiro
confronto. Quebramos quatro lanças antes que eu o derrubasse.
– Sete – insistiu Dunk –, e isso foi contra o Príncipe de Pedra do Dragão! – Nem bem as
palavras tinham saído e ele desejou não tê-las dito. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma
muralha de castelo, ele podia ouvir o velho repreendendo.
– Pois assim foi. – O príncipe com o nariz quebrado sorriu gentilmente. – As histórias
crescem ao serem contadas, eu sei. Não pense mal de seu velho mestre, mas receio que tenham
sido apenas quatro lanças.
Dunk ficou grato de o salão estar escuro; sabia que suas orelhas estavam vermelhas.
– Meu senhor – Não, isso é errado também. – Vossa Graça. – Caiu de joelhos e abaixou a
cabeça. – Se diz que são quatro, não pretendi... eu nunca... O velho, Sor Arlan, costumava
dizer que eu era tão cabeça-dura quanto uma muralha de castelo e lento como um auroque.
– E forte como um auroque, pelo que posso ver – disse Baelor Quebra-Lança. – Nenhuma
ofensa foi feita, sor. Levante-se.
Dunk ficou em pé, perguntando-se se devia manter a cabeça baixa ou se tinha permissão
para olhar um príncipe no rosto. Estou falando com Baelor Targaryen, Príncipe de Pedra do
Dragão, Mão do Rei e herdeiro legítimo do Trono de Ferro de Aegon, o Conquistador. O que
um cavaleiro andante poderia ousar dizer a uma pessoa dessas?
– Vo-você lhe devolveu o cavalo e a armadura e não pediu resgate, eu me lembro –
gaguejou. – O velho, Sor Arlan, disse-me que você era a alma da cavalaria e que um dia os
Sete Reinos estariam seguros em suas mãos.
– Rezo para que demore muitos anos ainda – o Príncipe Baelor disse.
– Não – Dunk falou, horrorizado. Quase disse: Não quis dizer que o rei devia morrer, mas
se calou a tempo. – Sinto muito, senhor. Vossa Graça, quero dizer.
Muito depois se lembrou de que o homem atarracado com a barba prateada tinha se dirigido
ao Príncipe Baelor como irmão. Ele é sangue do dragão também, que maldito idiota sou eu.
Só podia ser o Príncipe Maekar, o mais novo dos quatro filhos do Rei Daeron. O Príncipe
Aerys era dado aos livros, e o Príncipe Rhaegel era louco, dócil e doente. Nenhum deles
cruzaria metade do reino para estar presente em um torneio, mas dizia-se que Maekar era um
guerreiro formidável por mérito próprio, embora sempre à sombra de seu irmão mais velho.
– Deseja entrar nas listas, é isso? – perguntou o Príncipe Baelor. – Essa decisão cabe ao
mestre dos jogos, mas não vejo razão para negar sua participação.
O intendente inclinou a cabeça.
– Como queira, meu senhor.
Dunk tentou balbuciar seus agradecimentos, mas o Príncipe Maekar o interrompeu.
– Muito bem, sor, você está grato. Agora saia daqui.
– Você precisa perdoar meu nobre irmão, sor – o Príncipe Baelor falou. – Dois de seus
filhos se perderam no caminho para cá, e ele teme por eles.
– As chuvas da primavera encheram muitos córregos – Dunk comentou. – Talvez os
príncipes estejam apenas atrasados.
– Não vim aqui para receber conselhos de um cavaleiro andante – o Príncipe Maekar
declarou para seu irmão.
– Você pode ir, sor – o Príncipe Baelor disse para Dunk, sem nenhuma indelicadeza.
– Sim, meu senhor – fez uma mesura com a cabeça e se virou.
Mas, antes que pudesse se afastar, o príncipe o chamou.
– Sor, mais uma coisa: você não é do sangue de Sor Arlan?
– Sim, senhor. Quero dizer, não. Não sou.
O príncipe fez um sinal com a cabeça na direção do escudo maltratado, com o cálice alado
desenhado.
– Pela lei, apenas filhos legítimos podem herdar o escudo de armas de um cavaleiro.
Precisa encontrar um novo emblema, sor, um brasão que seja seu.
– Farei isso – Dunk assegurou. – Obrigado novamente, Vossa Graça. Lutarei corajosamente,
o senhor verá. – Tão corajoso quanto Baelor Quebra-Lança, o velho dizia com frequência.
Os vendedores de vinho e os fabricantes de linguiça estavam fazendo um comércio animado, e
as putas perambulavam descaradamente entre as barracas e os pavilhões. Algumas eram bem
bonitas, uma garota ruiva em particular. Dunk não pôde deixar de olhar para os seios dela, o
jeito como eles se moviam embaixo da roupa solta enquanto ela caminhava. Pensou na prata
em sua bolsa. Eu podia tê-la, se quisesse. Ela gostaria bastante do tilintar das minhas
moedas; eu poderia levá-la para meu acampamento e tê-la a noite toda se quisesse. Ele
nunca se deitara com uma mulher, e podia até morrer em sua primeira disputa. Torneios
podiam ser perigosos... mas as putas podiam ser perigosas também. O velho lhe avisara a
respeito. Ela poderia me roubar enquanto estivesse dormindo, e o que eu faria, então?
Quando a garota ruiva olhou por sobre o ombro para ele, Dunk negou com a cabeça e se
afastou.
Encontrou Egg no espetáculo de títeres, sentado de pernas cruzadas no chão, com o capuz do
manto puxado para a frente, de modo a esconder sua careca. O garoto tinha ficado com medo
de entrar no castelo, o que Dunk atribuíra a partes iguais de timidez e vergonha. Ele não se
acha digno de se misturar com senhores e senhoras, muito menos com grandes príncipes.
Acontecera o mesmo com ele quando era menor. O mundo além da Baixada das Pulgas parecia
tão assustador quanto excitante. Egg precisa de tempo, é só isso. Por ora, parecia ser mais
gentil dar ao garoto alguns cobres e deixá-lo se divertir entre as barracas do que arrastá-lo
contra a vontade até o castelo.
Nessa manhã, os titereiros estavam encenando a história de Florian e Jonquil. A gorda
mulher dornesa controlava Florian em sua armadura feita de retalhos, enquanto a garota
controlava os fios de Jonquil.
– Você não é um cavaleiro – ela dizia enquanto a boca do títere se movia para cima e para
baixo. – Conheço você. É Florian, o bobo.
– Eu sou, minha senhora – o outro títere respondia, ajoelhando-se. – Tão grande como
nenhum outro bobo que já viveu, e tão grande como cavaleiro também.
– Um bobo e um cavaleiro? – Jonquil perguntou. – Nunca ouvi falar de uma coisa dessas.
– Doce senhora – Florian falou –, todos os homens são bobos, e todos os homens são
cavaleiros, no que diz respeito às mulheres.
Era um bom espetáculo, ao mesmo tempo triste e doce, com uma animada luta de espadas no
final e um gigante bem pintado. Quando terminou, a mulher gorda foi para o meio da multidão
recolher moedas enquanto a garota guardava os títeres.
Dunk buscou Egg e foi até ela.
– Senhor? – ela disse, com um olhar de soslaio e um meio sorriso. Era uma cabeça mais
baixa do que ele, mas mesmo assim era mais alta do que qualquer outra garota que ele já vira.
– Aquilo foi bom – Egg se entusiasmou. – Gosto como você faz os bonecos se mexerem,
Jonquil e o dragão e tudo o mais. Vi um espetáculo de títeres no ano passado, mas eles se
moviam de modo desajeitado. Os seus são mais suaves.
– Obrigada – ela agradeceu educadamente ao menino.
Dunk comentou:
– Seus bonecos são bem esculpidos também. O dragão especialmente. Um animal temível.
Você mesma que faz?
Ela assentiu.
– Meu tio esculpe, eu pinto.
– Poderia pintar uma coisa para mim? Tenho moeda para pagar. – Deslizou o escudo do
ombro e o virou para mostrar a ela. – Preciso pintar alguma coisa sobre o cálice.
A garota olhou para o escudo e então para ele.
– O que quer pintado?
Dunk não havia pensado nisso. Se não o cálice alado do velho, então o quê? Sua cabeça
estava vazia. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo.
– Não... não tenho certeza. – Suas orelhas estavam ficando vermelhas, percebeu, infeliz. –
Deve achar que sou um completo bobo.
Ela sorriu.
– Todos os homens são bobos, e todos os homens são cavaleiros.
– Que cor de tinta você tem? – ele perguntou, esperando que aquilo lhe desse alguma ideia.
– Posso misturar as tintas para fazer qualquer cor que desejar.
O marrom do velho sempre parecera sem graça para Dunk.
– O fundo deve ser da cor do pôr do sol – disse de repente. – O velho gostava do pôr do
sol. E o símbolo...
– Um olmo – Egg falou. – Um grande olmo, como aquele na lagoa, com tronco marrom e
galhos verdes.
– Sim – Dunk concordou. – Isso deve servir. Um olmo... mas com uma estrela cadente em
cima. Pode fazer isso?
A garota assentiu.
– Dê-me o escudo. Vou pintá-lo esta noite mesmo e devolvo para você de manhã.
Dunk o entregou.
– Eu me chamo Sor Duncan, o Alto.
– Sou Tanselle – ela deu uma risada. – Os garotos costumavam me chamar de Tanselle Alta
Demais.
– Você não é alta demais – Dunk replicou. – Você tem a altura certa para... – Percebeu o que
estava prestes a dizer e corou furiosamente.
– Para? – perguntou Tanselle, inclinando a cabeça de modo inquisidor.
– Títeres – ele completou sem convicção.
O primeiro dia do torneio amanheceu luminoso e sem nuvens. Dunk comprou um saco de
comida, então puderam quebrar o jejum com ovos de gansa, pão frito e toicinho, mas, quando
a refeição ficou pronta, ele descobriu que estava sem apetite. Sua barriga estava dura como
uma pedra, embora soubesse que não cavalgaria naquele dia. O direito do primeiro desafio
iria para os cavaleiros de nascimento mais elevado e de maior renome, para os senhores e
seus filhos, e para os campeões de outros torneios.
Egg tagarelou durante todo o desjejum, falando deste e daquele homem e de como eles se
sairiam. Ele não estava brincando quando disse que conhecia todos os bons cavaleiros dos
Sete Reinos, Dunk pensou pesaroso. Achava humilhante ouvir com tanta atenção as palavras
de um órfão magricela, mas o conhecimento de Egg podia servir se fosse encarar um desses
homens no torneio.
O campo era uma massa agitada de pessoas, todas tentando abrir caminho a cotoveladas
para se aproximar e conseguir uma vista melhor. Dunk era tão bom em cotoveladas quanto
qualquer um, e maior do que maioria. Esgueirou-se até uma elevação a pouco mais de cinco
metros da cerca. Quando Egg reclamou que tudo o que conseguia ver eram traseiros, Dunk
colocou o garoto nos ombros. Do outro lado do campo, a arquibancada estava lotada de
senhores e senhoras de nascimento elevado, algumas pessoas ricas da vila e um grupo de
cavaleiros que decidira não competir naquele dia. Do Príncipe Maekar, nem sinal, mas Dunk
reconheceu o Príncipe Baelor ao lado de Lorde Ashford. A luz do sol reluzia dourada na
fivela que segurava seu manto e na fina coroa ao redor das têmporas, mas, fora isso, ele se
vestia de modo muito mais simples do que a maioria dos outros senhores. Não parece um
Targaryen, na verdade, com aquele cabelo escuro. Dunk fez o comentário a Egg.
– Dizem que puxou à mãe – o garoto o recordou. – Ela era uma princesa dornesa.
Os cinco campeões haviam erguido seus pavilhões no extremo norte das listas, com o rio
atrás deles. Os dois menores eram laranja, e os escudos pendurados do lado de fora das portas
mostravam o sol branco e a faixa vincada. Aqueles deviam ser os filhos de Lorde Ashford,
Androw e Robert, irmãos da bela donzela. Dunk nunca ouvira outro cavaleiro falar das
proezas deles, o que significava que provavelmente seriam os primeiros a cair.
Ao lado dos pavilhões laranja havia um verde-escuro, muito maior. A rosa dourada de
Jardim de Cima tremulava sobre ele, e o mesmo símbolo decorava o grande escudo verde do
lado de fora da porta.
– Aquele é Leo Tyrell, Senhor de Jardim de Cima – disse Egg.
– Sei disso – Dunk respondeu, irritado. – O velho e eu servimos Jardim de Cima antes que
você tivesse nascido. – Mal se lembrava daquele ano, mas Sor Arlan falava com frequência
de Leo Espinholongo, como era chamado de vez em quando; um combatente sem par, apesar
de toda a prata em seu cabelo. – Aquele ao lado da tenda deve ser Lorde Leo, o homem
grisalho e magro vestindo verde e dourado.
– Sim – concordou Egg. – Eu o vi uma vez em Porto Real. Não é alguém que você vai
querer desafiar, sor.
– Garoto, não preciso do seu conselho sobre quem desafiar.
O quarto pavilhão era feito com pedaços de lona em forma de losango costurados,
alternando vermelho e branco. Dunk não conhecia as cores, mas Egg disse que pertenciam a
um cavaleiro do Vale de Arryn chamado Sor Humfrey Hardyng.
– Ele ganhou um grande corpo a corpo na Lagoa da Donzela ano passado, sor, e derrotou
Sor Donnel de Valdocaso e os lordes Arryn e Royce nas listas.
O último pavilhão era do Príncipe Valarr. Era de seda negra, com uma fileira de pendões
pontiagudos pendurados do teto como longas chamas vermelhas. O escudo no suporte era
negro brilhante, decorado com o dragão de três cabeças da Casa Targaryen. Um dos
cavaleiros da Guarda Real estava parado ao lado com a reluzente armadura branca
contrastando com o negro do tecido da tenda. Vendo-o ali, Dunk se perguntou se um dos
desafiantes ousaria tocar no escudo do dragão. Valarr era o neto do rei, afinal, e filho de
Baelor Quebra-Lança.
Ele não precisava se preocupar. Quando as trombetas tocaram para convocar os desafiantes,
todos os cinco campeões da donzela foram chamados adiante para defendê-la. Dunk podia
ouvir o murmúrio de animação na multidão quando os desafiantes apareceram um a um no
extremo sul das listas. Arautos trovejavam os nomes dos cavaleiros, um de cada vez. Eles
pararam diante da arquibancada para baixar as lanças em saudação a Lorde Ashford, ao
príncipe Baelor e à bela donzela, então deram a volta até a extremidade norte do campo para
selecionar seus oponentes. O Leão Grisalho de Rochedo Casterly bateu no escudo de Lorde
Tyrell, enquanto seu herdeiro de cabelos dourados, Sor Tybolt Lannister, desafiou o filho mais
velho de Lorde Ashford. Lorde Tully de Correrrio tocou no escudo com losangos de Sor
Humfrey Hardyng; Sor Abelar Hightower bateu no de Valarr, e o Ashford mais jovem foi
desafiado por Sor Lyonel Baratheon, o cavaleiro que chamavam de Tempestade Risonha.
Os desafiantes trotaram de volta ao extremo sul das listas para esperar seus adversários:
Sor Abelar, em prata e cor de fumo, com uma torre de vigia de pedra no escudo, coroada com
fogo; os dois Lannister em carmesim, ostentando o leão dourado de Rochedo Casterly;
Tempestade Risonha brilhava em samito, com um veado negro no peito, um escudo e um par
de chifres de ferro no elmo; Lorde Tully usava um manto listrado de azul e vermelho, preso
com uma truta de prata em cada ombro. Apontaram suas lanças de três metros e meio para o
céu, as rajadas de vento batendo e puxando as flâmulas.
