quinta-feira, 26 de maio de 2016

Conscrito n° 84

 A Espada Juramentada 
Um Conto dos Sete Reinos


E m uma gaiola de ferro na encruzilhada, dois homens mortos apodreciam sob o sol de verão. Egg parou embaixo para dar uma olhada neles. – Quem acha que eram, sor? – A mula dele, Meistre, grata pela pausa, começou a pastar a erva-do-diabo seca e marrom na margem da estrada, sem se importar com os dois imensos barris de vinho em suas costas. – Ladrões – Dunk falou. Montado em Trovão, ele estava muito mais perto dos mortos. – Estupradores. Assassinos. – Círculos escuros manchavam a velha túnica verde dele embaixo dos braços. O céu estava azul e o sol ardia quente, e ele suava litros desde que deixaram o acampamento naquela manhã. Egg tirou o chapéu de palha de abas largas e moles. Sua cabeça era careca e brilhante. Usou o chapéu para afastar as moscas. Havia centenas delas pousando sobre os mortos, e mais ainda vagando preguiçosamente pelo ar quente e parado. – Deve ter sido algo ruim, para deixarem os dois morrerem dentro de uma gaiola de corvos. Algumas vezes, Egg era tão sábio quanto um meistre, mas outras vezes ainda era um garoto de dez anos. – Há senhores e senhores – Dunk comentou. – Alguns não precisam de muito motivo para mandar um homem à morte. A gaiola de ferro quase não era grande o bastante para caber um homem, mesmo assim os dois haviam sido enfiados lá dentro. Estavam rosto com rosto, com os braços e pernas entrelaçados e as costas contra as barras negras de ferro quente. Um tentara comer o outro, roendo o pescoço e o ombro. Os corvos comeram ambos. Quando Dunk e Egg deram a volta na colina, os pássaros se ergueram como uma nuvem negra, tão espessa que Meistre se assustou. – Quem quer que fossem, pareciam meio famintos – Dunk disse. Pele e ossos, e a pele está verde e podre. – Talvez tenham roubado um pouco de pão, ou caçado um cervo na floresta de algum senhor. – Com a seca entrando em seu segundo ano, a maior parte dos senhores se tornara menos tolerante com a caça ilegal, e nunca tinham sido muito tolerantes, para começar. – Pode ser que fossem um grupo de foras da lei. – Em Dosk, tinham ouvido um harpista cantar “O dia em que enforcaram o Robin Negro”. Desde então, Egg via galantes foras da lei atrás de cada arbusto. Dunk conhecera alguns foras da lei quando era escudeiro do velho. Não tinha pressa em conhecer nenhum outro. Nenhum dos que conhecera era especialmente galante. Lembrava-se de um fora da lei que Sor Arlan ajudara a enforcar, que gostava de roubar anéis. Ele cortava os dedos de um homem para consegui-los, mas, com mulheres, preferia morder. Não havia canções sobre ele, pelo menos não que Dunk conhecesse. Foras da lei ou larápios, não importa. Homens mortos são má companhia. Passou com Trovão lentamente ao redor da gaiola. Os olhos vazios pareciam segui-lo. Um dos mortos estava com a cabeça caída e a boca aberta. Não tem língua, Dunk observou. Supôs que os corvos a tinham comido. Corvos sempre bicavam os olhos do cadáver em primeiro lugar, ouvira dizer, mas talvez a língua viesse em seguida. Ou talvez um senhor a tivesse arrancado, por algo que ele disse. Dunk passou os dedos pelo tufo de cabelo raiado de sol. Não podia fazer nada pelos mortos, mas tinham barris de vinho para entregar em Pousoveloz. – Por onde viemos? – perguntou, olhando de um lado para o outro na estrada. – Estou dando a volta. – Pousoveloz é por ali, sor. – Egg apontou. – É por onde vamos, então. Podemos estar de volta ao cair da noite, mas não se ficarmos o dia todo aqui contando moscas. – Cutucou Trovão com os calcanhares e virou o grande cavalo de batalha para o lado esquerdo da bifurcação. Egg colocou o chapéu mole e deu um puxão na rédea de Meistre. A mula parou de pastar a erva-do-diabo e seguiu imediatamente, sem reclamar. Ela está com calor também, Dunk pensou, e esses barris de vinho devem estar pesados. O sol de verão tinha deixado a estrada tão dura quanto tijolo. Os sulcos eram profundos o bastante para quebrar a pata de um cavalo, então Dunk tinha o cuidado em manter Trovão na parte mais alta da estrada, entre os sulcos. Ele mesmo torcera o tornozelo no dia em que deixaram Dosk, andando no escuro da noite, quando era mais fresco. Um cavaleiro tinha que aprender a viver com machucados e dores, o velho costumava dizer. Sim, rapaz, e com ossos quebrados e cicatrizes. São tão parte de um cavaleiro quanto a espada e o escudo. Se Trovão quebrasse uma pata, no entanto... bem, um cavaleiro sem um cavalo não era um cavaleiro. Egg seguia cinco metros atrás dele, com Meistre e os barris de vinho. O garoto andava com um pé descalço no sulco e o outro fora, então ele se erguia e abaixava a cada passo. O punhal estava embainhado no quadril, suas botas, penduradas na trouxa que carregava nas costas e a túnica marrom esfarrapada, enrolada e amarrada na cintura. Embaixo do chapéu de palha de abas largas, seu rosto estava manchado e sujo, os olhos, largos e escuros. Tinha dez anos, e não chegava a um metro e meio de altura. Ultimamente tinha dado uma boa espichada, embora tivesse muito o que crescer antes de chegar perto de Dunk. Parecia exatamente com o cavalariço que ele não era, e nem um pouco com quem era de verdade. Os mortos logo desapareceram atrás deles, mas Dunk se pegou pensando neles do mesmo jeito. O reino estava cheio de foras da lei nesses dias. A seca não mostrava sinais de acabar, e os plebeus, aos milhares, iam para as estradas, procurando algum lugar onde a chuva ainda caísse. Lorde Corvo de Sangue ordenara que voltassem para suas próprias terras e seus senhores, mas poucos obedeceram. Muitos culpavam Corvo de Sangue e o Rei Aerys pela seca. Era um castigo dos deuses, diziam, pois o regicida é amaldiçoado. Se eram prudentes, no entanto, não diziam isso em voz alta. Quantos olhos o Lorde Corvo de Sangue tem?, dizia a charada que Egg ouvira em Vilavelha. Mil olhos e mais um. Há seis anos, em Porto Real, Dunk vira Corvo de Sangue com seus próprios olhos enquanto cavalgava em um cavalo claro pela Rua do Aço, com cinquenta Dentes de Corvo atrás dele. Isso foi antes que o Rei Aerys ascendesse ao Trono de Ferro e o tornasse sua Mão, mas mesmo na época ele era uma figura marcante, vestido em tons de fumaça e escarlate, com a Irmã Negra no quadril. A pele pálida e o cabelo branco como osso faziam com que parecesse um cadáver ambulante. Na bochecha e no queixo espalhava-se uma marca de nascença cor de vinho, que supostamente lembrava a forma de um corvo vermelho, embora Dunk só visse uma mancha de forma estranha na pele descolorida. Encarou-o tão fixamente que Corvo de Sangue sentiu. O feiticeiro do rei virou-se para observá-lo enquanto passava. Tinha um olho, e era vermelho. O outro era apenas uma órbita vazia, presente que Açoamargo lhe dera no Campo do Capim-Vermelho. Mesmo assim, para Dunk parecia que os dois olhos atravessavam sua pele, enxergando sua alma. Apesar do calor, a lembrança o fez estremecer. – Sor? – Egg o chamou. – Está passando mal? – Não – Dunk falou. – Estou com tanto calor e sede quanto eles. – Apontou para o campo ao lado da estrada, onde fileiras de melões murchavam nos pés. Ali perto, ervas daninhas e tufos de erva-do-diabo ainda estavam vivos, mas as plantações não estavam nem de longe se saindo tão bem. Dunk sabia exatamente como os melões se sentiam. Sor Arlan costumava dizer que nenhum cavaleiro andante jamais precisava sentir sede. “Não enquanto tiver seu elmo para pegar água da chuva. Água da chuva é a melhor bebida que há, rapaz.” O velho nunca vira um verão como aquele, no entanto. Dunk deixara seu elmo em Pousoveloz. Era muito quente e muito pesado para usar, e havia pouca chuva preciosa para guardar nele. O que um cavaleiro andante faz quando até as sebes estão marrons, secas e morrendo? Talvez quando chegassem ao riacho ele pudesse se molhar. Sorriu, pensando no quanto seria bom pular bem no meio do riacho e sair ensopado e sorridente, com água escorrendo pelo rosto e pelo