No extremo norte do campo, escudeiros seguravam corcéis de batalha com armaduras
brilhantes para os campeões montarem. Eles puseram os elmos, pegaram lanças e escudos, em
esplendor equivalente ao de seus adversários: as sedas onduladas laranja dos Ashford, os
losangos vermelho e branco de Sor Humfrey, Lorde Leo em seu cavalo com arreios de cetim
verde com estampa de rosas douradas e, é claro, Valarr Targaryen. O cavalo do Jovem
Príncipe era negro como a noite, para combinar com a cor de sua armadura, lança, escudo e
arreios. No topo de seu elmo, havia um cintilante dragão de três cabeças, com as asas abertas,
esmaltado em vermelho vivo; um dragão idêntico estava pintado na brilhante superfície negra
de seu escudo. Cada um dos defensores tinha uma tira de seda cor de laranja amarrada no
braço – um favor concedido pela bela donzela.
Enquanto os campeões trotavam de volta a suas posições, a Campina de Vaufreixo ficou
quase em silêncio. Então uma trombeta soou e a quietude se transformou em tumulto em um
piscar de olhos. Dez pares de esporas douradas se dirigiram para os flancos de dez grandes
cavalos de guerra, mil vozes começaram a berrar e a gritar, quarenta cascos com ferraduras
bateram e amassaram a relva, dez lanças abaixaram e se equilibraram, o campo parecia
tremer, e os campeões e desafiantes se juntaram em uma colisão dilacerante de madeira e aço.
Em um instante, os cavaleiros tinham passado uns pelos outros, girando para outra investida.
Lorde Tully cambaleou em sua sela, mas conseguiu se manter sentado. Quando o povo
percebeu que todas as dez lanças haviam se quebrado, ouviu-se um grande rugido de
aprovação. Era um presságio esplêndido para o sucesso do torneio, e uma prova das
habilidades dos competidores.
Os escudeiros entregaram lanças novas para os competidores, para substituir as quebradas
que haviam sido jogadas de lado, e mais uma vez as esporas se enterraram profundamente.
Dunk podia sentir a terra tremendo sob os pés. Sobre seus ombros, Egg gritava feliz e sacudia
os braços magrelos. O Jovem Príncipe foi quem passou mais perto deles. Dunk viu a ponta de
sua lança negra beijar a torre de vigia no escudo de seu adversário e escorregar para colidir
com seu peito, no mesmo instante que a lança de Sor Abelar rompia em lascas contra a placa
peitoral de Valarr. O garanhão cinzento com arreios cinza-prateados empinou com a força do
impacto, e Sor Abelar Hightower foi levantado dos estribos e lançado violentamente ao chão.
Lorde Tully também foi ao chão, derrubado por Sor Hum-frey Hardyng, mas levantou-se
imediatamente e desembainhou a espada longa, enquanto Sor Humfrey jogou a lança de lado –
inteira – e desmontou para continuar a luta a pé. Sor Abelar não foi tão vivaz. Seu escudeiro
correu, soltou seu elmo e gritou por ajuda. Dois criados ergueram o aturdido cavaleiro pelos
braços para levá-lo de volta ao seu pavilhão. Em outros locais do campo, os seis cavaleiros
que permaneciam a cavalo partiram para a terceira investida. Mais lanças estilhaçadas, e,
dessa vez, Lorde Leo Tyrell mirou a ponta com tal destreza que arrancou o elmo da cabeça do
Leão Grisalho. Com o rosto descoberto, o Senhor de Rochedo Casterly ergueu a mão em
saudação e desmontou, desistindo do confronto. A essa altura, Sor Humfrey já obrigara Lorde
Tully a se render, mostrando-se tão habilidoso com a espada quanto com a lança.
Tybolt Lannister e Androw Ashford cavalgaram um contra o outro mais três vezes antes que
Sor Androw finalmente perdesse ao mesmo tempo o escudo, a montaria e o confronto. O
Ashford mais jovem durou mais um tempo, quebrando nada menos do que nove lanças contra
Sor Lyonel Baratheon, o Tempestade Risonha. Tanto campeão quanto desafiador perderam as
selas no décimo ataque e se levantaram ao mesmo tempo para lutar, espada contra mangual.
Finalmente, Sor Robert Ashford, já machucado, admitiu a derrota, mas na arquibancada seu
pai parecia tudo menos decepcionado. Os dois filhos de Lorde Ashford tinham sido levados
da fileira dos campeões, era verdade, mas tinham se comportado de maneira nobre contra dois
dos melhores cavaleiros dos Sete Reinos.
Tenho que me sair ainda melhor, Dunk pensou enquanto observava vencedor e vencido se
abraçarem e saírem juntos do campo. Para mim, não é o suficiente lutar bem e perder.
Preciso vencer pelo menos o primeiro desafio, ou perco tudo.
Sor Tybolt Lannister e Tempestade Risonha tomariam agora seu lugar entre os campeões,
substituindo os homens derrotados. Os pavilhões laranja já estavam vindo abaixo. A alguns
metros dali, o Jovem Príncipe estava sentado à vontade em uma cadeira de acampar elevada
diante de sua grande tenda negra. Estava sem o elmo. Tinha cabelos escuros como o pai, mas
uma mecha brilhante atravessava sua cabeça. Um criado levou um cálice de prata e ele tomou
um gole. Água, se for esperto, Dunk pensou. Vinho, se não for. Percebeu que estava se
perguntando se Valarr realmente havia herdado parte da capacidade do pai ou se apenas teria
enfrentado o oponente mais fraco.
Uma fanfarra de trombetas anunciou que três novos desafiantes haviam entrado nas listas. Os
arautos gritaram seus nomes.
– Sor Pearse da Casa Caron, Senhor da Marca.
Ele tinha uma harpa de prata decorando seu escudo, embora seu sobretudo tivesse estampa
de rouxinóis.
– Sor Joseth da Casa Mallister, de Guardamar.
Sor Joseth ostentava um elmo alado; em seu escudo, uma águia prateada voava por um céu
índigo.
– Sor Gawen da Casa Swann, Senhor de Pedrelmo em Cabo da Fúria.
Um par de cisnes, um negro e outro branco, lutavam furiosamente em seu brasão de armas. A
armadura e o manto de Lorde Gawen, além dos arreios de seu cavalo, eram uma mistura de
negro e branco também, indo até as tiras de sua bainha e lança.
Lorde Caron, harpista, cantor e cavaleiro de renome, tocou a ponta de sua lança na rosa de
Lorde Tyrell. Sor Joseth bateu nos losangos de Sor Humfrey Hardyng. E o cavaleiro em preto
e branco, Lorde Gawen Swann, desafiou o príncipe negro com o guardião branco. Dunk
esfregou o queixo. Lorde Gawen tinha mais idade que o velho, e o velho estava morto.
– Egg, quem é o menos perigoso desses desafiantes? – perguntou para o garoto em seus
ombros, que parecia saber tanto sobre esses cavaleiros.
– Lorde Gawen – o menino disse imediatamente. – O oponente de Valarr.
– Do Príncipe Valarr – Dunk corrigiu. – Um escudeiro deve manter uma língua cortês,
garoto.
Os três desafiantes tomaram seus lugares enquanto os três campeões montavam. Homens
faziam apostas ao redor de Dunk e Egg e gritavam para seus escolhidos, encorajando-os. Mas
Dunk tinha olhos apenas para o príncipe. Na primeira investida, ele atingiu o escudo de Lorde
Gawen com um golpe de relance – a ponta embotada da lança escorregando exatamente como
acontecera com Sor Abelar Hightower, só que dessa vez foi para o outro lado, no ar vazio. A
lança de Lorde Gawen quebrou contra o peito do príncipe e, por um instante, Valarr parecia
prestes a cair por um instante, antes de recuperar o equilíbrio.
Da segunda vez que cruzou as listas, Valarr balançou a lança para a esquerda, mirando no
peito do adversário, mas, em vez disso, acertou seu ombro. Mesmo assim, o golpe foi
suficiente para fazer o velho cavaleiro perder a lança. Um braço se debateu em busca de
equilíbrio e Lorde Gawen caiu. O Jovem Príncipe saltou da sela e desembainhou a espada,
mas o homem caído fez sinal para que se afastasse e ergueu a viseira.
– Desisto, Vossa Graça – gritou. – Boa luta.
Os senhores na arquibancada fizeram eco, gritando: Boa luta! Boa luta!, enquanto Valarr se
ajoelhava para ajudar o senhor grisalho a se levantar.
– Não foi para tanto – Egg reclamou.
– Fique quieto, ou pode voltar para o acampamento.
Mais distante, Sor Joseth Mallister estava sendo carregado para fora do campo,
inconsciente, enquanto o senhor da harpa e o senhor da rosa se atiravam um contra o outro
energicamente com machados longos sem corte, para o deleite da multidão barulhenta. Dunk
estava tão concentrado em Valarr Targaryen que mal os viu. Ele é um cavaleiro razoável, mas
não mais do que isso, pegou-se pensando. Eu teria uma chance contra ele. Se os deuses
forem bons, posso até mesmo derrubá-lo, e, uma vez a pé, meu peso e minha força dirão do
que são capazes.
– Pega ele! – Egg gritou alegremente, mexendo-se sobre as costas de Dunk em sua animação.
– Pega ele! Acerta ele! É! Ele está bem ali, está bem ali!
Parecia que estava torcendo por Lorde Caron. O harpista estava tocando um tipo diferente
de música, agora, fazendo Lorde Leo retroceder mais e mais enquanto o aço cantava no aço. A
multidão parecia igualmente dividida entre os dois, então vivas e maldições se misturavam
livremente no ar da manhã. Lascas de madeira e tinta voavam do escudo de Lorde Leo
enquanto o machado de Lorde Pearse arrancava as pétalas da rosa dourada, uma a uma, até
que o escudo por fim se estilhaçou e rachou. Mas, quando isso aconteceu, o machado se
prendeu por um instante na madeira... e o machado de Lorde Leo caiu sobre a haste da arma do
adversário, quebrando-a a menos de trinta centímetros de sua mão. Lorde Leo jogou de lado o
escudo quebrado e, de repente, era ele quem estava no ataque. Momentos depois, o cavaleiro
harpista estava sobre um joelho, cantando sua rendição.
Pelo restante da manhã e pela tarde adentro, houve mais do mesmo, enquanto os desafiantes
entravam em campo de dois ou três e, algumas vezes, em cinco de uma vez. As trombetas
soavam, os arautos gritavam seus nomes, cavalos de guerra disparavam, a multidão torcia,
lanças se quebravam como gravetos e espadas ressoavam contra elmos e cotas de malha.
Tanto plebeus quanto grandes senhores concordavam que fora um dia de justas esplêndido. Sor
Humfrey Hardyng e Sor Humfrey Beesbury, um ousado jovem cavaleiro em listras amarelas e
negras, com três colmeias em seu escudo, quebraram nada menos do que uma dúzia de lanças
cada, em uma batalha épica que logo o povo começou a chamar de “A Batalha de Humfrey”.
Sor Tybolt Lannister foi desmontado por Sor Jon Penrose e quebrou a espada na queda, mas
lutou só com o escudo até vencer a disputa e permanecer campeão. O caolho Sor Robyn
Rhysling, um velho cavaleiro grisalho com a barba salpicada de branco, perdeu o elmo para a
lança de Lorde Leo no primeiro embate, mas se recusou a desistir. Três vezes mais
cavalgaram um contra o outro, o vento chicoteava o cabelo de Sor Robyn enquanto as lascas
de lanças quebradas voavam em seu rosto descoberto como adagas de madeira, o que Dunk
achou ainda mais surpreendente quando Egg lhe contou que Sor Robyn perdera o olho por
causa da lasca de uma lança quebrada em menos de cinco anos. Leo Tyrell era cavalheiresco
demais para mirar outra lança na cabeça desprotegida de Sor Robyn, mas, mesmo assim, a
teimosa coragem (ou seria tolice?) de Rhysling deixou Dunk assombrado. Por fim, o Senhor de
Jardim de Cima acertou a placa peitoral de Sor Robyn com um golpe seco bem sobre o
coração e o mandou às cambalhotas para o chão.
Sor Lyonel Baratheon também lutou vários combates notáveis. Contra adversários menores,
ele com frequência irrompia em gargalhadas estrondosas no momento que tocavam seu escudo,
e ria todo o tempo em que estava montando, investindo e acertando-os nos estribos. Se os
desafiantes tivessem qualquer tipo de espigão em seus elmos, Sor Lyonel os arrancava e os
atirava à multidão. Os espigões eram ornamentados, feitos de madeira esculpida ou couro
perfilado, e algumas vezes eram dourados, esmaltados ou até mesmo forjados em prata pura,
então os homens que ele derrotava não apreciavam esse costume, embora isso o tornasse o
grande favorito dos plebeus. Não demorou muito para que apenas homens sem espigões o
desafiassem. Sor Lyonel derrotava os desafiadores um a um de forma ruidosa e às
gargalhadas, Dunk achava que as honras do dia deviam ir para Sor Humfrey Hardyng, que
humilhou catorze cavaleiros, todos formidáveis.
Enquanto isso, o Jovem Príncipe ficava sentado do lado de fora de seu pavilhão negro,
bebendo de seu cálice de prata e levantando-se de tempos em tempos para montar seu cavalo e
derrotar outro cavaleiro sem importância. Tivera nove vitórias, mas parecia a Dunk que todas
eram vazias. Ele está derrotando velhos e escudeiros recém-promovidos, e alguns senhores
de nascimento elevado e poucas habilidades. Os homens realmente perigosos passam pelo
seu escudo como se não o vissem.
No fim do dia, uma fanfarra de metais anunciou a entrada de um novo desafiante nas listas.
Ele cavalgava um grande corcel de guerra avermelhado, cujos arreios negros estavam
cortados para revelar vislumbres de amarelo, carmesim e laranja por baixo. Enquanto se
aproximava das arquibancadas para fazer sua saudação, Dunk viu o rosto sob a viseira
levantada e reconheceu o príncipe que encontrara nos estábulos de Lorde Ashford.
As pernas de Egg se apertaram ao redor de seu pescoço.
– Pare com isso – Dunk retrucou, afastando-as. – Pretende me enforcar?
– Príncipe Aerion Chamaviva – um arauto gritou – da Fortaleza Vermelha de Porto Real,
filho de Maekar, Príncipe de Solarestival da Casa Targaryen, neto de Daeron, o Bom,
Segundo de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e Senhor
dos Sete Reinos.
Aerion usava o dragão de três cabeças no escudo, mas era apresentado em cores muito mais
vivas do que o de Valarr; uma cabeça era laranja, uma amarela, uma vermelha, e as chamas
que sopravam tinham o brilho da folha de ouro. Seu sobretudo era uma mistura de fumo e fogo
entretecidos, e seu elmo enegrecido era encimado por um espigão de chamas vermelhas
esmaltadas.
Depois de uma pausa para baixar a lança para o Príncipe Baelor – uma pausa tão breve que
foi quase negligente –, ele galopou até a extremidade norte do campo, passou pelo pavilhão de
Lorde Leo e pelo de Tempestade Risonha, diminuindo apenas quando se aproximou da tenda
do Príncipe Valarr. O Jovem Príncipe se levantou e ficou em pé rigidamente ao lado de seu
escudo, e, por um momento, Dunk teve certeza de que Aerion pretendia desafiá-lo... mas então
ele riu e avançou, e foi bater com força a ponta da lança contra os losangos de Sor Humfrey
Hardyng.
– Vamos lá, vamos lá, pequeno cavaleiro – cantarolou em uma voz alta e clara. – É hora de
enfrentar o dragão.
Sor Humfrey inclinou a cabeça rigidamente para seu adversário enquanto seu corcel de
batalha lhe era trazido, e então o ignorou enquanto montava, colocava o elmo e pegava a lança
e o escudo. Os espectadores ficaram em silêncio enquanto os dois cavaleiros assumiam suas
posições. Dunk ouviu o crack quando o príncipe Aerion abaixou a viseira. A trombeta soou.