cabelo embaraçado, e a túnica encharcada grudada na pele. Egg poderia querer um mergulho também, embora o garoto parecesse fresco e seco, mais empoeirado do que suado. Ele nunca suava muito. Gostava do calor. Em Dorne, andava de um lado para o outro de peito nu, e ficara bronzeado como um dornês. É o sangue de dragão dele, Dunk disse para si mesmo. Quem já ouviu falar de um dragão suado? Ele teria ficado feliz de tirar a própria túnica, mas isso não cairia bem. Um cavaleiro andante podia andar de peito nu se quisesse, não tinha ninguém para envergonhar além de si mesmo. Era diferente quando sua espada era juramentada. “Quando você aceita a comida e a bebida de um senhor, tudo o que faz reflete nele”, Sor Arlan costumava dizer. “Sempre faça mais do que ele espera de você, nunca menos. Nunca recue diante de qualquer tarefa ou dificuldade. E, acima de tudo, nunca envergonhe o senhor que você serve”. Em Pousoveloz, “comida e bebida” significavam frango e cerveja, mas Sor Eustace também comia a mesma comida simples. Dunk manteve a túnica no corpo, mesmo sufocado pelo calor. Sor Bennis do Escudo Marrom estava esperando na velha ponte de madeira. – Então você voltou – gritou. – Demorou tanto que pensei que tinha fugido com a prata do velho. – Bennis estava sentado em seu garrano felpudo, mastigando um punhado de folhamarga, que fazia sua boca parecer cheia de sangue. – Tivemos que ir até Dosk para encontrar algum vinho – Dunk lhe disse. – As lulas-gigantes pilharam a Pequena Dosk. Levaram as riquezas e as mulheres e queimaram metade do que deixaram. – Esse Dagon Greyjoy quer ser enforcado – Bennis comentou. – Sim, mas quem vai fazer isso? Viu o velho Pate Traseiro Apertado? – Disseram que estava morto. Os homens de ferro o mataram quando ele tentou impedi-los de levar sua filha. – Malditos sete infernos. – Bennis virou a cabeça e cuspiu. – Vi essa filha uma vez. Não valia morrer por ela, se me perguntasse. Aquele tolo do Pate me devia meia prata. – O cavaleiro marrom parecia exatamente igual a quando o deixaram; e, o que era pior, cheirava do mesmo jeito também. Usava a mesma roupa todo dia: calção marrom, uma túnica disforme de tecido grosso, botas de montar. Quando se armava, vestia um sobretudo solto marrom sobre uma camisa de cota de malha enferrujada. Seu cinto da espada era um cordão de couro fervido, e seu rosto enrugado parecia feito da mesma coisa. A cabeça dele parece um daqueles melões murchos pelos quais passamos. Até seus dentes eram marrons, embaixo das manchas deixadas pela folhamarga que ele gostava de mastigar. No meio de todo aquele marrom, os olhos dele se destacavam; eram verdes-claro, vesgos e pequenos, próximos um do outro, e brilhantes de malícia. – Só dois barris – observou. – Sor Inútil queria quatro. – Tivemos sorte de encontrar dois – Dunk respondeu. – A seca chegou à Árvore também. Ouvimos dizer que as uvas estão se transformando em passas nas videiras, e que os homens de ferro andam pirateando... – Sor? – Egg o interrompeu. – A água se foi. Dunk estivera tão concentrado em Bennis que não tinha notado. Sob as tábuas de madeira deformadas da ponte, só restavam areia e pedras. Isso é estranho. O riacho estava baixo quando partimos, mas ainda corria. Bennis deu uma gargalhada. Ele tinha dois tipos de gargalhada. Algumas vezes, cacarejava como uma galinha, e outras, zurrava mais alto do que a mula de Egg. Esta era a gargalhada da galinha. – Secou enquanto vocês se foram, acho. A seca fez isso. Dunk ficou consternado. Bem, não vou me molhar agora. Desceu até o leito do riacho. O que vai acontecer com as plantações? Metade dos poços da Campina tinham secado, e todos os rios estavam baixos, até mesmo o Torrente da Água Negra e o poderoso Vago. – Água é uma coisa desagradável – Bennis comentou. – Bebi uma vez e fiquei doente como um cão. Vinho é melhor. – Não para a aveia. Nem para a cevada. Nem para as cenouras, as cebolas, as couves. Até as uvas precisam de água. – Dunk balançou a cabeça. – Como pode ter secado tão rápido? Foram só seis dias. – Não tinha muita água aqui, para começar, Dunk. Houve um tempo em que eu podia mijar jatos maiores do que esse riacho. – Não é Dunk – Dunk o corrigiu. – Já lhe disse isso. – Ele se perguntava por que se incomodava. Bennis era bocudo e gostava de provocar os outros. – Sou chamado de Sor Duncan, o Alto. – Por quem? Pelo seu filhote careca? – Olhou para Egg e deu sua gargalhada de galinha. – Você está mais alto do que quando trabalhava em Centarbor, mas, para mim, ainda parece um Dunk do mesmo jeito. Dunk coçou a nuca e encarou as pedras. – O que temos que fazer? – Guardar os vinhos e contar ao Sor Inútil que o riacho secou. O poço de Pousoveloz ainda tem água, não vamos morrer de sede. – Não o chame de Inútil. – Dunk gostava do velho cavaleiro. – Você dorme embaixo do teto dele, tenha algum respeito por ele. – Você o respeita por nós dois, Dunk – Bennis brincou. – Vou chamá-lo do que quiser. As tábuas acinzentadas como prata rangeram pesadamente quando Dunk caminhou pela ponte e franziu o cenho para a areia e as pedras lá embaixo. Ele viu que algumas poucas poças de água marrom brilhavam entre as rochas, nenhuma maior do que sua mão. – Peixes mortos, ali e ali, vê? – O cheiro lhe recordou os homens mortos na encruzilhada. – Eu vejo, sor – Egg confirmou. Dunk saltou até o leito do riacho, se agachou sobre os calcanhares e virou uma pedra. Seca e quente em cima, úmida e enlameada embaixo. – A água não deve ter sumido há muito tempo. – Em pé, jogou a pedra na margem e ela se chocou em uma saliência, desfazendo-a em uma nuvem de terra seca. – O solo está rachado nas margens, mas macio e enlameado no meio. Aqueles peixes estavam vivos ontem. – Em Centarbor costumavam chamá-lo de Dunk, o pateta. Eu me lembro. – Sor Bennis cuspiu um chumaço de folhamarga nas rochas. O monte brilhou vermelho e gosmento à luz do sol. – Patetas não deviam tentar pensar, têm a cabeça lerda demais para isso. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo. Vindas de Sor Arlan, as palavras eram afetuosas. Ele fora um homem gentil, mesmo quando censurava. Na boca de Sor Bennis do Escudo Marrom, soavam diferentes. – Sor Arlan está morto há dois anos – Dunk lembrou. – E me chamam de Sor Duncan, o Alto. – Estava muito tentado a enfiar o punho no rosto do cavaleiro marrom e fazer em pedaços aqueles dentes vermelhos e podres. Bennis do Escudo Marrom podia ser um traste desagradável, mas Dunk era quase meio metro mais alto do que ele e uns vinte e cinco quilos mais pesado. Ele podia ser um pateta, mas era grande. Algumas vezes parecia que batia a cabeça em metade das portas de Westeros, sem mencionar em cada viga de cada estalagem de Dorne até o Gargalo. O irmão de Egg, Aemon, havia medido Dunk em Vilavelha e descobrira que faltavam dois centímetros para dois metros de altura, mas isso fora há seis meses. Ele podia ter crescido desde essa época. Crescer era uma coisa que Dunk fazia muito bem, o velho costumava dizer. Voltou para Trovão e montou novamente. – Egg, volte para Pousoveloz com o vinho. Vou ver o que aconteceu com a água. – Riachos secam o tempo todo – Bennis comentou. – Só quero dar uma olhada... – Como quando olhou embaixo daquela rocha? Não devia ficar virando rochas, pateta. Nunca se sabe o que vai sair rastejando debaixo. Temos bons colchões de palha em Pousoveloz. Há mais dias com ovos do que sem, e não há muito o que fazer além de ouvir Sor Inútil contar o quão bom ele era. Deixe para lá, estou dizendo. O riacho secou, é tudo. Dunk não era nada além de teimoso. – Sor Eustace está esperando o vinho – disse para Egg. – Diga para ele aonde fui. – Direi, sor. – Egg deu um puxão na rédea de Meistre. A mula retorceu as orelhas, mas começou a caminhar novamente. Ele quer se livrar daqueles barris no lombo. Dunk não podia culpá-lo. O riacho corria para norte e para leste, então Dunk virou Trovão para o sul e para o oeste. Não cavalgara nem dez metros quando Bennis o alcançou. – É