Sor Humfrey saiu lentamente, ganhando velocidade, mas seu adversário instigou o corcel de
guerra com força, usando as duas esporas, avançando rápido. As pernas de Egg apertaram o
pescoço de Dunk de novo.
– Mata ele! – gritou de repente. – Mata ele, ele está bem ali, mata ele, mata ele, mata ele!
Dunk não sabia dizer para qual cavaleiro ele estava gritando.
A lança do Príncipe Aerion, com ponta dourada e listras vermelhas, laranjas e amarelas,
oscilou para o outro lado da barreira. Baixo, baixo demais, Dunk pensou no momento em que
viu aquilo. Ele vai errar o cavaleiro e acertar o cavalo de Sor Humfrey; ele precisa levantar
a lança. Então, com horror crescente, começou a suspeitar que Aerion não pretendia mudar o
rumo da lança. Ele não pretende...
No último instante possível, o garanhão de Sor Humfrey empinou para se afastar da ponta
que vinha em sua direção, os olhos revirando de terror, mas era tarde demais. A lança de
Aerion acertou o animal bem acima da armadura que protegia o esterno e explodiu pela parte
de trás do pescoço em uma torrente de sangue brilhante. Gritando, o cavalo caiu de lado,
fazendo a barreira de madeira em pedaços enquanto caía. Sor Humfrey tentou saltar fora, mas
seu pé ficou preso no estribo e foi possível ouvir seu grito quando sua perna foi esmagada
entre a cerca estilhaçada e o cavalo caído.
Toda a Campina de Vaufreixo estava aos gritos. Homens correram para o campo para
libertar Sor Humfrey, mas o garanhão, morrendo em agonia, escoiceou-os quando se
aproximaram. Aerion, após contornar despreocupadamente a carnificina e seguir até o fim da
lista, deu meia-volta no cavalo e regressou a galope. Ele também gritava, embora Dunk não
conseguisse entender as palavras abafadas pelos gritos quase humanos do cavalo moribundo.
Saltando da sela, Aerion desembainhou a espada e avançou até seu adversário caído. Seus
próprios escudeiros e um de Sor Humfrey tiveram que puxá-lo de volta. Egg se contorceu nos
ombros de Dunk.
– Deixe-me descer – o garoto disse. – O pobre cavalo... deixe-me descer.
Dunk também se sentia enjoado. O que eu faria se um destino desses se abatesse sobre
Trovão? Um homem de armas com uma alabarda acabou com o garanhão de Sor Humfrey,
encerrando os berros medonhos. Dunk deu meia-volta e abriu caminho entre a multidão.
Quando alcançou o campo aberto, tirou Egg de seus ombros. O capuz do menino caíra para
trás, e seus olhos estavam vermelhos.
– Uma visão horrível, sim – ele disse ao garoto –, mas um escudeiro precisa ser forte. Temo
que verá acidentes piores em outros torneios.
– Não foi acidente – Egg disse, com a boca trêmula. – Aerion quis fazer aquilo. Você viu.
Dunk franziu o cenho. Ele também teve essa impressão, mas era difícil aceitar que um
cavaleiro pudesse ser tão pouco cavalheiresco, em especial um que era do sangue do dragão.
– Vi um cavaleiro verde como a relva do verão perder o controle de sua lança – ele disse,
teimoso. – E não quero ouvir mais nada sobre isso. As justas terminaram por hoje, eu acho.
Venha, rapaz.
Ele estava certo sobre o fim das competições do dia. Quando o caos foi controlado, o sol
estava baixo no oeste, e Lorde Ashford ordenou uma pausa.
Enquanto as sombras da noite se arrastavam pelo campo, uma centena de tochas foram
acesas ao longo da fileira de comerciantes. Dunk comprou um corno de cerveja para ele e
meio corno para o menino, para alegrá-lo. Vagaram por um tempo, ouvindo uma ária animada
tocada com flautas e tambores, e assistiram a um espetáculo de títeres sobre Nymeria, a rainha
guerreira com dez mil navios. Os titereiros tinham apenas dois navios, mas conseguiram
encenar uma batalha naval vibrante do mesmo jeito. Dunk queria perguntar à garota Tanselle
se ela terminara de pintar seu escudo, mas podia ver que ela estava ocupada. Vou esperar até
que ela termine os espetáculos da noite, resolveu. Talvez ela tenha sede, então.
– Sor Duncan – uma voz chamou atrás dele. E então, novamente: – Sor Duncan. – De
repente, Dunk se lembrou de que aquele era seu nome. – Vi você entre os plebeus hoje, com
este garoto nos ombros – disse Raymun Fossoway, que se aproximava, sorrindo. – De fato,
vocês dois são difíceis de passar despercebidos.
– O garoto é meu escudeiro. Egg, este é Raymun Fossoway. – Dunk teve que empurrar o
menino para a frente e, mesmo assim, Egg abaixou a cabeça e encarou as botas de Raymun
enquanto murmurava uma saudação.
– Prazer em conhecê-lo, rapaz – Raymun disse descontraído. – Sor Duncan, por que não viu
o torneio das arquibancadas? Todos os cavaleiros são bem-vindos lá.
Dunk ficava mais à vontade entre plebeus e criados; a ideia de reivindicar um lugar entre
senhores, senhoras e cavaleiros com terras o deixava desconfortável.
– Não teria gostado de ter uma visão mais de perto daquela última disputa.
Raymun fez uma careta.
– Nem eu. Lorde Ashford declarou Sor Humfrey o vencedor e o premiou com o corcel de
guerra do príncipe Aerion. Mesmo assim, ele não será capaz de continuar. Sua perna foi
quebrada em dois lugares. O príncipe Baelor mandou seu próprio meistre cuidar dele.
– Haverá outro campeão no lugar de Sor Humfrey?
– Lorde Ashford tinha pensado em dar o lugar dele para Lorde Caron ou talvez para o outro
Sor Humfrey, aquele que deu a Hardyng uma disputa esplêndida, mas o Príncipe Baelor lhe
disse que não seria adequado remover o escudo e o pavilhão de Sor Humfrey dadas as
circunstâncias. Acho que vão prosseguir com quatro campeões, em vez de cinco.
Quatro campeões, Dunk pensou. Leo Tyrell, Lyonel Baratheon, Tybolt Lannister e o
Príncipe Valarr. Vira o suficiente naquele primeiro dia para saber que tinha poucas chances
contra os três primeiros. O que lhe deixava apenas...
Um cavaleiro andante não pode desafiar um príncipe. Valarr é o segundo na linha de
sucessão ao Trono de Ferro. É filho de Baelor Quebra-Lança, e seu sangue é o sangue de
Aegon, o Conquistador, e do Jovem Dragão e do Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, e
eu sou um garoto que o velho encontrou atrás de uma loja de vasos na Baixada das Pulgas.
Sua cabeça doía só de pensar naquilo.
– Quem seu primo pretende desafiar? – perguntou a Raymun.
– Sor Tybolt, se tudo continuar como está. Eles combinam bem. De qualquer modo, meu
primo fica atento a cada disputa. Se algum homem estiver ferido amanhã, ou mostrar sinais de
exaustão ou fraqueza, Steffon será rápido em bater em seu escudo, pode contar com isso.
Ninguém jamais pode acusá-lo de excesso de cavalheirismo. – Deu uma risada, como que para
tirar a ferroada de suas palavras. – Sor Duncan, junta-se a mim para uma taça de vinho?
– Tenho uma questão que preciso resolver – Dunk falou, desconfortável com a ideia de
aceitar uma hospitalidade que não poderia retribuir.
– Eu posso esperar aqui e pegar seu escudo quando o espetáculo de títeres tiver terminado,
sor – disse Egg. – Vão encenar Symeon Olhos de Estrela e fazer a luta do dragão de novo
também.
– Pronto, vê? Sua questão já está resolvida, e o vinho nos espera – Raymun comentou. – É
uma colheita especial da Árvore. Como pode recusar?
Sem mais desculpas, Dunk não teve alternativa senão segui-lo, deixando Egg no espetáculo
de títeres. A maçã da Casa Fossoway pairava sobre o pavilhão dourado onde Raymun servia o
primo. Atrás do pavilhão, dois criados estavam regando uma cabra com mel e ervas sobre
uma pequena fogueira.
– Há comida também, se estiver com fome – Raymun disse em um tom negligente enquanto
abria a aba para Dunk entrar. Um braseiro de carvão iluminava o interior e tornava o ar
agradavelmente quente. Raymun encheu duas taças com vinho. – Dizem que Aerion está irado
com Lorde Ashford por entregar seu corcel de guerra a Sor Humfrey – comentou enquanto
servia –, mas aposto que foi o tio dele que o aconselhou a fazer isso. – Entregou uma taça para
Dunk.
– O Príncipe Baelor é um homem honrado.
– E o Príncipe Brilhante não é? – Raymun deu uma gargalhada. – Não fique tão ansioso, Sor
Duncan, não há ninguém aqui além de nós. Não é segredo que Aerion não vale nada. Graças
aos deuses ele está bem abaixo na ordem da sucessão.
– Realmente acredita que ele quis matar o cavalo?
– Há dúvida disso? Se o Príncipe Maekar estivesse ali, teria sido diferente, eu lhe garanto.
Se é verdade o que dizem, Aerion é todo sorriso e cavalheirismo enquanto seu pai está
observando, mas quando não está...
– Vi que a cadeira do Príncipe Maekar estava vazia.
– Ele deixou Vaufreixo para procurar seus filhos, juntamente com Roland Crakehall da
Guarda Real. Há uma história louca sobre cavaleiros assaltantes, mas aposto que o príncipe
está só por aí, bêbado novamente.
O vinho era bom e frutado, melhor que qualquer taça que já experimentara. Rolou a bebida
na boca, engoliu e disse.
– Que príncipe é esse?
– O herdeiro de Maekar, Daeron. Recebeu esse nome por causa do rei. É chamado de
Daeron, o Bêbado, embora não perto dos ouvidos de seu pai. O menino mais novo estava com
ele também. Deixaram Solarestival, mas nunca chegaram a Vaufreixo. – Raymun esvaziou sua
taça e a deixou de lado. – Pobre Maekar.
– Pobre? – Dunk comentou, espantado. – O filho do rei?
– É o quarto filho do rei – Raymun falou. – Não é exatamente ousado como o Príncipe
Baelor, nem esperto como o Príncipe Aerys, nem gentil como o Príncipe Rhaegel. E agora tem
de sofrer vendo seus próprios filhos à sombra dos filhos do irmão. Daerion é um beberrão,
Aerion é vaidoso e cruel, e o terceiro filho era tão pouco promissor que foi mandado à
Cidadela para se tornar um meistre, e o mais jovem...
– Sor! Sor Duncan! – Egg entrou de repente, ofegante. O capuz caíra para trás e a luz do
braseiro brilhava em seus grandes olhos escuros. – Tem que correr, ele a está machucando!
Dunk se levantou de um salto, confuso.
– Machucando? Quem?
– Aerion! – o menino gritou. – Ele a está machucando! A titereira, rápido! – Dando meiavolta,
disparou noite adentro.
Dunk fez menção de segui-lo, mas Raymun segurou seu braço.
– Sor Duncan. Ele falou Aerion. Um príncipe do sangue. Tome cuidado.
Era um bom conselho, Dunk sabia. O velho teria dito o mesmo. Mas ele não podia ouvir.
Libertou-se da mão de Raymun e saiu correndo para fora do pavilhão. Ouvia gritos vindos da
fileira dos comerciantes. Egg estava quase fora de vista. Dunk correu atrás dele. Suas pernas
eram compridas e as do menino, curtas; ele rapidamente cobriu a distância entre eles.
Uma muralha de observadores se reunira em volta dos titereiros. Dunk abriu caminho entre
eles aos empurrões, ignorando os xingamentos. Um homem de armas com libré real avançou
para impedir sua passagem. Dunk colocou a mão enorme no peito do homem e o empurrou,
fazendo-o cair de costas e se estatelar com o traseiro no chão.
A barraca dos titereiros fora derrubada. A dornesa gorda estava chorando no chão. Um
homem de armas estava com os títeres de Florian e Jonquil pendurados em uma mão, enquanto
outro colocava fogo nos bonecos com uma tocha. Outros três homens abriam baús, espalhando
mais bonecos pelo chão e pisando neles. O títere do dragão estava espalhado por todos os
lados; uma asa quebrada ali, uma cabeça acolá, a cauda em três partes. E no meio de tudo isso
estava o Príncipe Aerion, resplandecente em um gibão de veludo vermelho com mangas longas
pendentes, torcendo o braço de Tanselle com as mãos. Ela estava de joelhos, implorando.
Aerion a ignorava. Obrigou-a a abrir a mão e agarrou um de seus dedos. Dunk ficou parado
ali, estupidamente, quase sem acreditar no que via. Então ouviu um crack, e Tanselle gritou.
Um dos homens de Aerion tentou agarrá-lo e saiu voando. Três passos longos e Dunk
agarrou o ombro do príncipe e o virou com violência. Sua espada e punhal foram esquecidos,
assim como tudo o que o velho lhe ensinara. Seu punho levou Aerion ao chão, e a ponta de sua
bota acertou a barriga do príncipe. Quando Aerion tentou pegar sua faca, Dunk pisou em seu
punho e o chutou novamente, bem na boca. Teria chutado o rapaz até a morte bem ali, mas os
homens do principezinho caíram sobre ele. Ele tinha um homem em cada braço e outro
pendurado nas costas. Nem bem se libertava de um e outros dois estavam sobre ele.
Finalmente, conseguiram jogá-lo no chão e prender seus braços e pernas. Aerion estava em
pé de novo. A boca do príncipe estava ensanguentada. Enfiou um dedo nela.
– Você afrouxou um dos meus dentes – reclamou. – Então vamos começar a quebrar todos os
seus. – Afastou o cabelo dos olhos. – Você parece familiar.
– Você me confundiu com um cavalariço.
Aerion deu um sorriso vermelho.
– Eu me lembro. Você se recusou a pegar meu cavalo. Por que jogou sua vida fora? Por esta
puta? – Tanselle estava curvada no chão, segurando a mão fraturada. Ele lhe deu um empurrão
com a ponta da bota. – Ela dificilmente vale isso. Uma traidora. O dragão nunca deve perder.
Ele é louco, Dunk pensou, mas ainda é o filho do príncipe, e pretende me matar. Poderia
ter rezado, se conhecesse uma prece até o fim, mas não havia tempo. Mal havia tempo para
ficar com medo.
– Nada mais a dizer? – Aerion perguntou. – Você me aborrece, sor. – Cutucou a boca
ensanguentada de novo. – Pegue um martelo e quebre todos os dentes dele, Wate – ordenou. –
Depois vamos abri-lo e mostrar para ele a cor de suas entranhas.
– Não! – uma voz de menino disse. – Não o machuque!
Deuses sejam bons, o menino, o tolo menino corajoso, Dunk pensou. Lutou contra os
braços que o prendiam, em vão.
– Controle a língua, garoto estúpido. Corra. Vão machucá-lo!
– Não, não vão – Egg se aproximou. – Se fizerem isso, terão que responder ao meu pai. E ao
meu tio também. Deixem-no ir, eu disse. Wate, Yorkel, vocês me conhecem. Façam o que eu
digo.
As mãos que seguravam seu braço esquerdo sumiram, e então as outras. Dunk não entendia o
que estava acontecendo. Os homens de armas estavam retrocedendo. Um deles até mesmo se
ajoelhou. Então a multidão se abriu para deixar Raymun Fossoway passar. Usava cota de
malha e elmo, e tinha a mão sobre a espada. Seu primo, Sor Steffon, logo atrás, já estava com
a lâmina desembainhada e com eles estava meia dúzia de homens de armas com o símbolo da
maçã vermelha costurado no peito.
O Príncipe Aerion não prestou atenção neles.
– Patifezinho imprudente – disse para Egg, cuspindo um punhado de sangue nos pés do
menino. – O que aconteceu com seu cabelo?
– Eu cortei, irmão – Egg falou. – Não queria parecer com você.
O segundo dia do torneio estava carregado de nuvens, com rajadas de vento soprando do
oeste. A multidão deve ser menor em um dia assim, Dunk pensou. Teria sido mais fácil
encontrar um lugar próximo da cerca para ver as justas mais de perto. Egg poderia ter
sentado no parapeito, enquanto eu ficaria em pé atrás dele.
Em vez disso, Egg tinha um lugar na arquibancada, vestido em sedas e peles, enquanto a
vista de Dunk estava limitada a quatro paredes da cela da torre onde os homens de Lorde
Ashford o haviam confinado. A câmara tinha uma janela, mas dava para o lado errado. Mesmo
assim, Dunk empoleirou-se no assento da janela quando o sol nasceu e olhou com melancolia
para a vila, os campos e a floresta. Tinham lhe tirado o cinturão de cânhamo da espada, e a
espada e a adaga com ele, e haviam levado sua prata também. Esperava que Egg ou Raymun se
lembrassem de Castanha e Trovão.
– Egg – murmurou baixinho. Seu escudeiro, o pobre garoto tirado das ruas de Porto Real.
Algum cavaleiro já fora tão idiota? Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de
castelo e lento como um auroque.
Não tivera permissão para falar com Egg desde que os soldados de Sor Ashford prenderam
todos no espetáculo de títeres. Nem com Raymun, nem com Tanselle, nem com ninguém, nem
mesmo com o próprio Lorde Ashford. Ele se perguntava se veria algum deles novamente. Pelo
que sabia, pretendiam mantê-lo naquele quartinho até que morresse. O que eu achei que
aconteceria?, perguntou a si mesmo, amargo. Bati no filho de um príncipe e chutei seu rosto.
Sob aquele céu cinzento, os enfeites flutuantes dos senhores de nascimento elevado e dos
grandes campeões não pareciam tão esplêndidos quanto no dia anterior. O sol, emparedado
atrás das nuvens, não pincelaria os elmos de aço com brilho, nem faria as cinzelagens de ouro
e prata cintilarem e reluzirem, mas mesmo assim Dunk desejava estar entre a multidão para
assistir às justas. Seria um bom dia para os cavaleiros andantes, para homens em cotas de
malha simples e cavalos sem arreios.
Ao menos podia ouvi-los. As cornetas dos arautos eram bem audíveis, e de tempos em
tempos o rugir da multidão lhe dizia que alguém caíra, ou se erguera, ou fizera algo
especialmente ousado. Ouvia um fraco ruído de cascos também e, muito de vez em quando, o
choque de espadas ou a ruptura de uma lança. Dunk estremecia sempre que ouvia este último
som; lembrava-lhe o barulho que o dedo de Tanselle fizera quando Aerion o quebrou. Havia
outros ruídos também, mais próximos dele: passos no corredor do lado de fora, a batida de
cascos no pátio abaixo, gritos e vozes das muralhas do castelo. Algumas vezes, eles se
sobrepunham aos do torneio. Dunk supunha que fosse melhor assim.
“Um cavaleiro andante é o tipo mais verdadeiro de cavaleiro, Dunk”, o velho lhe dissera
havia muito tempo. “Outros cavaleiros servem os senhores que os sustentam, ou em nome
daqueles de quem têm terras, mas nós servimos quem queremos, homens em cujas causas
acreditamos. Todo cavaleiro jura proteger os fracos e inocentes, mas nós mantemos melhor
nosso voto, acho.” Estranho o quanto essa lembrança parecia forte agora. Dunk quase se
esquecera daquelas palavras. E talvez o velho também as tenha esquecido no fim.
A manhã se transformou em tarde. Os sons distantes do torneio começaram a diminuir até
morrer. O crepúsculo começou a penetrar na cela, mas Dunk continuou sentado no assento da
janela, olhando a escuridão que crescia e tentando ignorar a barriga vazia.
E então ouviu passos e um retinir de chaves de ferro. Levantou-se e ficou em pé enquanto a
porta se abria. Dois guardas entraram, um deles segurando uma lamparina a óleo. Uma criada
vinha atrás com uma bandeja de comida. Por fim, vinha Egg.
– Deixem a lamparina e a comida e saiam – o garoto disse para eles.
Fizeram como ordenado, embora Dunk percebesse que deixaram a pesada porta de madeira
entreaberta. O cheiro de comida fez com que percebesse o quanto estava faminto. Havia pão
quente e mel, uma tigela de purê de ervilha, um espeto de cebolas assadas e carne bem
passada. Sentou-se ao lado da bandeja, partiu o pão com as mãos e enfiou um pedaço na boca.
– Não tem faca – observou. – Eles acharam que eu iria esfaqueá-lo, garoto?
– Não me disseram o que pensaram – Egg usava um gibão justo de lã negra com a cintura
pregueada e mangas compridas forradas com cetim vermelho. No peito tinha costurado o
dragão de três cabeças da Casa Targaryen. – Meu tio diz que devo humildemente implorar seu
perdão por tê-lo enganado.
– Seu tio – Dunk falou. – Quer dizer o Príncipe Baelor.
O menino parecia extremamente infeliz.
– Nunca pretendi mentir.
– Mas mentiu. Sobre tudo. Começando com seu nome. Nunca ouvi falar de um Príncipe Egg.
– É apelido de Aegon. Meu irmão Aemon me chamava de Egg. Ele está na Cidadela agora,
estudando para ser meistre. E Daeron algumas vezes me chama de Egg também, assim como
minhas irmãs.
Dunk levantou o espeto e mordeu um pedaço de carne. Cabra temperada com alguma
especiaria nobre que jamais provara antes. A gordura escorreu por seu queixo.
– Aegon – repetiu. – É claro que tinha que ser Aegon. Como Aegon, o Dragão. Quantos
Aegons foram reis?
– Quatro – o menino disse. – Quatro Aegons.
Dunk mastigou, engoliu e partiu mais um pouco de pão.
– Por que fez isso? Era alguma brincadeira para fazer de tolo o estúpido cavaleiro andante?
– Não. – Os olhos do menino se encheram de lágrimas, mas ele ficou parado corajosamente.
– Eu devia ser escudeiro de Daeron. Ele é meu irmão mais velho. Aprendi tudo o que tinha
que aprender para ser um bom escudeiro, mas Daeron não é um cavaleiro muito bom. Ele não
queria competir no torneio, então, depois que deixamos o Solarestival, ele escapou da nossa
escolta, só que em vez de voltar para trás foi direto para Vaufreixo, achando que nunca nos
procurariam nessa direção. Foi ele quem raspou minha cabeça. Ele sabia que meu pai enviaria
homens atrás de nós. Daeron tem o cabelo comum, em tom castanho-claro, nada especial, mas
o meu é como o de Aerion e o de meu pai.
– O sangue do dragão – Dunk comentou. – Cabelo louro-prateado e olhos púrpura, todo
mundo sabe disso. – Cabeça-dura como uma muralha de castelo, Dunk.
– Sim. Então Daeron o cortou. Ele pretendia nos manter escondidos até que o torneio
acabasse. Só que então você me confundiu com um cavalariço e... – Ele abaixou os olhos. –
Não me importava se Daeron lutasse ou não, mas eu queria ser o escudeiro de alguém. Sinto
muito, sor. Realmente sinto.
Dunk olhou para ele pensativo. Sabia como era querer tanto algo a ponto de ser capaz de
dizer uma mentira monstruosa só para chegar perto do que se deseja.
– Pensei que você fosse como eu – ele disse. – Talvez seja. Só que não do jeito que pensei.
– Nós dois somos de Porto Real – o menino falou, esperançoso.
Dunk teve que rir.
– Sim, você do alto da Colina de Aegon e eu da baixada.
– Não é tão distante, sor.
Dunk deu uma mordida em uma cebola.
– Preciso chamá-lo de Senhor ou Vossa Graça ou algo assim?
– Na corte – o menino admitiu –, mas em outras ocasiões pode continuar me chamando de
Egg se quiser, sor.
– O que vão fazer comigo, Egg?
– Meu tio quer vê-lo. Depois que terminar de comer, sor.
Dunk deixou o prato de lado e se levantou.
– Terminei, então. Já chutei um príncipe na boca, não pretendo deixar o outro esperando.
Lorde Ashford tinha cedido seus aposentos para o príncipe Baelor durante sua estada, então
foi para a sala de visitas do senhor que Egg – não, Aegon, ele teria que se acostumar com isso
– o conduziu. Baelor restava sentado, lendo sob a luz de velas de cera de abelha. Dunk
ajoelhou-se diante dele.
– Levante-se – o príncipe disse. – Gostaria de vinho?
– Se for do seu agrado, Vossa Graça.
– Sirva a Sor Duncan uma taça de tinto doce de Dorne, Aegon – o príncipe ordenou. – Tente
não derramar sobre ele, já lhe causou mal suficiente.
– O garoto não vai derramar, Vossa Graça – Dunk falou. – É um bom menino. Um bom
escudeiro. E não quis me fazer mal, sei disso.
– Não é necessário ter intenção de fazer mal para fazê-lo. Aegon devia ter vindo a mim
quando viu o que seu irmão estava fazendo com aqueles titereiros. Em vez disso, correu para
você. Isso não foi amável. O que você fez, sor... bem, eu teria feito o mesmo em seu lugar, mas
sou um príncipe do reino, não um cavaleiro andante. Jamais é boa ideia bater no neto do rei
em fúria, não importa o motivo.
Dunk assentiu, sombrio. Egg lhe ofereceu um cálice de prata, com vinho até a borda. Ele
aceitou e deu um longo gole.
– Odeio Aerion – Egg disse com veemência. – E tive que correr até Sor Duncan, tio; o
castelo estava longe demais.
– Aerion é seu irmão – o príncipe disse com firmeza –, e os septões dizem que devemos
amar nossos irmãos. Aegon, deixe-nos agora, quero falar com Sor Duncan a sós.
O menino colocou de lado o jarro de vinho e fez uma mesura rígida.
– Como desejar, Vossa Graça. – Foi até a porta da sala e a fechou com suavidade atrás de si.
Baelor Quebra-Lança estudou os olhos de Dunk por um longo momento.
– Sor Duncan, deixe-me perguntar uma coisa. Quão bom cavaleiro você é de verdade? Quão
habilidoso com as armas?
Dunk não sabia o que responder.
– Sor Arlan me ensinou a usar a espada e o escudo, e como investir contra anéis e
estafermos.
O Príncipe Baelor pareceu perturbado com aquela resposta.
– Meu irmão Maekar voltou ao castelo há algumas horas. Encontrou seu herdeiro bêbado em
uma estalagem a um dia de cavalgada para o sul. Maekar nunca admitiria isso, mas acredito
que tinha a esperança secreta de que seus filhos pudessem ofuscar os meus neste torneio. Em
vez disso, ambos o envergonharam. Mas o que ele vai fazer? São sangue de seu sangue.
Maekar está zangado e precisa de um alvo para a sua ira. Ele escolheu você.
– Eu? – Dunk disse, infeliz.
– Aerion já encheu o ouvido do pai. E Daeron não o ajudou tampouco. Para desculpar a
própria covardia, ele disse para meu irmão que um imenso cavaleiro assaltante, encontrado ao
acaso na estrada, levou Aegon dele. Temo que você tenha sido escolhido para ser esse
cavaleiro assaltante, sor. Na história de Daeron, ele passou três dias perseguindo você de um
lado para o outro, para recuperar o irmão.
– Mas Egg lhe contará a verdade. Aegon, quero dizer.
– Egg contará para ele, não tenho dúvida – disse o Príncipe Baelor –, mas o menino
também é conhecido por mentir, como você bem sabe. Em qual filho meu irmão acreditará?
Quanto a esses titereiros, quando Aerion terminar sua história deturpada, serão condenados
por alta traição. O dragão é o símbolo da Casa Real. Retratar um sendo morto, com sangue de
serragem saindo pelo pescoço... Bem, sem dúvida é inocente, mas nem um pouco sensato.
Aerion chama isso de um ataque velado à Casa Targaryen, um incitamento à revolta. Maekar
concordará de bom grado. Meu irmão tem uma natureza irritadiça e, desde que Daeron se
tornou um grande desapontamento para ele, depositou todas as suas melhores esperanças em
Aerion. – O príncipe tomou um gole de vinho e colocou o cálice de lado. – No que quer que
meu irmão acredite ou deixe de acreditar, uma verdade não está em questão. Você colocou as
mãos no sangue do dragão. Por essa ofensa, tem que ser julgado, sentenciado e punido.
– Punido? – Dunk não gostou de como aquilo soou.
– Aerion gostaria da sua cabeça, com ou sem dentes. Não a terá, prometo, mas não posso
negar a ele um julgamento. Como meu real pai está a quilômetros de distância, meu irmão e eu
teremos que julgá-lo, juntamente com Lorde Ashford, em cujos domínios estamos, e Lorde
Tyrell de Jardim de Cima, seu suserano. Da última vez que um homem foi considerado
culpado de agredir alguém de sangue real, decretou-se que ele deveria perder a mão ofensora.
– Minha mão? – Dunk exclamou, aterrorizado.
– E seu pé. Você o chutou também, não chutou?
Dunk não conseguiu falar.
– Certamente pedirei aos meus companheiros juízes que sejam misericordiosos. Sou a Mão
do Rei e herdeiro do trono, minha palavra tem algum peso. Mas a do meu irmão também tem.
O risco existe.
– Eu – disse Dunk –, eu... Vossa Graça, eu... – Eles não pretendiam cometer nenhuma
traição, era só um dragão de madeira, nunca se pretendeu que fosse um príncipe real,
queria dizer, mas as palavras o abandonaram de uma vez por todas. Nunca fora bom com as
palavras.
– Você tem uma alternativa, no entanto – o Príncipe Baelor disse em voz baixa. – Se é
melhor ou pior, não sei dizer, mas devo lembrá-lo de que qualquer cavaleiro acusado de um
crime tem o direito de exigir julgamento por combate. Então, eu lhe perguntou novamente, Sor
Duncan, o Alto... quão bom cavaleiro você é? De verdade.
– Um julgamento de sete – o Príncipe Aerion disse, sorrindo. – Esse é meu direito, acredito.
O Príncipe Baelor tamborilou com os dedos na mesa, franzindo o cenho. À sua esquerda,
Lorde Ashford assentiu lentamente.
– Por quê? – o Príncipe Maekar exigiu saber, inclinando-se na direção do filho. – Tem medo
de encarar sozinho este cavaleiro andante e deixar os deuses decidirem a verdade de suas
acusações?
– Medo? – Aerion perguntou. – De um tipo desses? Não seja insano, pai. Meu pensamento é
por meu amado irmão. Daeron foi prejudicado por este Sor Duncan também e tem o direito de
reclamar seu sangue. Um julgamento de sete permitirá que nós dois o encaremos.
– Não me faça favores, irmão – murmurou Daeron Targaryen. O filho mais velho do
Príncipe Maekar parecia ainda pior do que quando Dunk o encontrara na estalagem.
Aparentemente estava sóbrio dessa vez, o gibão vermelho e negro sem manchas de vinho, mas
seus olhos estavam injetados de sangue, e uma fina camada de suor cobria-lhe a testa. – Fico
satisfeito em aplaudi-lo quando matar o patife.
– Você é muito gentil, doce irmão – o Príncipe Aerion comentou, todo sorrisos –, mas seria
egoísmo meu negar a você o direito de provar a verdade de suas palavras colocando seu
corpo em risco. Devo insistir no julgamento de sete.
Dunk estava perdido.
– Vossa Graça, meus senhores – disse, dirigindo-se para o estrado. – Não entendo. O que é
esse julgamento de sete?
O Príncipe Baelor se mexeu com desconforto em seu assento.