melhor eu ir com você para garantir que não vai ser enforcado. – Colocou um punhado de folhamargas frescas na boca. – Depois daquele grupo de salgueiros, toda a margem direita é propriedade da aranha. – Ficarei na nossa margem. – Dunk não queria problemas com a Senhora de Fosso Gelado. Em Pousoveloz, ouviam-se coisas ruins sobre ela. Era chamada A Viúva Vermelha, por causa dos maridos que enterrara. O velho Sam Stoops dizia que ela era um bruxa, uma envenenadora e coisa pior. Há dois anos, ela mandara seus cavaleiros do outro lado do riacho para prender um homem de Osgrey por roubar uma ovelha. “Quando o senhor cavalgou até Fosso Gelado para exigir que ele fosse solto, lhe disseram para olhar no fundo do fosso”, Sam contara. “Ela costurara o pobre Dake em um saco de pedras e o afundara. Foi depois disso que Sor Eustace pegou Sor Bennis a seu serviço, para manter as aranhas fora de suas terras.” Trovão manteve um ritmo lento e constante sob o sol escaldante. O céu estava azul sólido, sem sinal de nuvens em parte alguma. O curso do riacho serpenteava em torno de montes rochosos e salgueiros desamparados, através de colinas marrons nuas e campos de cereais mortos ou moribundos. Uma hora riacho acima a partir da ponte e encontraram-se cavalgando nas margens de uma pequena floresta de Osgrey chamada Bosque de Wat. A vegetação parecia convidativa de longe e encheu a cabeça de Dunk com pensamentos de vales sombreados e córregos borbulhantes, mas quando alcançaram as árvores descobriram que estavam finas e ralas, com galhos caídos. Alguns dos grandes carvalhos estavam perdendo folhas, e metade dos pinheiros tinha ficado tão marrom quanto Sor Bennis, com anéis de folhas mortas circulando o tronco. Cada vez pior, Dunk pensou. Uma faísca e isso vai acender como pavio. Até o momento, no entanto, a vegetação rasteira emaranhada ao longo do Riacho Xadrez ainda estava viçosa, com trepadeiras espinhosas, urtigas, emaranhados de sarçabranca e jovens salgueiros. Em vez de se embrenharem naquilo, Dunk e Bennis atravessaram o leito seco até o lado de Fosso Gelado, onde as árvores tinham dado lugar ao pasto. Entre a relva manchada de marrom e as flores selvagens murchas, algumas ovelhas de cara preta pastavam. – Nunca vi um animal tão estúpido quanto uma ovelha – Sor Bennis comentou. – Será que são suas parentes, pateta? – Vendo que Dunk não respondeu, ele deu a gargalhada de galinha de novo. Três quilômetros mais ao sul, chegaram à barragem. Não era grande como essas coisas costumam ser, mas parecia forte. Duas barricadas de madeira robusta haviam sido erguidas através do riacho de margem a margem, feitas de troncos de árvores ainda com a casca. O espaço entre elas era preenchido com rochas e terra e compactado com firmeza. Atrás da barragem, o fluxo da água ultrapassara as margens e enchia uma trincheira que fora aberta nos campos da Senhora Webber. Dunk ficou em pé nos estribos para ter uma visão melhor. O reflexo do sol na água revelou uma série de canais menores, que corria em todas as direções, como uma teia de aranha. Estão roubando nosso riacho. A visão daquilo o encheu de indignação, especialmente quando se deu conta de que as árvores certamente tinham sido tiradas do Bosque de Wat. – Veja o que você fez, pateta – Bennis falou. – Não podia ter ficado com a história de que o riacho tinha secado? Não. Talvez isso comece com água, mas vai terminar com sangue. O seu e o meu, provavelmente. – O cavaleiro marrom desembainhou a espada. – Bem, não há o que fazer agora. Ali estão seus escavadores três vezes malditos. Melhor colocar um pouco de medo neles. – Acertou seu garrano com as esporas e galopou pela relva. Dunk não teve escolha senão segui-lo. A espada longa de Sor Arlan estava em seu quadril, um bom pedaço honesto de aço. Se esses escavadores tiverem um pouco de senso, vão fugir. Os cascos de Trovão levantavam nuvens de poeira. Um homem derrubou a pá assim que viu os cavaleiros chegando, mas foi tudo. Havia um grupo de escavadores, baixos e altos, velhos e jovens, todos morenos pelo sol. Formaram uma fileira irregular enquanto Bennis reduzia a velocidade, pegando as pás e picaretas deles. – Estas são terras do Fosso Gelado – um deles gritou. – E aquele é um riacho Osgrey – Bennis apontou com a espada longa. – Quem colocou aquela maldita barragem? – Meistre Cerrick que fez – disse um escavador mais jovem. – Não – um homem mais velho insistiu. – O filhote cinzento apontou para lá e disse para fazer, mas fomos nós que fizemos. – Então vocês podem muito bem desfazer. Os olhares dos escavadores eram carrancudos e desafiadores. Um deles secou o suor da testa com as costas da mão. Nenhum deles falou. – Vocês não escutaram direito. – Bennis disse. – Vou ter que cortar uma ou duas orelhas? Quem será o primeiro? – Estas são terras Webber. – O escavador mais velho era um indivíduo magricela, corcunda e teimoso. – Vocês não têm direito de estar aqui. Corte a orelha de alguém e a senhora vai afogá-lo em um saco. Bennis cavalgou para mais perto. – Não vejo senhora alguma aqui, só alguns camponeses bocudos. – Cutucou o peito nu moreno do escavador com a ponta da espada, com força suficiente só para tirar uma gota de sangue. Ele está indo longe demais. – Abaixe sua arma – Dunk avisou. – Isso não é culpa deles. O meistre lhes deu a tarefa. – É para as plantações, sor – um escavador com orelhas de abano explicou. – O trigo estava morrendo, o meistre disse. As pereiras também. – Bem, talvez as pereiras morram. Ou talvez você. – Sua conversa não nos assusta – disse o velho. – Não? – Bennis fez sua espada longa assobiar, abrindo o rosto do velho da orelha até a mandíbula. – Eu disse, as pereiras morrem, ou você. – O sangue do escavador escorreu vermelho pela lateral de seu rosto. Ele não devia ter feito isso. Dunk teve que engolir a raiva. Bennis estava do seu lado nisso. – Vão embora daqui – gritou para os escavadores. – Voltem para o castelo da sua senhora. – Corram – Sor Bennis instigou. Três deles largaram as ferramentas e fizeram isso, correndo pela relva. Mas outro homem, robusto e queimado de sol, levantou a picareta e disse: – São só dois deles. – Pá contra espada é uma luta de tolos, Jorgen – o velho disse, segurando o rosto. O sangue escorria através de seus dedos. – Isso não vai acabar assim. Não pensem que vai. – Mais uma palavra e eu acabo com você. – Não queríamos machucá-lo – Dunk disse para o velho com o rosto ensanguentado. – Tudo o que queremos é nossa água. Diga isso para sua senhora. – Ah, vamos dizer para ela, sor – o homem robusto prometeu, ainda segurando a picareta. – Faremos isso. Na volta para casa, passaram pelo meio do Bosque de Wat, gratos pela pequena quantidade de sombra proporcionada pelas árvores. Mesmo assim, assavam. Supostamente, era possível encontrar veados no bosque, mas as únicas coisas vivas que viram foram moscas. Elas zumbiam no rosto de Dunk enquanto ele cavalgava e pousavam nos olhos de Trovão, acabando por irritar o grande cavalo de guerra. O ar estava parado, sufocante. Pelo menos, em Dorne, os dias eram secos e as noites eram tão frias que eu tremia sob o manto. Na Campina, dificilmente as noites eram mais frescas do que os dias, mesmo mais para o norte. Quando se curvou para passar por baixo de um galho caído, Dunk pegou uma folha e a esmagou entre os dedos. Desfez-se em sua mão como um pergaminho de mil anos de idade. – Não precisava cortar aquele homem – disse a Bennis. – Uma cosquinha na bochecha, foi só isso, para ensiná-lo a controlar a língua. Eu devia ter cortado a maldita garganta dele, só que então o resto deles correria como coelhos, e teríamos que cavalgar atrás deles. – Você mataria vinte homens? – Dunk perguntou, incrédulo. – Vinte e dois. Eram dois homens a mais do que todos os seus dedos das mãos e dos pés, pateta. Você tem que matar todos eles, ou então vão sair contando histórias. – Deram a volta em um tronco caído. – Precisamos contar para Sor Inútil que a seca acabou com o riachinho dele. – Sor Eustace. Você estaria mentindo para ele. – Sim, e por que não? Quem vai dizer a ele o contrário? As moscas? – Bennis deu seu sorriso úmido e vermelho. – Sor Inútil nunca deixa a torre, exceto para ver os meninos nas amoreiras. – Uma espada juramentada deve a verdade ao seu senhor. – Há verdades e verdades, pateta. Algumas não são boas. – Cuspiu. – Os deuses fazem as secas. Um homem não pode fazer nada a respeito dos deuses. A Viúva Vermelha, no entanto... se contarmos ao Inútil que essa cadela pegou a água dele, ele vai se sentir no dever de retaliar. Espere e veja. Ele achará que tem que fazer alguma coisa. – Ele devia. Nossos plebeus precisam de água para as plantações. – Nossos plebeus? – Sor Bennis deu sua gargalhada zurrada. – Eu estava cagando quando Sor Inútil o nomeou seu herdeiro? Quantos plebeus descobriu que tem? Dez? E isso contando o filho imbecil de Jeyne Vesga, que não sabe em qual ponta do machado tem que segurar. Arme cada um deles cavaleiro e teremos metade dos cavaleiros da Viúva, sem contar os escudeiros, arqueiros e o resto. Você precisaria das mãos e dos pés para contar todos eles, e dos dedos das mãos e dos pés do seu garoto careca também. – Não preciso de dedos para contar. – Dunk estava enjoado por causa do calor, das moscas e da companhia do cavaleiro marrom. Ele cavalgou com Sor Arlan uma vez, mas foi há muitos e muitos anos. O homem está cada vez mais mesquinho, falso e covarde. Apertou os calcanhares no cavalo e trotou adiante, para deixar o cheiro do outro para trás. Pousoveloz era chamado de castelo apenas por cortesia. Embora estivesse bravamente no alto de uma colina rochosa e pudesse ser visto a quilômetros de distância, não era mais do que uma casa-torre. Um desabamento parcial havia alguns séculos tinha exigido uma certa reconstrução, então as faces norte e oeste eram de pedra cinza-clara na parte de cima das janelas e pedra negra antiga na parte de baixo. Torreões haviam sido acrescentados no teto durante o reparo, mas só nos lados que foram refeitos; nos outros dois cantos amontoavam-se antigas pedras grotescas, tão desgastadas pelo vento e pelo clima que era difícil dizer o que haviam sido. O telhado de madeira de pinho era plano, mas muito deformado e propenso a vazamentos. Um caminho torto levava do pé da colina até a torre, tão estreito que só podia ser percorrido em fila simples. Dunk começou a subir, com Bennis logo atrás. Podia ver Egg acima deles, parado sobre uma saliência de rocha, com seu chapéu de palha mole. Pararam os cavalos na frente do pequeno estábulo de pau a pique aninhado ao pé da torre, meio escondido sob um amontoado disforme de musgo púrpura. O castrado cinzento do velho estava em uma das baias, perto de Meistre. Aparentemente, Egg e Sam Stoops estavam tomando vinho lá dentro. Galinhas vagavam pelo pátio. Egg foi até Dunk. – Descobriram o que aconteceu com o riacho? – A Viúva Vermelha o represou. – Dunk desmontou e deu as rédeas de Trovão para Egg. – Não deixe que ele beba muita água de uma vez. – Não, sor. Não deixo. – Garoto – Sor Bennis chamou. – Pode levar meu cavalo também. Egg lhe deu um olhar insolente. – Não sou seu escudeiro. Essa língua dele vai machucá-lo algum dia, Dunk pensou. – Você vai levar o cavalo dele ou lhe darei um tapão na orelha. Egg fez uma cara mal-humorada, mas fez o que lhe mandaram. Quando ele estendeu a mão para pegar as rédeas, no entanto, Sor Bennis escarrou e cuspiu. Uma bola de catarro vermelho brilhante acertou o garoto entre dois dedos do pé. Ele deu um olhar gelado para o cavaleiro marrom. – Você cuspiu no meu pé, sor. Bennis saltou no chão. – Sim. Da próxima vez, vou cuspir na sua cara. Não quero mais saber da sua maldita língua. Dunk pôde ver a raiva nos olhos do garoto. – Cuide dos cavalos, Egg – disse, antes que as coisas ficassem piores. – Precisamos falar com Sor Eustace. A única entrada para Pousoveloz era uma porta de ferro e carvalho seis metros acima deles. Os degraus de baixo eram blocos de pedra negra polida, tão desgastados que tinham um sulco no meio. Mais acima, davam lugar a uma escada de madeira íngreme que podia ser recolhida como uma ponte levadiça em caso de problemas. Dunk chutou as galinhas de lado e subiu dois degraus por vez. Pousoveloz era maior do que parecia. Suas abóbadas e porões profundos ocupavam boa parte da colina na qual o castelo se encarapitava. Acima do solo, a torre ostentava quatro andares. Os dois de cima tinham janelas e sacadas, os dois de baixo, apenas duas seteiras. Estava mais fresco lá dentro, mas tão escuro que Dunk teve que esperar até sua vista se ajustar. A esposa de Sam Stoops estava de joelhos ao lado da lareira, varrendo as cinzas. – Sor Eustace está lá em cima ou embaixo? – Dunk perguntou para ela. – Lá em cima, sor. – A velha mulher era tão encurvada que sua cabeça era mais baixa do que seus ombros. – Ele acaba de voltar de uma visita aos meninos, nas amoreiras. Os meninos eram os filhos de Eustace Osgrey: Edwyn, Harrold e Addam. Edwyn e Harrold eram cavaleiros, e Addam, um jovem escudeiro. Haviam morrido no Campo do CapimVermelho fazia quinze anos, no final da Rebelião Blackfyre. “Tiveram boas mortes, lutando bravamente pelo rei”, Sor Eustace contara a Dunk. “E eu os trouxe para casa e os enterrei entre as amoreiras.” A esposa dele estava enterrada ali também. Sempre que o velho abria um novo barril de vinho, ele descia a colina para oferecer a cada um de seus meninos uma bebida. “Ao rei!”, ele dizia em voz alta, e só então bebia. Os aposentos de Sor Eustace ocupavam o quarto andar da torre, com um solário logo abaixo. Era lá que ele seria encontrado, Dunk sabia, arrumando seus baús e barris. As grossas paredes cinzentas do solário eram enfeitadas com armamentos enferrujados e estandartes capturados, prêmios de batalhas lutadas há séculos e agora lembradas por mais ninguém além de Sor Eustace. Metade dos estandartes estava mofada, e todos estavam bem desbotados e cobertos de poeira, as cores anteriormente vivas transformadas em cinza e verde. Quando Dunk subiu a escada, Sor Eustace estava tirando a poeira de um escudo destruído com um pano. Bennis vinha logo atrás dele. Os olhos do velho cavaleiro pareceram se iluminar um pouco ao ver Dunk. – Meu bom gigante – declarou – e corajoso Sor Bennis. Venham dar uma olhada nisso. Encontrei no fundo daquela arca. Um tesouro, embora terrivelmente negligenciado. Era um escudo, ou o que restara dele. Era bem pouco. Quase metade dele havia sido arrancada, e o resto estava cinzento e estilhaçado. O aro de ferro era uma ferrugem sólida, e a madeira estava cheia de buracos de vermes. Alguns pedaços de tinta ainda se penduravam nele, mas muito pouco para sugerir um brasão de armas. – Senhor – disse Dunk. Os Osgrey não eram senhores havia séculos, mesmo assim Sor Eustace gostava de ser chamado assim, como um eco das glórias passadas de sua Casa. – O que é isso? – O escudo do Pequeno Leão. – O velho esfregou o aro de ferro e alguns pedaços de ferrugem caíram. – Sor Wilbert Osgrey usava isso em batalha quando morreu. Tenho certeza de que conhecem a história. – Não, senhor – Bennis falou. – Acontece que não conhecemos. O Pequeno Leão, você disse? Era algum anão ou algo do tipo? – Certamente não. – O bigode do velho cavaleiro estremeceu. – Sor Wilbert era um homem alto e poderoso, e um grande cavaleiro. O apelido lhe foi dado na infância, já que era o mais jovem de cinco irmãos. Naquela época, ainda havia sete reis nos Sete Reinos, e Jardim de Cima e o Rochedo estavam frequentemente em guerra. Os reis verdes nos governavam então, os Gardener. Eram do sangue do velho Garth Greenhand, e uma mão verde sobre um fundo branco era o estandarte real. Gyles, o Terceiro, levou seu estandarte para leste, em guerra contra o Rei da Tempestade, e todos os irmãos de Wilbert foram com ele, pois naqueles dias o leão xadrez sempre ficava ao lado da mão verde quando o Rei da Campina ia para a batalha. Mesmo assim, aconteceu