– É outra forma de julgamento por combate. Antigo, raramente invocado. Veio do Mar
Estreito com os ândalos e os sete deuses. Em qualquer julgamento por combate, o acusado e o
acusador pedem aos deuses que decidam a questão entre eles. Os ândalos acreditavam que se
sete campeões lutassem de cada lado, os deuses, sendo assim honrados, ficariam mais
dispostos a intervir e garantir que o resultado justo fosse alcançado.
– Ou talvez simplesmente tivessem gosto pela esgrima – comentou Lorde Leo Tyrell, com
um sorriso cínico. – Seja como for, Sor Aerion está no seu direito. Que seja um julgamento de
sete.
– Terei que lutar contra sete homens, então? – Dunk perguntou, desesperado.
– Não sozinho, sor – o Príncipe Maekar respondeu, impaciente. – Não banque o tolo, não
vai adiantar. Deve ser sete contra sete. Precisa encontrar mais seis cavaleiros para lutar ao
seu lado.
Seis cavaleiros, Dunk pensou. Seria o mesmo que terem me pedido para encontrar seis mil.
Não tinha irmãos, nem primos, ou velhos companheiros que tivessem estado ao seu lado em
batalha. Por que seis estranhos arriscariam a vida para defender um cavaleiro andante contra
dois principezinhos reais?
– Vossa Graça, meus senhores – ele disse –, e se ninguém quiser ficar ao meu lado?
Maekar Targaryen olhou para ele friamente.
– Se a causa é justa, bons homens lutarão por ela. Se não conseguir encontrar campeões, sor,
significa que é culpado. Pode algo ser mais claro?
Dunk nunca se sentira tão só como quando atravessou a pé o portão do Castelo de Vaufreixo e
ouviu a ponte levadiça descer chacoalhando atrás de si. Uma chuva suave, leve como orvalho,
estava caindo em sua pele e, mesmo assim, ele estremecia com seu toque. Do outro lado do
rio, anéis coloridos aureolavam os escassos pavilhões onde o fogo ainda ardia. Metade da
noite já se fora, ele calculou. O amanhecer chegaria em poucas horas. E, com o amanhecer,
vem a morte.
Haviam lhe devolvido sua espada e sua prata, ainda assim, enquanto atravessava o vau, seus
pensamentos eram desoladores. Ele se perguntava se esperavam que selasse um cavalo e
fugisse. Poderia, se quisesse. Seria o fim de sua posição como cavaleiro, certamente; a partir
daí, não seria mais do que um fora da lei, até o dia em que algum senhor o capturasse e lhe
cortasse a cabeça. Melhor morrer como cavaleiro do que assim, disse a si mesmo, teimoso.
Molhado até os joelhos, caminhou penosamente as listas vazias. A maior parte dos pavilhões
estava escura, os proprietários havia muito estavam adormecidos, mas aqui e ali algumas
velas ainda queimavam. Dunk ouviu gemidos suaves e gritos de prazer vindos de uma das
tendas. Isso o fez se perguntar se morreria sem ter conhecido uma donzela.
Então ouviu o resfolegar de um cavalo, que de algum modo sabia ser de Trovão. Mudou de
direção e correu, e lá estava ele, amarrado com Castanha do lado de fora de um pavilhão
redondo, iluminado por dentro com um vago brilho dourado. No mastro central, o estandarte
pendia, ensopado, mesmo assim Dunk conseguiu perceber a curva escura da maçã Fossoway.
Aquilo se parecia com esperança.
– Um julgamento por combate – Raymun disse com seriedade. – Que os deuses sejam bons,
Duncan. Isso quer dizer lanças de guerra, maças, machados de batalha... As espadas não
estarão cegas, entende isso?
– Raymun, o Relutante – zombou seu primo, Sor Steffon. Uma maçã feita de ouro e granadas
prendia seu manto de lã amarela. – Não tenha medo, primo, isso é um combate de cavaleiros.
Como você não é cavaleiro, sua pele não está em risco. Sor Duncan, você tem um Fossoway
pelo menos. O maduro. Vi o que Aerion fez com aqueles titereiros. Estou com você.
– E eu também – Raymun replicou, zangado. – Só quis dizer...
O primo o interrompeu.
– Quem mais lutará conosco, Sor Duncan?
Dunk abriu as mãos, impotente.
– Não conheço mais ninguém. Bem, exceto Sor Manfred Dondarrion. Ele nem quis atestar
que sou um cavaleiro, jamais arriscaria a vida por mim.
Sor Steffon pareceu pouco perturbado.
– Então precisamos de mais cinco bons homens. Felizmente, tenho mais do que cinco
amigos. Leo Longthorn, Tempestade Risonha, Lorde Caron, os Lannister, Sor Otho Bracken...
sim, e os Blackwood também, embora nunca se tenha visto Blackwood e Bracken do mesmo
lado de um corpo a corpo. Vou falar com alguns deles.
– Eles não ficarão felizes em ser acordados – o primo objetou.
– Excelente – declarou Sor Steffon. – Se estiverem zangados, vão lutar com mais
ferocidade. Pode contar comigo, Sor Duncan. Primo, se eu não voltar antes do amanhecer,
traga minha armadura e assegure-se de que Ira esteja selado e com arreios para mim. Encontro
vocês no cercado dos desafiadores. – Deu uma gargalhada. – Será um dia por muito tempo
lembrado, acredito. – Quando saiu da tenda, até parecia feliz.
Raymun, nem tanto.
– Cinco cavaleiros – disse mal-humorado depois que seu primo se foi. – Duncan, não quero
estragar suas esperanças, mas...
– Se seu primo conseguir trazer os homens dos quais falou...
– Leo Longthorn? Bracken, o Bruto? Tempestade Risonha? – Raymun se levantou. – Ele
conhece todos eles, não tenho dúvidas, mas não tenho tanta certeza se algum deles o conhece.
Steffon vê isso como uma chance para a glória, mas representa sua vida. Você deveria
encontrar seus próprios homens. Vou ajudar. Melhor ter campeões demais do que de menos. –
Um ruído do lado de fora fez Raymun virar a cabeça. – Quem vem aí? – quis saber, enquanto
um garoto se abaixava para entrar pela aba, seguido por um homem magro com um manto
negro ensopado.
– Egg? – Dunk ficou em pé. – O que está fazendo aqui?
– Sou seu escudeiro – o menino disse. – Você vai precisar de alguém para armá-lo, sor.
– O senhor seu pai sabe que você saiu do castelo?
– Deuses sejam bons, espero que não. – Daeron Targaryen soltou a fivela de seu manto e
deixou-o escorregar pelos ombros magros.
– Você? Está louco, vindo até aqui? – Dunk puxou o punhal da bainha. – Eu devia enfiar isso
na sua barriga.
– Provavelmente – o Príncipe Daeron admitiu. – Embora eu preferiria que me servisse uma
taça de vinho. Veja minhas mãos – levantou uma das mãos e deixou que todos vissem como
estava tremendo.
Dunk deu um passo na direção dele, furioso.
– Não me importo com suas mãos. Você mentiu sobre mim.
– Eu tinha que dizer alguma coisa quando meu pai exigiu saber onde meu irmãozinho tinha
se metido – o príncipe respondeu. Sentou-se, ignorando Dunk e sua faca. – Verdade seja dita,
nem mesmo percebi que Egg tinha ido embora. Ele não estava no fundo da minha taça de
vinho, e eu não olhei para nenhum outro lado, então... – suspirou.
– Sor, meu pai vai se juntar aos sete acusadores – Egg interrompeu. – Implorei para ele não
fazer isso, mas ele não me ouviu. Diz que é a única maneira de recuperar a honra de Aerion e
de Daeron.
– Não que eu tenha pedido que minha honra fosse recuperada – disse o Príncipe Daeron,
com amargura. – Quem quer que esteja com ela, pode ficar, no que me diz respeito. Mesmo
assim, estamos aqui. Se serve de consolo, Sor Duncan, você tem pouco a temer de mim. A
única coisa de que gosto menos do que cavalos são espadas. Coisas pesadas e bestialmente
afiadas. Farei o melhor possível para parecer galante na primeira investida, mas depois
disso... bem, talvez você pudesse me acertar com um belo golpe na lateral do elmo. Faça-o
ressoar, mas não muito alto, se entende o que quero dizer. Meus irmãos são melhores do que
eu no que diz respeito a lutar, dançar, pensar e ler livros, mas nenhum deles chega aos meus
pés quando se trata de ficar desmaiado na lama.
Dunk só conseguiu encará-lo e se perguntar se o principezinho estava tentando fazê-lo de
bobo.
– Por que veio?
– Para avisá-lo do que o aguarda – Daeron disse. – Meu pai ordenou que a Guarda Real lute
com ele.
– A Guarda Real? – Dunk repetiu, estarrecido.
– Bem, os três que estão aqui. Graças aos deuses, o tio Baelor deixou os outros quatro em
Porto Real com nosso avô, o rei.
Egg forneceu os nomes.
– Sor Roland Crakehall, Sor Donnel de Valdocaso e Sor Willem Wylde.
– Eles têm pouca escolha – Daeron comentou. – Juraram proteger a vida do rei e da família
real, e meus irmãos e eu somos sangue do dragão, que os deuses nos ajudem.
Dunk contou nos dedos.
– Com isso são seis. Quem é o sétimo homem?
O Príncipe Daeron deu de ombros.
– Aerion encontrará alguém. Se for preciso, comprará um campeão. Não lhe falta ouro.
– Quem você tem? – Egg perguntou.
– O primo de Raymun, Sor Steffon.
Daeron estremeceu.
– Só um?
– Sor Steffon foi atrás de alguns amigos.
– Posso trazer algumas pessoas – Egg sugeriu. – Cavaleiros. Eu consigo.
– Egg – Dunk disse –, estarei lutando contra seus irmãos.
– Mas você não vai machucar Daeron – o garoto lembrou. – Ele lhe contou que vai cair. E
Aerion... lembro-me de que, quando eu era pequeno, ele costumava entrar no meu quarto à
noite e colocar uma faca entre minhas pernas. Tinha tantos irmãos homens, dizia, que talvez
uma noite me transformasse em sua irmã, então poderia se casar comigo. Além disso, jogou
meu gato no poço. Ele diz que não, mas sempre mente.
O Príncipe Daeron deu de ombros, cansado.
– Egg diz a verdade. Aerion é quase um monstro. Acha que é um dragão em forma humana,
sabe. E foi por isso que ficou tão furioso com o espetáculo de títeres. Uma pena que ele não
tenha nascido um Fossoway, pois pensaria que é uma maçã e todos estaríamos em segurança,
mas aqui estamos nós. – Dobrando-se, pegou o manto caído e sacudiu a água da chuva dele. –
Tenho que me esgueirar de volta ao castelo antes que meu pai se pergunte por que estou
demorando tanto para amolar a espada, mas, antes de eu ir, gostaria de uma palavra a sós, Sor
Duncan. Poderia me acompanhar?
Por um momento, Dunk olhou para o principezinho com desconfiança.
– Como desejar, Vossa Graça. – Embainhou o punhal. – Preciso buscar meu escudo também.
– Egg e eu procuraremos cavaleiros – Raymun prometeu.
O Príncipe Daeron prendeu seu manto ao redor do pescoço e ergueu o capuz. Dunk o seguiu
até a chuva leve. Caminharam na direção das carroças dos comerciantes.
– Sonhei com você – o príncipe disse.
– Você disse isso na estalagem.
– Disse? Bem, é verdade. Meus sonhos não são como os seus, Sor Duncan. Os meus são de
verdade. Assustam-me. Você me assusta. Sonhei com você e um dragão morto, veja. Um
animal grande, imenso, com asas tão grandes que podiam cobrir este campo. Tinham caído em
cima de você, mas você estava vivo e o dragão morto.
– Eu o matei?
– Isso eu não sei dizer, mas você estava lá, assim como o dragão. Fomos os mestres dos
dragões, antigamente, nós, os Targaryen. Agora todos se foram, mas nós permanecemos. Eu
não gostaria de morrer hoje. Só os deuses sabem o porquê, eu não sei. Então, faça-me uma
gentileza, se puder, e assegure-se de que seja Aerion quem você vai matar.
– Tampouco quero morrer – Dunk comentou.
– Bem, eu não o matarei, sor. Também vou retirar minha acusação, mas isso não servirá de
nada, a menos que Aerion retire a dele. – Suspirou. – Pode ser que eu o tenha matado com a
minha mentira. Nesse caso, sinto muito. Estou condenado a algum inferno, sei disso.
Provavelmente, um sem vinho. – Deu de ombros, e nesses termos se separaram, ali na leve
chuva fria.
Os comerciantes tinham parado suas carroças ao limite ocidental do campo, sob um
aglomerado de bétulas e freixos. Dunk parou embaixo das árvores e olhou impotente para o
lugar vazio onde a carroça dos titereiros estivera. Sumiram. Temera que isso acontecesse. Eu
também fugiria se não fosse tão cabeça-dura quanto uma muralha de castelo. Ele se
perguntava o que usaria como escudo agora. Tinha prata para comprar um, supunha, se
conseguisse encontrar um à venda...
– Sor Duncan – uma voz chamou da escuridão. Dunk se virou e deu de cara com Pate de Aço
parado atrás dele, segurando uma lamparina de ferro. Sob um manto curto de couro, o armeiro
estava nu da cintura para cima, o peito largo e os braços grandes cobertos de pelos grossos e
negros. – Se veio buscar seu escudo, ela o deixou comigo. – Olhou para Dunk de alto a baixo.
– Consigo contar duas mãos e dois pés. Então será julgamento por combate?
– Um julgamento de sete. Como sabe?
– Bem, eles podiam tê-lo beijado e lhe concedido um título de lorde, mas não parecia
provável, e, se as coisas tivessem seguido por outro caminho, você estaria sem alguns
pedaços. Agora, siga-me.
Sua carroça era fácil de distinguir pela espada e bigorna pintadas na lateral. Dunk seguiu
Pate para dentro. O armeiro pendurou a lamparina em um gancho, tirou o manto molhado e
vestiu uma túnica de tecido áspero pela cabeça. Uma tábua com dobradiças caiu de uma das
paredes para fazer uma mesa.
– Sente-se – Pate disse, empurrando um banco baixo em sua direção. Dunk se sentou.
– Para onde ela foi?
– Foram para Dorne. O tio da garota é um homem prudente. Desaparecido é esquecido.
Fique e seja visto, e talvez o dragão se lembre. Além disso, ele achou que ela não devia vê-lo
morrer. – Pate foi até o fundo da carroça, remexeu por uns momentos na sombra e voltou com
o escudo. – O rebordo era de aço barato, velho, quebradiço e enferrujado – comentou. – Fiz
um novo para você, duas vezes mais grosso, e coloquei algumas faixas na parte de trás. Vai
ficar mais pesado agora, mas mais forte também. A garota fez a pintura.
Ela havia feito um trabalho melhor do que ele jamais esperara. Mesmo sob a luz da
lamparina, as cores do pôr do sol eram ricas e vivas, a árvore, alta, forte e nobre. A estrela
cadente era uma pincelada de tinta brilhante através do céu de carvalho. Mas agora que Dunk
o tinha nas mãos, tudo parecia errado. A estrela estava caindo, que tipo de símbolo era
aquele? Ele cairia tão rápido quanto ela? E o poente anuncia a noite.
– Eu devia ter ficado com o cálice – disse, sentindo-se muito infeliz. – Pelo menos tinha
asas, para voar para longe, e Sor Arlan disse que a taça era cheia de fé e amizade e coisas
boas para se beber. O escudo está todo pintado como a morte.
– O olmo está vivo – Pate assinalou. – Vê como as folhas estão verdes? Folhas de verão,
com certeza. E já vi escudos com brasões com crânios, lobos, corvos e até homens enforcados
e cabeças ensanguentadas. No entanto, serviram bem o bastante. Conhece a velha rima do
escudo? Carvalho e ferro, guardem-me bem...