que, enquanto o Rei Gyles estava fora, o Rei do Rochedo viu sua chance de dar uma abocanhada na Campina, então reuniu um grupo de homens do oeste e veio sobre nós. Os Osgrey eram os Marechais da Fronteira Norte, então coube ao Pequeno Leão ir ao encontro deles. Era o quarto Rei Lancel quem liderava os Lannister, me parece, ou talvez o quinto. Sor Wilbert bloqueou o caminho do rei Lancel, e ordenou que parasse. “Não se aproxime mais”, ele disse. “Você não é bem-vindo aqui. Eu o proíbo de colocar os pés na Campina.” Mas o Lannister mandou que todos os seus vassalos avançassem. Lutaram durante meio dia, o leão dourado e o xadrez. O Lannister estava armado com uma espada valiriana para a qual nenhum aço normal era páreo, então o Pequeno Leão sofreu muita pressão, seu escudo foi feito em pedaços. No fim, sangrando em uma dúzia de ferimentos graves, com a própria espada quebrada na mão, ele se atirou de cabeça contra seu adversário. O Rei Lancel o cortou quase ao meio, os cantores dizem, mas, enquanto morria, o Pequeno Leão encontrou uma abertura na armadura do rei, embaixo do braço, e enfiou seu punhal. Quando o rei deles morreu, os homens do oeste deram meia-volta, e a Campina estava salva. – O velho acariciou o escudo tão ternamente, como se fosse uma criança. – Sim, senhor – Bennis resmungou –, podíamos usar um homem como esse hoje. Dunk e eu demos uma olhada no seu riacho, senhor. Seco como osso, e não pela seca. O velho deixou o escudo de lado. – Contem-me. Sentou-se e indicou aos dois cavaleiros que fizessem o mesmo. Enquanto o cavaleiro marrom se lançava na história, ele ouvia intensamente, com o queixo erguido e os ombros para trás, ereto como uma lança. Na juventude, Sor Eustace Osgrey devia ter sido praticamente uma pintura do cavalheirismo, alto, grande e bonito. O tempo e o pesar haviam feito seu trabalho nele, mas ele continuava um homem ereto, com ossos grandes, ombros largos, peito amplo e feições fortes e afiadas como uma velha águia. Seu cabelo curto era tão branco quanto leite, mas o bigode grosso que lhe escondia a boca permanecia cinzento. Suas sobrancelhas eram da mesma cor, e os olhos, um tom mais claro de cinza, e cheios de tristeza. E pareceram ficar ainda mais tristes quando Bennis citou a barragem. – Aquele riacho é conhecido como Riacho Xadrez há mil anos ou mais – o velho cavaleiro disse. – Eu pescava lá quando era menino, e todos os meus filhos fizeram o mesmo. Alysanne gostava de mergulhar nas águas rasas em dias quentes de verão como este. – Alysanne era a filha dele, que morrera na primavera. – Foi nas margens do Riacho Xadrez que beijei uma garota pela primeira vez. Uma prima, a filha mais nova do meu tio, dos Osgrey do Lago Frondoso. Todos se foram agora, até ela. – O bigode dele estremeceu. – Isso não pode ser tolerado, sores. A mulher não ficará com minha água. Ela não terá o meu riacho xadrez. – A construção da barragem é reforçada, senhor – Sor Bennis avisou. – Forte demais para Sor Duncan e eu derrubarmos em uma hora, mesmo com o garoto careca para ajudar. Precisaremos de cordas, picaretas e machados, e uma dúzia de homens. E isso só para o trabalho, não para a luta. Sor Eustace encarou o escudo do Pequeno Leão. Dunk pigarreou. – Senhor, quanto a isso, quando deparamos com os escavadores, bem... – Dunk, não perturbe o senhor com ninharias – Bennis o interrompeu. – Ensinei uma lição para um tolo, isso foi tudo. Sor Eustace olhou para cima bruscamente. – Que tipo de lição? – Com minha espada, por assim dizer. Um pouco de sangue no rosto dele, foi tudo, senhor. O velho cavaleiro olhou demoradamente para ele. – Isso... isso foi mal pensado, sor. A mulher tem coração de aranha. Matou três maridos. E todos os irmãos dela morreram ainda nos panos. Eram cinco. Ou seis, talvez, não lembro. Estavam entre ela e o castelo. Ela arrancaria a pele de qualquer camponês que lhe desagradasse, não duvido, mas como você cortou um deles... não, ela não vai suportar tal insulto. Não se engane. Ela virá atrás de você, como veio atrás de Lem. – Dake, senhor. – Sor Bennis falou. – Peço seu nobre perdão, você o conhecia e eu não, mas o nome dele era Dake. – Se for do seu agrado, senhor, posso ir a Bosquedouro e contar a Lorde Rowan sobre essa barragem – Dunk sugeriu. Rowan era o suserano do velho cavaleiro. A Viúva Vermelha devia vassalagem a ele também. – Rowan? Não, não procure ajuda ali. A irmã de Lorde Rowan se casou com Wendell, primo de Lorde Wyman, então ele é parente da Viúva Vermelha. Além disso, ele não gosta de mim. Sor Duncan, pela manhã você deve fazer a ronda em todos os meus vilarejos e arrancar todo homem fisicamente capaz e em idade de lutar. Sou velho, mas não estou morto. A mulher logo vai descobrir que o leão xadrez ainda tem garras! Duas, Dunk pensou sombriamente, e eu sou uma delas. As terras de Sor Eustace tinham três vilarejos pequenos, não mais do que um punhado de casebres, currais e porcos. O maior ostentava um septo de um cômodo e telhado de palha, com imagens imperfeitas dos Sete rabiscadas nas paredes com carvão. Mudge, um velho guardador de porcos corcunda que já estivera em Vilavelha, liderava as devoções ali todo sétimo dia. Duas vezes por ano, um septão de verdade vinha perdoar os pecados em nome da Mãe. Os plebeus ficavam felizes pelo perdão, mas ao mesmo tempo odiavam as visitas do septão, uma vez que tinham a obrigação de alimentá-lo. Não pareciam mais satisfeitos com a visão de Dunk e Egg. Dunk era conhecido nos vilarejos, mesmo que apenas como novo cavaleiro de Sor Eustace, mas nem um copo de água lhe foi oferecido. A maior parte dos homens estava nos campos, então foram, em grande parte, mulheres e crianças que se arrastaram para fora dos casebres com a chegada dele, juntamente com alguns avôs fracos demais para o trabalho. Egg carregava o estandarte dos Osgrey, o leão quadriculado em verde e dourado, galopando sobre um fundo branco. – Viemos de Pousoveloz com uma convocação de Sor Eustace – Dunk disse para o povo do vilarejo. – Todo homem fisicamente capaz, com idade entre quinze e cinquenta anos, deve se reunir na torre pela manhã. – É guerra? – perguntou uma mulher magra, com duas crianças escondidas atrás de sua saia e um bebê sugando seu seio. – O dragão negro voltou? – Não há dragão nisso, negro ou vermelho – Dunk respondeu. – Isso é entre o leão xadrez e as aranhas. A Viúva Vermelha está pegando nossa água. A mulher assentiu, mas pareceu desconfiada quando Egg tirou o chapéu para abanar o rosto. – O garoto não tem cabelo. Está doente? – Está raspado – Egg falou. Colocou o chapéu novamente, virou a cabeça de Meistre e se afastou lentamente. O garoto está irritadiço hoje. Mal dissera uma palavra desde que saíram. Dunk deu um toque com a espora em Trovão e logo alcançou a mula. – Está zangado porque não tomei seu partido contra Sor Bennis ontem? – perguntou para o escudeiro mal-humorado enquanto seguiam para o próximo vilarejo. – Não gosto do homem mais do que você, mas ele é um cavaleiro. Devia falar com ele com cortesia. – Sou seu escudeiro, não dele – o garoto disse. – Ele é sujo e bocudo, e me dá beliscões. Se ele tivesse a mínima ideia de quem você é, estaria se mijando antes de lhe encostar um dedo. – Ele costumava me beliscar também – Dunk tinha esquecido disso, até que as palavras de Egg lhe trouxeram a lembrança. Sor Bennis e Sor Arlan estiveram no grupo de cavaleiros contratado por um comerciante dornês para escoltá-lo em segurança de Lannisporto ao Passo do Príncipe. Naquela época, Dunk não era mais velho do que Egg, embora fosse mais alto. Ele me beliscava com tanta força embaixo do braço que deixava marcas. Os dedos dele eram como pinças de ferro, mas nunca contei a Sor Arlan. Um dos outros cavaleiros desaparecera perto do Septo de Pedra, e havia o boato de que Bennis o estripara em uma briga. – Se ele beliscar você de novo, conte-me que eu acabo com isso. Até lá, não custa cuidar do cavalo dele. – Alguém tem que fazer isso – Egg concordou. – Bennis nunca o escova. Nunca limpa a baia dele. Nem mesmo deu um nome para ele! – Alguns cavaleiros nunca dão nomes para seus cavalos – Dunk contou. – Desse jeito, quando os animais morrem em batalha, o pesar não é tão difícil de suportar. Sempre há mais cavalos por aí, mas é difícil perder um amigo fiel. – Pelo menos era o que o velho dizia, mas nunca seguiu seu próprio conselho. Ele dava nome para cada cavalo que tinha. O mesmo fazia Dunk. – Vamos ver quantos homens aparecerão na torre... mas sejam cinco ou cinquenta, terá que fazer isso para eles também. Egg pareceu indignado. – Terei que servir plebeus? – Não servir. Ajudar. Precisamos transformá-los em lutadores. – Se a Viúva nos der tempo suficiente. – Se os deuses forem bons, alguns terão servido como soldados antes, mas a maioria será tão verde quanto a relva de verão, mais acostumados a segurar enxadas do que lanças. Mesmo assim, pode chegar o dia em que nossas vidas dependam deles. Quantos anos você tinha quando segurou uma espada pela primeira vez? – Eu era pequeno, sor. A espada era feita de madeira. – Meninos do povo lutam com espadas de madeira também, só que as deles são paus e galhos quebrados. Egg, esses homens podem parecer tolos para você. Eles não vão saber os nomes corretos para as partes da armadura, ou os brasões das Grandes Casas, ou que rei aboliu o direito do senhor à primeira noite... mas trate-os com respeito do mesmo jeito. Você é um escudeiro de sangue nobre, mas ainda é um garoto. A maior parte deles será de homens adultos. Um homem tem seu orgulho, não importa o quão baixo seja seu nascimento. Você pareceria perdido e estúpido da mesma maneira nos vilarejos deles. Se duvida disso, vá arar uma terra ou tosquiar uma ovelha e me diga os nomes de todas as ervas daninhas e flores silvestres do Bosque de Wat. O menino pensou naquilo por um momento. – Eu podia ensinar os brasões de armas das Grandes Casas para eles, e como a Rainha Alysanne convenceu o Rei Jaehaerys a abolir a primeira noite. E eles podiam me ensinar quais sementes são melhores para fazer venenos e quais dessas frutinhas vermelhas são seguras para se comer. – Eles podiam – Dunk concordou –, mas antes de chegar ao Rei Jaehaerys, é melhor ensinar a eles como usar uma lança. E não coma nada que Meistre não comeria. No dia seguinte, uma dúzia de pretensos guerreiros percorreu o caminho até Pousoveloz para se reunir entre as galinhas. Um era velho demais, dois eram jovens demais e um garoto magrelo acabou se revelando uma garota magrela. Esses, Dunk mandou de volta para os vilarejos, restando oito: três Wat, dois Will, um Lem, um Pate e Grande Rob, o simplório. Um grupo lamentável, não pôde deixar de pensar. Os fortes e belos garotos camponeses que nas canções conquistavam os corações das donzelas bem-nascidas não eram vistos em parte alguma. Era um homem mais sujo que o outro. Lem tinha uns cinquenta anos, se é que tinha um dia do seu nome, e Pate tinha olhos chorosos; os dois eram os únicos que tinham estado em batalha antes. Ambos foram com Sor Eustace e seus filhos lutar na Rebelião Blackfyre. Os outros seis eram tão verdes quanto Dunk temia. Os oito tinham piolhos. Dois dos Wat eram irmãos. – Acho que a mãe de vocês não sabia outro nome – Bennis disse, gargalhando. Quanto às armas, trouxeram uma foice, três enxadas, uma faca velha e algumas clavas de madeira resistente. Lem tinha um bastão afiado que podia servir como lança, e um dos Will confessou que era bom em arremessar pedras. – Muito bem – Bennis falou –, conseguimos um maldito trabuco. Depois disso, o homem ficou conhecido como Buco. – Algum de vocês é habilidoso com um arco? – Dunk perguntou. Os homens ficaram remexendo a terra com os pés, enquanto galinhas ciscavam no chão ao redor deles. Pate dos olhos chorosos finalmente respondeu. – Perdão, sor, mas o senhor não nos permite ter arcos. Os veados Osgrey são para os leões xadrezes, não para tipos como nós. – Vamos ter espadas, elmos e cotas de malha? – o mais jovem dos três Wat quis saber. – Ora, claro que vão – Bennis falou. – Assim que matarem um dos cavaleiros da Viúva e saquearem o cadáver dele. Assegurem-se de enfiar o braço na traseira do cavalo também: é onde vão encontrar a prata. – Ele beliscou o jovem Wat embaixo do braço até o rapaz gritar de dor, então levou todo o grupo ao Bosque de Wat para cortarem algumas lanças. Quando voltaram, tinham oito lanças endurecidas no fogo de comprimentos totalmente desiguais e escudos rústicos de ramos entrelaçados. Sor Bennis fez uma lança para si também e mostrou a eles como empurrar com a ponta e usar o eixo para desviar... e onde colocar a ponta para matar. – A barriga e a garganta são melhores, eu acho. – Bateu com o punho contra o peito. – Bem aqui está o coração, onde se pode fazer o trabalho também. O problema é que as costelas estão no caminho. A barriga é boa e macia. Estripar é lento, mas certeiro. Nunca conheci um homem que viveu quando suas entranhas caíram. Agora, se algum tolo der as costas para vocês, coloquem a ponta entre as omoplatas ou nos rins. Bem aqui. Não vai viver muito tempo depois que vocês o furarem nos rins. Ter três Wat na companhia causou confusão quando Bennis tentou dizer a eles o que fazer. – Devíamos dar a eles os nomes dos vilarejos, sor – Egg sugeriu. – Como Sor Arlan de Centarbor, seu antigo mestre. – Aquilo teria funcionado, mas os vilarejos tampouco tinham nome. – Bem – Egg falou –, podíamos chamá-los de acordo com suas plantações, sor. – Um dos vilarejos ficava entre campos de feijão; um plantava, em grande parte, cevada, e o terceiro cultivava repolhos, cenouras, cebolas, nabos e melões. Ninguém queria ser um Repolho ou um Nabo, então o último grupo se tornou Melões. Acabaram com quatro Cevadas, dois Melões e dois Feijões. Como os dois irmãos Wat eram Cevadas, era necessária mais uma distinção. Quando o irmão mais novo mencionou que certa vez caiu no poço do vilarejo, Bennis o apelidou de “Wat Molhado”, e ficou assim. Os homens estavam emocionados por terem recebido “nomes de senhor”, exceto Grande Rob, que parecia não se lembrar se era um Feijão ou uma Cevada. Assim que todos receberam nomes e lanças, Sor Eustace saiu de Pousoveloz para se dirigir a eles. O velho cavaleiro ficou parado do lado de fora da porta da torre, vestindo cota de malha e armadura de placas sob um sobretudo longo de lã, que o tempo deixara mais amarelo do que branco. Na parte da frente e na de trás, ostentava um leão xadrez, costurado em pequenos retângulos verdes e dourados. – Rapazes – ele disse –, todos vocês se lembram de Dake. A Viúva Vermelha o enfiou em um saco e o afogou. Ela roubou a vida dele e agora acha que pode roubar nossa água também, o Riacho Xadrez que alimenta nossas plantações... mas ela não fará isso! – Levantou a espada acima da cabeça. – Por Osgrey! – Disse, fazendo eco. – Por Pousoveloz! – Osgrey! – Dunk repetiu. Egg e os recrutas acompanharam os gritos – Osgrey! Osgrey! Por Pousoveloz! Dunk e Bennis conduziram a pequena companhia entre os porcos e as galinhas, enquanto Sor Eustace os observava da sacada acima. Sam Stoops enchera alguns sacos velhos com palha suja. Aqueles se tornaram os seus inimigos. Os recrutas começaram a praticar com a lança, enquanto Bennis gritava com eles. – Enfie, gire e arranque. Enfie, gire e arranque, mas arranque a maldita coisa! Você vai querer sair deste logo e ir para o próximo. Lento demais, Buco, lento demais. Se não consegue ir mais rápido, volte a jogar pedras. Lem, use seu peso para forçar o golpe. Muito bem. E empurra e puxa, empurra e puxa, empurra e puxa. Foda os malditos com isso, é assim que se faz, empurra e puxa, arranca, arranca, arranca. Quando os sacos foram feitos em pedaços por quinhentos ataques de lanças e toda a palha se espalhou pelo chão, Dunk vestiu sua cota de malha e armadura de placas e pegou uma espada de madeira para ver como os homens se saíam contra um inimigo mais vivo. Não muito bem, foi a resposta. Só Buco foi rápido