– ... senão estou morto e no inferno também – Dunk completou. Não pensava nessa rima há
anos. O velho a ensinara para ele, havia muito tempo. – Quanto lhe devo pelo novo rebordo e
tudo o mais? – perguntou para Pate.
– Você? – Pate coçou a barba. – Uma moeda de cobre.
A chuva quase parara por completo quando a primeira luz pálida se derramou pelo céu
oriental, mas fizera seu trabalho. Os homens de Lorde Ashford haviam removido as barreiras,
e o campo do torneio era um grande pântano de lama marrom-acinzentada e relva arrancada.
Tentáculos de fumaça se contorciam pelo chão como pálidas serpentes brancas enquanto Dunk
fazia o percurso até as listas. Pate de Aço caminhava com ele.
A arquibancada já começava a encher; os senhores e senhoras apertando os mantos de
encontro ao corpo para se proteger do frio da manhã. Os plebeus também perambulavam em
direção ao campo e centenas deles já se aglomeravam ao longo das cercas. Tanta gente veio
para me ver morrer, Dunk pensou com amargura, mas estava sendo injusto. A alguns passos
dali, uma mulher gritou:
– Boa sorte para você.
E um homem deu um passo adiante, pegou sua mão e disse:
– Que os deuses lhe deem força, sor.
Então um irmão mendicante, em uma túnica marrom esfarrapada, abençoou sua espada e uma
donzela lhe deu um beijo no rosto. Estão do meu lado.
– Por quê? – perguntou a Pate. – O que eu sou para eles?
– Um cavaleiro que se lembra de seus votos – o ferreiro respondeu.
Encontraram Raymun do lado de fora do cercado dos desafiadores na extremidade sul das
listas, esperando com o cavalo do primo e com o de Dunk. Trovão se mexia irrequieto sob o
peso da testeira, da barda e da pesada manta de cota de malha. Pate inspecionou a armadura e
afirmou que era um bom trabalho, embora outra pessoa a tivesse forjado. De onde quer que a
armadura tivesse vindo, Dunk estava grato.
Então viu os outros: o homem caolho com a barba grisalha, o jovem cavaleiro com o casaco
listrado de amarelo e negro, com as colmeias no escudo. Robyn Rhysling e Humfrey
Beesbury, pensou, espantado. E Sor Humfrey Hardyng também. Hardyng estava montado no
corcel de guerra ruivo de Aerion, que agora tinha arreios com seus losangos vermelhos e
brancos.
Foi até eles.
– Sores, estou em dívida com vocês.
– A dívida é de Aerion – Sor Humfrey Hardyng respondeu. – E pretendemos cobrá-la.
– Ouvi dizer que sua perna foi quebrada.
– Ouviu a verdade – Hardyng disse. – Não posso andar. Mas enquanto puder montar um
cavalo, posso lutar.
Raymun puxou Dunk de lado.
– Eu esperava que Hardyng fosse querer outra oportunidade para lutar com Aerion, e ele
queria. Acontece que o outro Humfrey é seu irmão pelo casamento. Egg é responsável por Sor
Robyn, a quem conhecia de outros torneios. Então vocês são cinco.
– Seis – Dunk falou, assombrado, apontando. Um cavaleiro estava entrando no cercado, seu
escudeiro levando o cavalo de guerra atrás dele. – O Tempestade Risonha. – Uma cabeça mais
alto do que Sor Raymun e quase da mesma altura de Dunk, Sor Lyonel usava um casaco de
samito que ostentava o veado coroado da Casa Baratheon e carregava seu elmo com chifres
embaixo do braço. Dunk lhe estendeu a mão. – Sor Lyonel, não tenho como agradecer o
suficiente por ter vindo, nem a Sor Steffon por trazê-lo.
– Sor Steffon? – Sor Lyonel lhe deu um olhar intrigado. – Foi seu escudeiro quem foi atrás
de mim. O menino Aegon. Meu rapaz tentou mandá-lo embora, mas ele passou por baixo de
suas pernas e jogou um jarro de vinho na minha cabeça. – Deu uma gargalhada. – Não há um
julgamento de sete há mais de cem anos, sabia disso? Eu não ia perder uma oportunidade de
lutar contra os cavaleiros da Guarda Real e, ao mesmo tempo, torcer o nariz do Príncipe
Maekar.
– Seis – Dunk disse esperançoso para Raymun Fossoway enquanto Sor Lyonel se juntava
aos demais. – Seu primo me trará o último, certamente.
Um rugido se ergueu da multidão. Na extremidade norte do campo, uma coluna de
cavaleiros veio trotando da névoa do rio. Os três membros da Guarda Real vinham primeiro,
como fantasmas em suas cintilantes armaduras de esmalte branco, com longos mantos brancos
esvoaçando pelas costas. Até mesmo seus escudos eram brancos, vazios e limpos, como um
campo de neve recém-caída. Atrás deles vinham o Príncipe Maekar e seus filhos. Aerion
estava montado em um malhado cinzento, com laranja e vermelho tremeluzindo nos arreios a
cada passo do cavalo. O corcel de batalha de seu irmão era um baio menor, armado com
escamas sobrepostas negras e douradas. Uma pluma de seda verde esvoaçava do elmo de
Daerion. Era o pai deles, no entanto, quem tinha a aparência mais terrível. Dentes negros
curvos de dragão corriam por seus ombros, seguiam até o alto do elmo e desciam pelas costas,
e o imenso mangual com saliências pontudas preso à sua sela era a arma de aspecto mais
mortal que Dunk jamais vira.
– Seis – Raymun exclamou de repente. – São apenas seis.
Era verdade, Dunk viu. Três cavaleiros negros e três brancos. Estão com um homem a
menos também. Seria possível que Aerion não tivesse sido capaz de encontrar um sétimo
homem? O que aquilo significava? Lutariam seis contra seis se ninguém achasse um sétimo?
Egg surgiu ao seu lado enquanto ele tentava chegar a uma conclusão.
– Sor, é hora de vestir sua armadura.
– Obrigado, escudeiro. Será que faria a gentileza?
Pate de Aço deu uma mão ao menino. Cota de malha e gorjal, grevas e manoplas, touca e
calção, eles o transformaram em aço, conferindo cada fivela e fecho três vezes. Sor Lyonel
estava sentado, afiando sua espada em uma pedra de amolar enquanto os Humfrey
conversavam em voz baixa, Sor Robyn rezava e Raymun Fossoway andava de um lado para o
outro, perguntando-se onde seu primo se metera.
Dunk estava completamente armado quando Sor Steffon finalmente apareceu.
– Raymun – chamou –, minha cota de malha, por favor. – Havia vestido um gibão
almofadado para usar por baixo do aço.
– Sor Steffon – Dunk falou –, e seus amigos? Precisamos de outro cavaleiro para formar
sete.
– Temo que precise de dois – Sor Steffon comentou. Raymun amarrou a parte de trás da cota
de malha.
– Senhor? – Dunk não entendeu. – Dois?
Sor Steffon pegou uma manopla de aço articulado de boa qualidade e a vestiu na mão
esquerda, flexionando os dedos.
– Vejo cinco aqui – disse enquanto Raymun prendia seu cinturão da espada. – Beesbury,
Rhysling, Hardyng, Baratheon e você.
– E você – Dunk completou. – Você é o sexto.
– Sou o sétimo – Sor Steffon falou, sorrindo. – Mas para o outro lado. Luto com o Príncipe
Aerion e seus acusadores.
Raymun estava prestes a entregar o elmo ao primo. Parou como se tivesse levado um golpe.
– Não.
– Sim – Sor Steffon deu de ombros. – Sor Duncan compreende, tenho certeza. Tenho um
dever para com meu príncipe.
– Disse a ele para confiar em você. – Raymun estava pálido.
– Disse? – Pegou o elmo das mãos do primo. – Não duvido de que tenha sido sincero no
momento. Traga meu cavalo.
– Pegue você mesmo – Raymun respondeu, zangado. – Se acha que desejo fazer parte disso,
é tão idiota quanto vil.
– Vil? – Sor Steffon estalou a língua. – Dobre a língua, Raymun. Somos ambos maçãs da
mesma árvore. E você é meu escudeiro. Ou já esqueceu seus votos?
– Não. Você esqueceu os seus? Jurou ser um cavaleiro.
– Serei mais do que um cavaleiro quando o dia de hoje terminar. Lorde Fossoway. Gosto de
como soa. – Sorrindo, vestiu a outra manopla, deu meia-volta e cruzou o cercado para pegar
seu cavalo. Embora os outros defensores o encarassem com olhar de desprezo, ninguém fez um
movimento sequer para impedi-lo.
Dunk observou Sor Steffon levar seu corcel de guerra para o outro lado do campo. Suas
mãos se fecharam em punho, mas sua garganta estava ferida demais para que pudesse falar.
Nenhuma palavra demoveria alguém como ele, de qualquer modo.
– Me arme cavaleiro. – Raymun colocou a mão no ombro de Dunk e o virou. – Tomarei o
lugar do meu primo. Sor Duncan, me arme. – Apoiou-se sobre um joelho.
Franzindo o cenho, Dunk levou a mão até o cabo de sua espada longa, mas hesitou.
– Raymun, eu... eu não devo.
– Você deve. Sem mim, são apenas cinco.
– O rapaz está certo – disse Sor Lyonel Baratheon. – Faça isso, Sor Duncan. Qualquer
cavaleiro pode armar um cavaleiro.
– Duvida da minha coragem? – Raymun perguntou.
– Não – Dunk respondeu. – Não é isso, mas... – Ainda assim hesitava.
Uma fanfarra de trombetas cortou o ar nebuloso da manhã. Egg veio correndo até eles.
– Sor, Lorde Ashford o convoca.
Tempestade Risonha fez um aceno impaciente com a mão.
– Vá, Sor Duncan. Armarei Sor Raymun cavaleiro. – Desembainhou sua espada e afastou
Dunk com um empurrão. – Raymun da Casa Fossoway – começou solenemente, tocando a
lâmina no ombro direito do escudeiro –, em nome do Guerreiro, eu o exorto a ter coragem. – A
espada se moveu do ombro direito para o esquerdo. – Em nome do Pai, eu o exorto a ser justo.
– De volta ao direito. – Em nome da Mãe, eu o exorto a defender os jovens e inocentes. – Para
o esquerdo. – Em nome da Donzela, eu o exorto a proteger todas as mulheres...
Dunk os deixou lá, sentindo-se tão aliviado quanto culpado. Ainda temos um a menos,
pensou enquanto Egg segurava Trovão para ele. Onde vou encontrar outro homem? Virou o
cavalo e cavalgou lentamente na direção da arquibancada, onde Lorde Ashford esperava. Da
extremidade norte das listas, o Príncipe Aerion avançou para encontrá-lo.
– Sor Duncan – disse alegremente –, vejo que só tem cinco campeões.
– Seis – Dunk o corrigiu. – Sor Lyonel está armando Raymun Fossoway. Lutaremos seis
contra sete. – Sabia que homens haviam vencido com perspectivas muito piores.
Mas Lorde Ashford negou com a cabeça.
– Isso não é permitido, sor. Se não pode encontrar outro cavaleiro para lutar ao seu lado,
deve ser declarado culpado dos crimes de que foi acusado.
Culpado, Dunk pensou. Culpado pela perda de um dente, e por isso devo morrer.
– Senhor, peço um momento.
– Pois o tem.
Dunk cavalgou lentamente ao longo da cerca. A arquibancada estava lotada de cavaleiros.
– Senhores – gritou para eles –, alguém se lembra de Sor Arlan de Centarbor? Eu era seu
escudeiro. Ele serviu muitos de vocês. Comeu em suas mesas e dormiu em seus salões. – Viu
Manfred Dondarrion sentado na fileira mais alta. – Sor Arlan foi ferido a serviço de seu pai.
– O cavaleiro disse alguma coisa para a senhora ao seu lado, sem prestar atenção. Dunk foi
obrigado a avançar. – Lorde Lannister, Sor Arlan o desmontou certa vez em um torneio. – O
Leão Grisalho examinou sua luva, recusando-se deliberadamente a levantar os olhos. – Ele
era um bom homem, e ensinou-me a ser um cavaleiro. Não só a lutar com a espada e a
lança, mas a ter honra. Um cavaleiro defende os inocentes, ele dizia. Foi tudo o que fiz.
Preciso de mais um cavaleiro para lutar ao meu lado. Um, é tudo. Lorde Caron? Lorde
Swann? – Lorde Swann riu de leve quando Lorde Caron sussurrou em seu ouvido.
Dunk se dirigiu a Sor Otho Bracken, abaixando a voz.
– Sor Otho, todos sabemos que é um grande campeão. Junte-se a nós, eu lhe peço. Em nome
dos deuses antigos e dos novos. Minha causa é justa.
– Pode ser – disse Bracken, o Bruto, que ao menos teve a educação de responder –, mas é a
sua causa, não a minha. Não o conheço, garoto.
Desolado, Dunk deu meia-volta com Trovão e correu de um lado para o outro diante das
fileiras de homens pálidos e frios. O desespero o fez gritar:
– NÃO HÁ CAVALEIROS DE VERDADE ENTRE VOCÊS?
Só o silêncio respondeu.
Do outro lado do campo, o Príncipe Aerion gargalhou.
– Não se zomba do dragão – gritou.
Então veio uma voz.
– Tomarei partido de Sor Duncan.
Um garanhão negro emergiu das névoas do rio, com um cavaleiro negro no dorso. Dunk viu
o escudo do dragão e o espigão esmaltado de vermelho no alto do elmo com três cabeças
rugindo. O Jovem Príncipe. Deuses sejam bons, é realmente ele?
Lorde Ashford cometeu o mesmo engano.
– Príncipe Valarr?
– Não. – O cavaleiro negro ergueu a viseira do elmo. – Não pensava em entrar nas listas em
Vaufreixo, meu senhor, então não trouxe armadura. Meu filho foi bastante gentil em me
emprestar a dele. – O Príncipe Baelor sorriu quase com tristeza.
Os acusadores estavam confusos, Dunk podia ver. O Príncipe Maekar esporeou o cavalo
adiante.
– Irmão, você perdeu o juízo? – Apontou um dedo revestido em cota de malha para Dunk. –
Este homem atacou meu filho.
– Este homem protegeu o fraco, como todo cavaleiro de verdade deve fazer – o Príncipe
Baelor respondeu. – Deixe que os deuses determinem se ele estava certo ou errado. – Deu um
puxão em suas rédeas, virou o imenso cavalo de guerra de Valarr e trotou para a extremidade
sul do campo.
Dunk parou Trovão ao lado dele, e os outros defensores se reuniram ao redor deles: Robyn
Rhysling e Sor Lyonel, os Humfrey. Todos bons homens, mas serão bons o bastante?
– Onde está Raymun?
– Sor Raymun, por favor. – Ele se aproximou a meio galope, um sorriso impiedoso
iluminando seu rosto sob o elmo emplumado. – Minhas desculpas, sor. Precisei fazer uma
pequena mudança no meu símbolo para não ser confundido com meu desonroso primo. –
Mostrou o escudo para todos. O polido escudo dourado permanecia o mesmo, assim como a
maçã Fossoway, mas a fruta era verde em vez de vermelha. – Temo ainda não estar maduro...
mas melhor verde do que estragado, não?
Sor Lyonel gargalhou e Dunk deu um sorriso involuntário. Até o Príncipe Baelor pareceu
aprovar.
O septão de Lorde Ashford foi até a frente da arquibancada e ergueu o cristal para convocar
a multidão para uma prece.
– Prestem atenção, todos vocês – Baelor disse em voz baixa. – Os acusadores virão
armados com pesadas lanças de guerra na primeira investida. Lanças de freixo, com dois
metros de comprimento, com bandas para evitar que quebrem e com ponta de aço
suficientemente afiada para penetrar a armadura com o peso de um cavalo de guerra por trás.