o bastante para fazer uma lança passar pelo escudo de Dunk, e só conseguiu fazer isso uma vez. Dunk se livrou de um ataque desajeitado após o outro, empurrou as lanças deles de lado e quase os acertou. Se a espada dele fosse de aço em vez de pinho, ele teria matado cada um deles meia dúzia de vezes. – Você está morto assim que eu passar por este ponto – ele os avisou, batendo em seus braços e pernas para mostrar o que queria dizer. Buco, Lem e Wat Molhado logo aprenderam a ceder terreno, pelo menos. Grande Rob largou sua lança e correu, e Bennis teve que correr atrás dele e arrastá-lo de volta em lágrimas. O fim da tarde deixou todos machucados e surrados, com bolhas frescas erguendo-se nas mãos calejadas onde seguraram as lanças. Dunk não tinha marcas, mas estava meio afogado em suor quando Egg o ajudou a tirar a armadura. Quando o sol começou a se pôr, Dunk levou a pequena companhia até o celeiro e obrigou todos eles a tomarem banho, até mesmo aqueles que já tinham se banhado no último inverno. Depois disso, a esposa de Sam Stoops trouxe tigelas de ensopado para todos, engrossado com cenouras, cebolas e cevada. Os homens estavam cansados até os ossos, mas, ao ouvi-los falar, cada um logo seria duas vezes mais mortal do que um cavaleiro da Guarda Real. Mal podiam esperar para provar seu valor. Sor Bennis os encorajou, contando as alegrias da vida de soldado; saques e mulheres, principalmente. Os dois veteranos concordaram com ele. Lem trouxera uma faca e um belo par de botas da Rebelião Blackfyre, ouviram-no contar; as botas eram pequenas demais para que pudesse calçá-las, mas estavam penduradas em sua parede. E Pate não sabia dizer ao certo quantas seguidoras de acampamento conhecera ao seguir o dragão. Sam Stoops arrumara oito pilhas de palha no porão, então, assim que ficaram com a barriga cheia, foram todos dormir. Bennis demorou um pouco mais, tempo suficiente para dar a Dunk um olhar de desgosto. – Sor Inútil devia ter fodido mais algumas putas camponesas enquanto ainda tinha um pouco de seiva naquelas bolas velhas – comentou. – Se tivesse semeado uma bela colheita de meninos bastardos naquela época, talvez tivéssemos alguns soldados agora. – Eles não parecem piores que qualquer outra leva camponesa – Dunk marchara com alguns na época em que era escudeiro de Sor Arlan. – Sim – Sor Bennis disse. – Em uma quinzena, poderiam estar prontos para enfrentar outro grupo de camponeses. Mas cavaleiros? – Negou com a cabeça e cuspiu. O poço de Pousoveloz era no porão, em um câmara úmida, com paredes de pedra e terra. Era lá que a esposa de Sam Stoops molhava, esfregava e batia as roupas antes de levá-las ao telhado para secar. A grande banheira de pedra era usada para banhos também. Tomar banho exigia que se tirasse água do poço balde por balde, aquecendo-a sobre a lareira em uma grande caldeira de ferro, e então começar todo o processo novamente. Eram necessários quatro baldes para encher a caldeira, e três caldeiras para encher a banheira. Quando a última caldeira estava quente, a água da primeira tinha esfriado até ficar morna. Sor Bennis costumava dizer que a coisa toda era muito incômoda, e era por isso que ele convivia com os piolhos e moscas e cheirava a queijo podre. Dunk pelo menos tinha Egg para ajudá-lo quando sentia a extrema necessidade de um bom banho, como aconteceu naquela noite. O menino tirou a água em um silêncio sombrio e quase não falou enquanto ela aquecia. – Egg? – Dunk perguntou, quando a última caldeira começava a borbulhar. – Há algo errado? – Como Egg não respondeu, ele disse: – Ajude-me com a caldeira. Juntos lutaram para levá-la da lareira até a banheira, tomando cuidado para não se molharem. – Sor – o garoto disse –, o que acha que Sor Eustace pretende fazer? – Destruir a barragem e lutar contra os homens da Viúva se tentarem nos deter. – Ele falou alto, para poder ser ouvido mesmo com o barulho da água na banheira. O vapor subiu em uma cortina branca enquanto despejavam a água, trazendo um rubor ao seu rosto. – Os escudos deles são de madeira entrelaçada, sor. Uma lança pode passar por eles, ou um dardo de besta. – Podemos encontrar algumas partes de armaduras para eles, quando estiverem prontos. – Era o melhor que podiam esperar. – Eles podem ser mortos, sor. Wat Molhado ainda é um menino. Will Cevada vai se casar na próxima vez que o septão vier. E Grande Rob nem mesmo sabe diferenciar o pé esquerdo do direito. Dunk deixou a caldeira vazia cair no chão de terra batida. – Roger de Centarbor era mais jovem do que Wat Molhado quando morreu no Campo do Capim-Vermelho. Havia homens nas tropas de seu pai que tinham acabado de se casar também e outros homens que nunca haviam beijado uma garota. Havia centenas que não diferenciavam o pé esquerdo do direito. Talvez milhares. – Aquilo era diferente – Egg insistiu. – Aquilo era guerra. – Isso também. A mesma coisa, só que menor. – Menor e mais estúpida, sor. – Isso não é você nem sou eu quem vai dizer – Dunk respondeu. – É dever de todos eles ir para a guerra quando Sor Eustace os convoca... e morrer, se necessário. – Então não devíamos ter dado nomes para eles, sor. Isso só vai tornar a dor mais difícil para nós quando morrerem. – Ele fez uma careta. – Se usássemos minha bota... – Não. – Dunk ficou parado em um pé para tirar a bota do outro. – Sim, mas meu pai... – Não. – A segunda bota teve o mesmo destino da primeira. – Nós... – Não. – Dunk tirou a túnica manchada de suor pela cabeça e a jogou para Egg. – Peça para a esposa de Sam Stoops lavar isso para mim. – Eu vou, sor, mas... – Não, já disse. Precisa de um tapão na orelha para ajudá-lo a ouvir melhor? – Ele desamarrou o calção. Embaixo, era só ele; estava quente demais para roupas íntimas. – É bom que esteja preocupado com Wat, Wat, Wat e o resto deles, mas a bota é só para um caso de extrema necessidade. – Quantos olhos Lorde Corvo de Sangue tem? Mil olhos e mais um. – O que seu pai lhe disse quando mandou que fosse meu escudeiro? – Para manter o cabelo raspado ou tingido e não contar a ninguém meu verdadeiro nome – o garoto respondeu, com óbvia relutância. Egg servia Dunk havia um ano e meio, embora às vezes parecesse vinte. Haviam escalado o Passo do Príncipe juntos e cruzado as areias profundas de Dorne, vermelhas e brancas. Um veleiro os levara de Sangueverde à Vila Tabueira, onde compraram passagem para Vilavelha na galé Senhora Branca. Tinham dormido em estábulos, estalagens e valas, dividido o pão com irmãos santos, putas e pantomimeiros, e seguido uma centena de espetáculos de títeres. Egg mantinha o cavalo de Dunk bem cuidado, sua espada longa afiada, sua cota de malha livre de ferrugem. Era tão boa companhia quanto qualquer homem poderia desejar, e o cavaleiro andante começara a pensar nele quase como em um irmão menor. Ele não é, no entanto. Esse ovo nascera de dragões, não de galinhas. Egg podia ser o escudeiro de um cavaleiro andante, mas Aegon da Casa Targaryen era o quarto e mais jovem filho de Maekar, Príncipe de Solarestival, quarto filho do falecido Rei Daeron, o Bom, o Segundo de Seu Nome, que se sentara no Trono de Ferro por vinte e cinco anos, até que a Grande Praga da Primavera o levou. – No que diz respeito à maioria das pessoas, Aegon Targaryen voltou para Solarestival com o irmão, Daeron, depois do torneio em Campina de Vaufreixo – Dunk lembrou ao garoto. – Seu pai não quer que saibam que você está vagando pelos Sete Reinos com um cavaleiro andante. Então, não quero mais ouvir falar na sua bota. Um olhar foi toda a resposta que conseguiu. Egg tinha olhos grandes e, de algum modo, a cabeça raspada os fazia parecer ainda maiores. Na penumbra do porão iluminado por lamparinas, pareciam negros, mas em uma luz melhor a cor verdadeira podia ser vista: profundos, escuros e púrpura. Olhos valirianos, Dunk pensou. Em Westeros, poucos além do sangue do dragão tinham olhos daquela cor, ou cabelos que brilhavam como ouro polido com tiras de prata entremeadas. Quando