– Usaremos o mesmo – disse Sor Humfrey Beesbury. Atrás dele, o septão convocava os
Sete a olhar para baixo e julgar essa disputa, e garantir a vitória para os homens cuja causa
fosse justa.
– Não – Baelor falou. – Vamos nos armar com lanças de torneio, em vez disso.
– Lanças de torneio são feitas para quebrar – Raymun objetou.
– Também têm três metros de comprimento. Se nossas pontas atingirem o alvo, as deles não
poderão nos tocar. Mirem no elmo ou no peito. Em um torneio é uma coisa valente quebrar sua
lança contra o escudo do adversário, mas aqui isso também significa morte. Se pudermos
desmontá-los e nos manter em nossas selas, a vantagem será nossa. – Olhou para Dunk. – Se
Sor Duncan for morto, significará que os deuses o julgaram culpado, e a disputa estará
acabada. Se ambos os acusadores forem mortos ou retirarem as acusações, significará o
mesmo. De outro modo, todos os sete de um lado ou do outro deverão perecer ou se render
para que o julgamento termine.
– O Príncipe Daeron não vai lutar – Dunk falou.
– Não lutaria bem de qualquer modo – Sor Lyonel gargalhou. – Contra isso, temos três das
Espadas Brancas para combater.
Baelor encarou aquilo com calma.
– Meu irmão errou quando exigiu que a Guarda Real lutasse por seu filho. Seus votos os
proíbem de ferir um príncipe do sangue. Felizmente, é o que sou. – Deu um sorriso leve. –
Mantenham os outros longe de mim durante tempo suficiente, que lidarei com a Guarda Real.
– Meu príncipe, isso é cavalheiresco? – Sor Lyonel Baratheon perguntou enquanto o septão
terminava sua invocação.
– Os deuses nos farão saber – disse Baelor Quebra-Lança.
Um profundo silêncio de expectativa caiu sobre a Campina de Vaufreixo.
A setenta metros de distância, o garanhão cinzento de Aerion relinchava impaciente e batia
com a pata no chão lamacento. Trovão estava muito quieto em comparação; era um cavalo
mais velho, veterano de meia centena de batalhas, sabia o que era esperado dele. Egg entregou
o escudo a Dunk.
– Que os deuses estejam com você, sor – o garoto disse.
A visão de seu olmo e da estrela cadente lhe deu ânimo. Dunk passou o braço esquerdo pela
correia e apertou os dedos em volta do punho. Carvalho e ferro, guardem-me bem, senão
estou morto e no inferno também. Pate de Aço lhe trouxe sua lança, mas Egg insistiu que ele é
quem devia colocá-la na mão de Dunk.
De ambos os lados, seus companheiros pegaram as lanças e se espalharam em uma longa
fileira. O Príncipe Baelor estava à sua direita e Sor Lyonel, à esquerda, mas a abertura estreita
do elmo limitava a visão de Dunk ao que estava diretamente à sua frente. A arquibancada
desaparecera, assim como os plebeus que lotavam as cercas; havia apenas o campo
enlameado, a bruma pálida soprada pelo vento, o rio, a vila e o castelo ao norte, e o
principezinho em seu cavalo de guerra cinzento com chamas no elmo e um dragão no escudo.
Dunk viu o escudeiro de Aerion lhe dar uma lança de guerra, com dois metros de comprimento
e negra como a noite. Ele atravessará meu coração com ela se puder.
Uma corneta soou.
Por um segundo, Dunk ficou imóvel como uma mosca em âmbar, embora todos os cavalos
estivessem se movendo. Uma pontada de pânico o atravessou. Esqueci, pensou enlouquecido,
esqueci tudo, vou me envergonhar, vou perder tudo.
Trovão o salvou. O grande garanhão castanho sabia o que fazer, mesmo que seu cavaleiro
não soubesse. Arrancou em um trote lento. Então o treinamento de Dunk assumiu o controle.
Deu um leve toque com as esporas no cavalo de guerra e posicionou a lança. Ao mesmo
tempo, virou o escudo de forma a cobrir a maior parte da lateral esquerda de seu corpo.
Segurou-o em um ângulo que defletisse os golpes para longe dele. Carvalho e ferro, guardemme
bem, senão estou morto e no inferno também.
O ruído da multidão não era mais do que o rebentar distante de ondas. Trovão começou a
galopar. Os dentes de Dunk rangeram violentamente com o ritmo. Pressionou os calcanhares
para baixo, apertando as pernas com toda a força e deixando que seu corpo se tornasse parte
do movimento do cavalo embaixo dele. Sou Trovão e Trovão sou eu, somos um único animal,
estamos unidos, somos um. O ar dentro de seu elmo já estava tão quente que ele mal podia
respirar.
Em uma justa de torneio, seu adversário estaria à sua esquerda, do outro lado da barreira, e
ele teria que virar a lança por cima do pescoço de Trovão. O ângulo fazia com que fosse mais
provável que a madeira rompesse com o impacto. Mas o jogo daquele dia era mais mortal.
Sem barreiras para separá-los, os cavalos investiam diretamente um contra o outro. O imenso
cavalo negro do Príncipe Baelor era muito mais rápido do que Trovão, e Dunk o vislumbrou
cavalgando na sua frente através do canto do visor do elmo. Sentia os outros mais do que os
via. Eles não importam, apenas Aerion importa, só ele.
Via o dragão se aproximar. Respingos de lama saltavam dos cascos do cavalo cinzento do
Príncipe Aerion, e Dunk podia ver as narinas do animal se dilatarem. A lança negra ainda se
inclinava para cima. Um cavaleiro que segura sua lança para o alto e a alinha no último
momento sempre corre o risco de abaixar tarde demais, o velho lhe dizia. Dunk mirou a ponta
de sua arma no meio do peito do principezinho. Minha lança é parte do meu braço, disse
para si mesmo. É meu dedo, um dedo de madeira. Tudo o que preciso fazer é tocá-lo com
meu longo dedo de madeira.
Tentou não ver a ponta de ferro afiada na extremidade da lança negra de Aerion, ficando
maior a cada passo. O dragão, olhe para o dragão, Dunk pensou. O grande animal de três
cabeças cobria o escudo do príncipe, asas vermelhas e fogo dourado. Não, olhe só para onde
pretende atingir, lembrou-se de repente, mas sua lança já começara a deslizar para o lado.
Tentou corrigi-la, mas era tarde demais. Viu a ponta acertar o escudo de Aerion, atingindo o
dragão entre duas de suas cabeças, arrancando uma gota de chama pintada. Quando soou um
estalo abafado, sentiu Trovão se retrair sob seu corpo, tremendo com a força do impacto, e,
meio segundo mais tarde, algo se esmagou contra seu flanco com uma força incrível. Os
cavalos colidiram violentamente, as armaduras batendo e ressoando, enquanto Trovão
tropeçava e a lança de Dunk caía de sua mão. Então ele havia passado por seu adversário,
agarrado à sua sela, em um esforço desesperado para continuar montado. Trovão se inclinou
de lado na lama escorregadia e Dunk sentiu suas patas traseiras escorregarem por baixo do
cavalo. Elas deslizaram, rodopiaram e então o traseiro do garanhão bateu com força no chão.
– Para cima! – Dunk rugiu, golpeando com as esporas. – Para cima, Trovão! – E, de algum
modo, o velho cavalo de guerra ficou em pé novamente.
Dunk sentia uma dor aguda nas costelas, e seu braço esquerdo estava sendo puxado para
baixo. Aerion levara sua lança através do carvalho, da lã e do aço; um metro de freixo
estilhaçado e ferro afiado projetava-se na lateral de seu corpo. Dunk estendeu a mão direita,
agarrou a lança logo abaixo da cabeça, travou os dentes e arrancou-a com um puxão violento.
O sangue veio, jorrando pelos elos da cota de malha e manchando de vermelho o sobretudo. O
mundo girou e ele quase caiu. Vagamente, através da dor, podia ouvir vozes chamando seu
nome. Seu belo escudo era inútil agora. Jogou-o de lado, olmo, estrela cadente, lança
quebrada e tudo o mais, e desembainhou a espada, mas sentia tanta dor que não achava que
pudesse golpear.
Virando Trovão em um círculo estreito, tentou ter uma ideia do que estava acontecendo em
outros lugares do campo. Sor Humfrey Hardyng estava agarrado ao pescoço de sua montaria,
obviamente ferido. O outro Sor Humfrey jazia imóvel em um lago de lama manchada de
sangue, com uma lança quebrada saindo de sua virilha. Viu o Príncipe Baelor passar
galopando, a lança ainda intacta, e derrubar da sela um dos homens da Guarda Real. Outro
cavaleiro branco já estava caído, e Maekar também fora desmontado. O terceiro cavaleiro da
Guarda Real estava rechaçando Sor Robyn Rhysling.
Aerion, onde está Aerion? O som de cascos tamborilando atrás de si fez Dunk virar a
cabeça rapidamente. Trovão bramiu e empinou, sacudindo os cascos inutilmente enquanto o
garanhão cinzento de Aerion ia contra ele a todo galope.
Dessa vez não havia esperança de recuperação. A espada longa saiu rodopiando de suas
mãos e o chão se ergueu para encontrar Dunk. Aterrissou com um impacto doloroso que o
sacudiu até os ossos. A dor o apunhalou com tanta força que soluçou. Por um momento, tudo o
que pôde fazer foi ficar deitado ali. O gosto de sangue enchia-lhe a boca. Dunk, o pateta,
pensou que podia ser um cavaleiro. Ele sabia que tinha de ficar em pé novamente, ou
morreria. Gemendo, obrigou-se a apoiar o corpo nas mãos e nos joelhos. Não conseguia
respirar, não conseguia ver. A fenda de seu elmo estava entupida de lama. Ficando em pé sem
enxergar, Dunk raspou a lama com um dedo recoberto de cota de malha. Ali, aquilo é...
Através dos dedos, vislumbrou um dragão voando, e um mangual cheio de pontas
rodopiando na ponta de uma corrente. Então sua cabeça pareceu explodir em pedacinhos.
Quando seus olhos se abriram, estava no chão novamente, estatelado de costas. A lama
havia sido arrancada do elmo, mas agora um olho estava fechado por causa do sangue. Acima
não havia nada além do céu cinza-escuro. Seu rosto latejava, e conseguia sentir o metal frio e
úmido pressionando sua bochecha e as têmporas. Ele quebrou minha cabeça, e estou
morrendo. O pior era que os outros morreriam com ele, Raymun e o Príncipe Baelor e o
restante. Falhei com eles. Não sou um campeão. Não sou nem mesmo um cavaleiro andante.
Não sou coisa alguma. Lembrou-se do Príncipe Daeron gabando-se de que ninguém conseguia
ficar desmaiado na lama tão bem quanto ele. Ele nunca viu Dunk, o pateta, viu? A vergonha
era pior do que a dor.
O dragão apareceu sobre ele.
Tinha três cabeças e asas brilhantes como chamas, vermelha, amarela e laranja. Estava
gargalhando.
– Já está morto, cavaleiro andante? – perguntou. – Peça misericórdia e admita sua culpa, e
talvez eu só reivindicarei uma mão e um pé. Ah, e esses dentes. Mas o que são alguns dentes?
Um homem pode viver anos a base de papa de ervilhas. – O dragão gargalhou novamente. –
Não? Coma isto, então. – A bola pontiaguda rodopiou uma e outra vez no céu e caiu na
direção de sua cabeça tão rápido quanto uma estrela cadente.
Dunk rolou.
Onde encontrou forças, não saberia dizer, mas encontrou. Rolou até as pernas de Aerion,
envolveu a coxa dele com um braço vestido de aço, arrastou-o para a lama e rolou por cima
dele. Quero ver ele rodopiar o maldito mangual agora. O príncipe tentou forçar a borda de
seu escudo contra a cabeça de Dunk, mas o elmo amassado absorveu a maior parte do
impacto. Aerion era forte, mas Dunk era mais forte, maior e mais pesado também. Agarrou o
escudo do príncipe e o torceu até que as correias arrebentassem. Então bateu com ele no alto
do elmo do principezinho, uma vez e outra e mais outra, esmagando as chamas esmaltadas de
seu espigão. O escudo era mais grosso que o de Dunk, carvalho sólido reforçado com ferro.
Uma chama quebrou. Depois outra. O príncipe ficou sem chamas muito antes que Dunk parasse
com os golpes.
Aerion finalmente largou o cabo do inútil mangual e tentou agarrar o seu punhal. Conseguiu
tirá-lo da bainha, mas quando Dunk lhe deu uma pancada na mão com o escudo, o punhal
saltou para a lama.
Ele podia vencer Sor Duncan, o Alto, mas não Dunk da Baixada das Pulgas. O velho lhe
ensinara a disputar justas e a lutar com espadas, mas esse tipo de luta ele aprendera antes, nas
ruelas sombrias e vielas sinuosas atrás das tavernas da cidade. Dunk jogou longe o escudo
amassado e abriu a viseira do elmo de Aerion.
Uma viseira é um ponto fraco, lembrou-se do que disse Pate de Aço. O príncipe tinha
parado completamente de lutar. Seus olhos estavam roxos e cheios de terror. Dunk teve uma
vontade súbita de agarrar um deles e esmagá-lo como uma uva entre dois dedos de aço, mas
isso não seria cavalheiresco.
– RENDA-SE! – gritou.
– Eu me rendo – o dragão sussurrou, os lábios pálidos mal se movendo. Dunk pestanejou
para ele. Por um momento, não conseguiu acreditar em seus ouvidos. Acabou, então? Virou a
cabeça lentamente, de um lado para o outro, tentando ver. A fresta do elmo estava
parcialmente fechada pelo golpe que esmagara o lado esquerdo de seu rosto. Vislumbrou o
Príncipe Maekar, a maça na mão, tentando abrir caminho para junto do filho. Baelor QuebraLança
o detinha.
Dunk se levantou e colocou o Príncipe Aerion em pé. Tateando os cordões de seu elmo,
arrancou-o e jogou-o longe. Imediatamente foi submergido em cenas e sons; grunhidos e
xingamentos, os gritos da multidão, um garanhão berrando enquanto outro corria sem cavaleiro
pelos campos. Por todos os lados, aço ressoava em aço. Raymun e o primo golpeavam um ao
outro em frente à arquibancada, ambos em pé. Seus escudos estavam em frangalhos, a maçã
verde e a vermelha transformadas em mechas. Um dos cavaleiros da Guarda Real carregava o
irmão ferido para fora do campo. Ambos pareciam iguais em suas armaduras e mantos
brancos. O terceiro dos cavaleiros brancos estava caído, e Tempestade Risonha se juntara ao
Príncipe Baelor contra o Príncipe Maekar. Maça, machado de batalha e espada longa retiniam
e ressoavam em elmos e escudos. Maekar recebia três golpes para cada um que dava, e Dunk
percebeu que logo estaria acabado. Preciso dar um fim nisso antes que mais algum de nós
acabe morto.
O Príncipe Aerion deu um mergulho súbito para o mangual. Dunk o chutou nas costas e o
atirou de rosto no chão, então agarrou uma de suas pernas e o arrastou pelo campo. Quando
chegou à arquibancada onde Lorde Ashford estava, o Príncipe Brilhante estava sujo como uma
latrina. Dunk o colocou em pé e o sacudiu, respingando um pouco de lama em Lorde Ashford e
na bela donzela.
– Diga a ele!
Aerion Chamaviva cuspiu um bocado de relva e terra.
– Retiro minha acusação.
Mais tarde, Dunk não foi capaz de dizer se saiu do campo por conta própria ou se precisara de
ajuda. Seu corpo doía por todo lado, e alguns lugares eram piores do que outros. Sou um
cavaleiro de verdade agora?, lembrava-se de ter perguntado a si mesmo. Sou um campeão?
Egg o ajudou a tirar as grevas e o gorjal, e Raymun também, e até Pate de Aço. Estava
aturdido demais para distinguir um do outro. Eram dedos, polegares e vozes. Pate era aquele
que estava reclamando, Dunk sabia.
– Olhe o que ele fez com minha armadura – falou. – Toda golpeada, amassada e riscada.
Sim, eu lhe pergunto, por que me incomodo? Temo que tenha que cortar essa cota de malha.
– Raymun – Dunk disse com urgência, segurando a mão do amigo. – Os outros. Como se
saíram? – Tinha que saber. – Alguém morreu?
– Beesbury – Raymun contou. – Morto por Donnel de Valdocaso na primeira investida. Sor
Humfrey está gravemente ferido também. O resto de nós está machucado e ensanguentado,
nada de mais. Exceto você.
– E eles? Os acusadores?
– Sor Willem Wylde da Guarda Real foi levado do campo inconsciente, e acho que quebrei
algumas costelas do meu primo. Pelo menos espero que sim.
– E o Príncipe Daeron? – Dunk questionou. – Sobreviveu?
– Assim que Sor Robyn o desmontou, ele ficou deitado onde caiu. Pode ter quebrado um pé.
Seu próprio cavalo o pisoteou enquanto corria solto pelo campo.
Aturdido e confuso como estava, Dunk sentiu uma enorme sensação de alívio.
– O sonho dele estava errado, então. O dragão morto. A menos que Aerion morresse. Mas
ele não morreu, morreu?
– Não – Egg falou. – Você o poupou. Não se lembra?
– Acho que sim. – As lembranças da luta já estavam ficando confusas e vagas. – Em um
momento, sinto como se estivesse bêbado. No outro, dói tanto que sei que estou morrendo.
Eles o fizeram se deitar de costas e ficaram conversando enquanto ele olhava o turbulento
céu cinzento. Parecia para Dunk que ainda era manhã. Perguntou-se quanto tempo teria durado
a luta.
– Que os deuses sejam bons, a ponta da lança enterrou profundamente os elos na carne –
ouviu Raymun dizer. – Vai necrosar, a menos que...
– Embebede-o e despeje um pouco de óleo fervente na ferida – alguém sugeriu. – É assim
que os meistres fazem.
– Vinho. – A voz tinha uma ressonância metálica. – Óleo não, isso vai matá-lo. É vinho
fervente. Vou mandar Meistre Yormwell dar uma olhada nele assim que acabar de cuidar do
meu irmão.
Um cavaleiro alto assomou-se sobre ele, a armadura negra amassada e riscada por vários
golpes. Príncipe Baelor. O dragão escarlate em seu elmo perdera uma cabeça, as duas asas e
grande parte da cauda.
– Vossa Graça – Dunk disse. – Sou seu homem. Por favor. Seu homem.
– Meu homem. – O cavaleiro negro colocou a mão no ombro de Raymun para se equilibrar.
– Preciso de bons homens, Sor Duncan. O reino... – Sua voz parecia estranhamente arrastada.
Talvez tivesse mordido a língua.
Dunk estava muito cansado. Era difícil permanecer acordado.
– Seu homem – murmurou mais uma vez.
O príncipe moveu lentamente a cabeça de um lado para o outro.
– Sor Raymun... meu elmo, por gentileza. A viseira... a viseira está rachada, e meus dedos...
meus dedos parecem de madeira...
– Imediatamente, Vossa Graça. – Raymun pegou o elmo do príncipe com as duas mãos e
grunhiu. – Mestre Pate, ajude.
Pate de Aço arrastou um banquinho para perto.
– Está esmagado na parte de trás, Vossa Graça, do lado esquerdo. Foi esmagado para dentro
do gorjal. Aço bom, esse, para deter um golpe assim.
– O mangual do meu irmão, provavelmente – Baelor disse com a voz grossa. – Ele é forte. –
Estremeceu. – Isso... parece estranho, eu...
– Aí vem – Pate ergueu o elmo amassado. – Que os deuses sejam bons. Ah, deuses, ah,
deuses, ah, deuses protejam...
Dunk viu algo vermelho e úmido cair do elmo. Alguém estava gritando, um grito alto e
terrível. Contra o céu cinzento sombrio, um príncipe alto de armadura negra cambaleou com
metade do crânio apenas. Dunk pôde ver o sangue vermelho e o osso claro por baixo e algo
mais, algo azul-acinzentado e mole. Uma expressão estranha e perturbada passou pelo rosto de
Baelor Quebra-Lança, como uma nuvem passando diante do sol. Ele levantou a mão e tocou a
parte de trás da cabeça com dois dedos, levemente. E então caiu.
Dunk o segurou.
– Para cima – dizem que ele falou, assim como fizera com Trovão no corpo a corpo. – Para
cima, para cima. – Mas nunca se lembraria disso depois, e o príncipe não se levantou.
Baelor da Casa Targaryen, Príncipe de Pedra do Dragão, Mão do Rei, Protetor do Reino e
herdeiro legítimo do Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros, foi entregue ao fogo no
pátio do Castelo de Vaufreixo, na margem norte do rio Molusqueiro. Outras grandes casas
podiam escolher entre enterrar seus mortos na terra escura ou afundá-los no mar verde e frio,
mas os Targaryen eram o sangue do dragão, e seu final era escrito em chamas.
Fora o melhor cavaleiro da sua época, e alguns argumentaram que ele devia partir para
enfrentar as trevas com cota de malha e placa de aço, e uma espada em cada mão. No fim, no
entanto, prevaleceram os desejos de seu real pai, e Daeron II tinha uma natureza pacífica.
Quando Dunk passou pelo ataúde de Baelor arrastando os pés, o príncipe usava uma túnica
negra de veludo com o dragão de três cabeças realçado com linha escarlate sobre o peito. Ao
redor de sua garganta havia uma pesada corrente de ouro. Sua espada estava embainhada ao
lado do corpo, mas ele usava um elmo, um fino elmo dourado com uma viseira aberta para que
as pessoas pudessem ver seu rosto.
Valarr, o Jovem Príncipe, ficou de vigília aos pés do ataúde do pai enquanto Baelor era
velado. Era uma versão mais baixa, mais magra, mais bonita do seu progenitor, sem o nariz
duas vezes quebrado que fazia Baelor parecer mais humano do que régio. O cabelo de Valarr
era castanho, mas atravessado por uma brilhante mecha de louro-prateado. Essa visão fez
Dunk se lembrar de Aerion, mas sabia que não era justo. O cabelo de Egg crescia claro como
o do irmão, e Egg era um garoto bem decente para um príncipe.
Quando parou para oferecer desajeitadas condolências, bem carregadas de agradecimentos,
o Príncipe Valarr pestanejou os frios olhos azuis para ele e disse:
– Meu pai tinha apenas trinta e nove anos. Tinha qualidades para ser um grande rei, o maior
desde Aegon, o Dragão. Por que os deuses o levaram e deixaram você? – Balançou a cabeça.
– Vá embora, Sor Duncan. Vá embora.
Sem palavras, Dunk mancou para fora do castelo e dirigiu-se para o acampamento ao lado
da lagoa verde. Não tinha resposta para Valarr. Nem para as perguntas que fazia a si mesmo.
Os meistres e o vinho fervente haviam feito seu trabalho e seu ferimento sarava de forma
limpa, embora fosse ficar com uma profunda cicatriz franzida entre o braço esquerdo e o
mamilo. Não conseguia olhar para o ferimento sem pensar em Baelor. Ele me salvou uma vez
com sua espada e uma vez com uma palavra, apesar de já ser um homem morto quando
estava parado ali. O mundo não fazia sentido quando um grande príncipe morria para que um
cavaleiro andante pudesse viver. Dunk sentou-se sob o olmo e encarou sombriamente os pés.
Quando quatro guardas com a libré real apareceram em seu acampamento no final de uma
tarde, Dunk teve certeza de que iam matá-lo no final das contas. Muito fraco e muito cansado
para estender a mão e pegar uma espada, ficou sentado com as costas apoiadas no olmo,
esperando.
– Nosso príncipe suplica o favor de uma conversa privada.
– Qual príncipe? – Dunk perguntou, cauteloso.
– Este príncipe – uma voz brusca disse antes que o capitão pudesse responder. Maekar
Targaryen avançou, vindo de trás do olmo.
Dunk se levantou lentamente. O que ele quer de mim agora?
Maekar fez um gesto e os guardas desapareceram tão repentinamente quanto haviam
aparecido. O príncipe o estudou por um longo momento, então deu meia-volta e se afastou até
parar ao lado da lagoa, olhando o próprio reflexo na água.
– Mandei Aerion para Lys – anunciou abruptamente. – Talvez alguns anos nas Cidades
Livres o mudem para melhor.
Dunk nunca estivera nas Cidades Livres, então não sabia o que responder. Estava satisfeito
por Aerion ter saído dos Sete Reinos e esperava que nunca mais voltasse, mas isso não era
uma coisa para dizer a um pai sobre seu filho. Ficou em silêncio.
O Príncipe Maekar virou o rosto para ele.
– Alguns homens dirão que eu pretendia matar meu irmão. Os deuses sabem que é mentira,
mas ouvirei os sussurros até o dia da minha morte. E foi minha maça que deu o golpe fatal, não
tenho dúvidas. Os outros únicos adversários que ele enfrentou no corpo a corpo foram os três
cavaleiros da Guarda Real, cujos votos proíbem que façam qualquer outra coisa além de se
defender. Então, fui eu. Estranho dizer, não me lembro do golpe que arrebentou seu crânio. É
uma bênção ou uma maldição? Um pouco dos dois, acho.
Pelo jeito que olhava para Dunk, parecia que o príncipe queria uma resposta.
– Não posso dizer, Vossa Graça. – Talvez devesse odiar Maekar, mas, em vez disso, sentia
uma estranha simpatia pelo homem. – Você o acertou com a maça, senhor, mas foi por mim que
o Príncipe Baelor morreu. Então eu o matei tanto quanto o senhor.
– Sim – o príncipe admitiu. – Você os ouvirá sussurrar também. O rei está velho. Quando ele
morrer, Valarr assumirá o Trono de Ferro no lugar de seu pai. Cada vez que uma batalha for
perdida ou uma colheita der errado, os tolos dirão “Baelor não deixaria isso acontecer, mas o
cavaleiro andante o matou”.
Dunk podia ver a verdade naquilo.
– Se eu não lutasse, vocês teriam cortado minha mão. E meu pé. Algumas vezes me sento
sob aquela árvore e olho para meus pés e me pergunto se não podia ter dado um deles. Como
meu pé pode valer mais do que a vida de um príncipe? E os outros dois também, os Humfrey,
eram bons homens. – Sor Humfrey Hardyng havia sucumbido aos ferimentos na noite anterior.
– E que resposta sua árvore dá?
– Nenhuma que eu consiga escutar. Mas o velho, Sor Arlan, dizia todos os dias ao cair da
noite: “Pergunto-me o que o amanhã trará”. Ele nunca soube, não mais do que eu sei. Bem,
pode ser que chegue algum amanhã em que eu precise do meu pé? Em que o reino precise
desse pé ainda mais do que da vida de um príncipe?
Maekar remoeu aquilo por um tempo, a boca travada sob a barba prateada que fazia seu
rosto parecer tão quadrado.
– Não é nem um pouco provável – disse com dureza. – O reino tem tantos cavaleiros
andantes quanto andanças, e todos eles têm pés.
– Se Vossa Graça tem uma resposta melhor, eu gostaria de ouvir.
Maekar franziu o cenho.
– Pode ser que os deuses gostem de piadas cruéis. Ou talvez não existam deuses. Talvez
nada disso tenha significado algum. Eu perguntaria ao Alto Septão, mas da última vez que fui
até ele, ele me disse que nenhum homem pode realmente entender as obras dos deuses. Talvez
ele devesse experimentar dormir embaixo de uma árvore. – Fez uma careta. – Meu filho mais
novo parece ter se ligado a você, sor. É hora de ele ser um escudeiro, mas ele me diz que não
servirá a nenhum cavaleiro além de você. É um rapaz indisciplinado, como deve ter notado.
Ficará com ele?
– Eu? – a boca de Dunk abriu e fechou, e abriu novamente. – Egg... Aegon, quero dizer... ele
é um bom garoto, mas, Vossa Graça, sei que me honra, mas... sou só um cavaleiro andante.
– Isso pode ser mudado – Maekar falou. – Aegon vai retornar para meu castelo em
Solarestival. Há um lugar para você, se desejar. Um cavaleiro da minha casa. Jure sua espada
para mim e Aegon poderá ser seu escudeiro. Enquanto você o treinar, meu mestre de armas
completará seu treinamento. – O príncipe lhe deu um olhar astuto. – Seu Sor Arlan fez tudo o
que podia por você, mas ainda tem muito o que aprender.
– Eu sei, meu senhor. – Dunk olhou ao seu redor. Para a relva verde e os juncos, o olmo
alto, as ondulações dançando pela superfície da lagoa iluminada pelo sol. Outra libélula se
movia pela água, ou talvez fosse a mesma do outro dia. O que vai ser, Dunk?, perguntou a si
mesmo. Libélulas ou dragões? Alguns dias antes, teria respondido imediatamente. Era tudo
com o que sempre sonhara, mas agora que a perspectiva estava ao seu alcance, aquilo o
assustava. – Imediatamente antes de o Príncipe Baelor morrer, jurei ser seu homem.
– Presunçoso de sua parte – Maekar comentou. – O que ele disse?
– Que o reino precisava de bons homens.
– Isso é verdade. E o que tem?
– Aceitarei seu filho como meu escudeiro, Vossa Graça, mas não em Solarestival. Não por
um ano ou dois. Ele já viu castelos suficientes, imagino. Só o aceitarei se puder levá-lo
comigo para a estrada – apontou para a velha Castanha. – Ele montará meu corcel, vestirá meu
manto velho e manterá minha espada afiada e minha cota de malha limpa. Dormiremos em
estalagens e estábulos e, de vez em quando, nos salões de algum cavaleiro com terras ou
senhor de menor importância, e talvez sob as árvores quando for necessário.
O príncipe Maekar lhe deu um olhar incrédulo.
– O julgamento abalou seu juízo, homem? Aegon é um príncipe real. O sangue do dragão.
Príncipes não são feitos para dormir em valas e comer carne salgada dura. – Viu que Dunk
hesitou. – O que tem medo de me dizer? Diga o que desejar, sor.
– Daeron nunca dormiu em uma vala, aposto – Dunk disse, muito baixinho. – E toda a carne
que Aerion já comeu era grossa, tenra e ensanguentada, provavelmente.
Maekar Targaryen, Príncipe de Solarestival, olhou Dunk da Baixada das Pulgas por um
longo tempo, a mandíbula movendo-se em silêncio sob a barba prateada. Por fim, deu meiavolta
e afastou-se, sem dizer uma palavra. Dunk o ouviu partir com seus homens. Quando se
foram, o único som era o tênue zumbido das asas da libélula que voava rente sobre a água.
O menino chegou na manhã seguinte, no momento em que o sol nascia. Usava botas velhas,
calção marrom, uma túnica de lã marrom e um manto velho de viagem.
– O senhor meu pai diz que tenho de servi-lo.
– Servi-lo, sor – Dunk o recordou. – Pode começar selando os cavalos. Castanha é sua,
trate-a com gentileza. Não quero encontrá-lo montado no Trovão, a menos que eu o coloque lá.
Egg foi até as selas.
– Para onde vamos, sor?
Dunk pensou por um momento.
– Nunca estive para os lados das Montanhas Vermelhas. Gostaria de dar uma olhada em
Dorne?
Egg sorriu.
– Ouvi dizer que eles têm bons espetáculos de títeres – comentou.
Trocadilho, em inglês, com o nome do personagem “egg”, ou seja “ovo”. (N. do E.)
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