estavam velejando pelo Sangueverde, as meninas órfãs criaram um jogo de esfregar a cabeça raspada de Egg para dar sorte. Isso fazia com que o garoto corasse, ficando mais vermelho do que uma romã. – Garotas são tão estúpidas – dizia. – Da próxima vez, aquela que me tocar vai parar no rio. Dunk teve que dizer a ele: – Se fizer isso, eu vou tocar em você. Eu lhe darei um tapão na orelha tão grande que você vai ouvir sinos até a próxima lua. Aquilo só fez o garoto ficar mais insolente. – Melhor sinos do que garotas estúpidas – insistiu, mas nunca jogou ninguém no rio. Dunk entrou na banheira e se abaixou até que a água o cobriu até o queixo. Ainda estava escaldante na superfície, porém mais fresca na parte de baixo. Apertou os dentes para não gritar. Se fizesse isso, o garoto riria dele. Egg gostava da sua água do banho escaldante. – Precisa de mais água fervente, sor? – Essa aqui é o bastante. – Dunk esfregou os braços e observou a sujeira sair em grandes manchas marrons. – Me dê o sabão. Ah, e a escova de cabo comprido também. – Pensar no cabelo de Egg o fez se lembrar do quanto o seu próprio cabelo estava imundo. Respirou profundamente e escorregou para baixo da água para dar uma boa molhada. Quando emergiu, encharcado, Egg estava ao lado da banheira com o sabão e a escova de cavalos de cabo comprido na mão. – Você tem pelos nas bochechas – Dunk observou ao pegar o sabão dele. – Dois deles. Aqui, embaixo da orelha. Assegure-se de tirá-los da próxima vez que raspar a cabeça. – Farei isso, sor. – O menino parecia deliciado com a descoberta. Sem dúvida, ele acha que um pouco de barba faz dele um homem. Dunk pensara o mesmo quando encontrou um pouco de penugem crescendo sobre seu lábio superior. Tentei me barbear com o meu punhal e quase cortei o nariz fora. – Vá dormir um pouco agora – disse para Egg. – Não precisarei mais de você até amanhã. Levou um bom tempo para esfregar toda a sujeira e suor. Depois, deixou o sabão de lado, esticou as pernas o máximo que poderia e fechou os olhos. A água já esfriara. Depois do calor selvagem do dia, era um alívio bem-vindo. Ficou submerso até que seus dedos ficaram enrugados e a água ficou cinzenta e fria; só então saiu, relutante. Embora Egg e ele tivessem grossas pilhas de palha para dormir no porão, Dunk preferia dormir no telhado. O ar era mais fresco ali, e algumas vezes tinha brisa. E não precisava ter medo da chuva. A próxima vez que chovesse lá em cima sobre eles seria a primeira. Egg estava dormindo quando Dunk chegou ao telhado. Deitou-se de costas, com as mãos atrás da cabeça, e encarou o céu. As estrelas estavam por toda parte, milhares e milhares delas. Elas lhe lembravam da noite em Campina de Vaufreixo, antes que o torneio começasse. Ele vira uma estrela cadente naquela noite. Supostamente, estrelas cadentes traziam boa sorte, então ele pediu para Tanselle pintar uma em seu escudo. Mas Vaufreixo trouxera tudo menos sorte para ele. Antes que o torneio acabasse, ele quase perdera uma mão e um pé, e três bons homens perderam a vida. Ganhei um escudeiro, no entanto. Egg estava comigo quando deixei Vaufreixo. E essa foi a única coisa boa de tudo o que aconteceu. Esperava que nenhuma estrela caísse naquela noite. Havia montanhas vermelhas a distância e areias brancas sob seus pés. Dunk estava cavando, enfiando uma pá no solo seco e quente e jogando a fina areia branca por sobre os ombros. Estava fazendo um buraco. Um túmulo, pensou, um túmulo para a esperança. Um trio de cavaleiros dorneses estava parado observando e zombando dele em voz baixa. Mais além, comerciantes esperavam com suas mulas, carroças e trenós de areia. Queriam ir embora, mas não partiriam até que ele enterrasse Castanha. Ele não deixaria seu velho amigo para as cobras, escorpiões e cães da areia. O castrado morrera de sede, na longa travessia entre o Passo do Príncipe e Vaith, com Egg em suas costas. Suas patas dianteiras pareciam ter se dobrado sob ele e o cavalo ajoelhou, rolou de lado e morreu. Sua carcaça estava ao lado do buraco. Já estava dura. Logo começaria a feder. Dunk chorava enquanto cavava, para diversão dos cavaleiros dorneses. – Água é preciosa para se desperdiçar – um deles disse. – Não devia desperdiçá-la, sor. O outro riu e disse: – Por que está chorando? Era só um cavalo, e bem feio. Castanha, Dunk pensou enquanto cavava, o nome dele era Castanha, e ele me levou nas costas por anos e nunca empacou ou mordeu. O velho castrado parecia uma coisa lamentável ao lado dos corcéis de areia lustrosos que os dorneses cavalgavam, com suas cabeças elegantes, pescoços longos e crinas se agitando, mas Castanha dera tudo o que podia dar. – Chorando por um castrado de costas arqueadas? – Sor Arlan disse, em sua voz de velho. – Ora, rapaz, você nunca chorou por mim, que o colocou sobre as costas dele. – Deu uma risadinha, para mostrar que não queria causar mal com a censura. – Esse é Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo. – Ele não derrubou lágrimas por mim tampouco – disse Baelor Quebra-Lança, do túmulo. – Embora eu fosse seu príncipe, a esperança de Westeros. Os deuses nunca pretenderam que eu morresse tão jovem. – Meu pai tinha só trinta e nove anos – lembrou o Príncipe Valarr. – Tinha tudo para ser um grande rei, o maior desde Aegon, o Dragão. – Olhou para Dunk com frios olhos azuis. – Por que os deuses o levariam e deixariam você? – O Jovem Príncipe tinha o cabelo castanho-claro do pai, mas uma mecha loura-prateada o atravessava. Vocês estão mortos, Dunk queria gritar, vocês três estão mortos, por que não me deixam em paz? Sor Arlan morrera de um resfriado, o Príncipe Baelor, de um golpe dado pelo irmão durante o julgamento de sete de Dunk, e seu filho Valarr, durante a Grande Praga da Primavera. Não tenho culpa por esse. Estávamos em Dorne, nem mesmo ficamos sabendo. – Você é louco – o velho disse para ele. – Não vamos cavar nenhum buraco para você quando se matar com essa tolice. Nas areias profundas, um homem deve estocar sua água. – Vá embora, Sor Duncan – Valarr disse. – Vá embora. Egg o ajudava a cavar. O garoto não tinha pá, só as mãos, e a areia voltava para o túmulo tão rápido quanto eles a tiravam. Era como tentar cavar um buraco no mar. Tenho que continuar cavando, Dunk disse a si mesmo, embora suas costas e ombros doessem com o esforço. Tenho que enterrá-lo profundo o bastante para que os cães de areia não o encontrem. Tenho que... – ... morrer? – perguntou Grande Rob, o simplório, do fundo do túmulo. Deitado ali, tão quieto e frio, com uma ferida vermelha irregular escancarando sua barriga, ele não parecia tão grande. Dunk parou e o encarou. – Você não está morto. Você está dormindo no porão. – Olhou para Sor Arlan, em busca de ajuda. – Diga para ele, sor – pediu. – Diga para ele sair do túmulo. Só que não era Sor Arlan de Centarbor que estava parado perto dele, mas Sor Bennis do Escudo Marrom. O cavaleiro marrom só gargalhou. – Dunk, pateta – disse –, destripar é algo lento, certamente. Mas nunca conheci um homem que viveu com as entranhas penduradas. – Uma espuma vermelha borbulhou em seus lábios. Ele se virou e cuspiu, e as areias brancas beberam tudo. Buco estava parado atrás dele com uma flecha no olho, chorando lentas lágrimas vermelhas. E lá estava Wat Molhado também, a cabeça cortada quase na metade, com o velho Lem e Pate olho-vermelho e todo o resto. Todos tinham mastigado folhamarga com Bennis, Dunk pensou de início, mas então percebeu que era sangue escorrendo por suas bocas. Mortos, pensou, todos mortos, e o cavaleiro marrom zurrava. – Sim, melhor se manter ocupado. Tem mais covas para cavar, pateta. Oito para eles, uma para mim, uma para o velho Sor Inútil e a última para seu garoto careca. A pá escorregou das mãos de Dunk. – Egg – gritou –, fuja! Temos que fugir! – Mas as areias escorregavam sob seus pés. Quando o garoto tentou se precipitar para fora do buraco, tudo desmoronou. Dunk viu as areias cobrirem Egg, enterrando-o enquanto ele abria a boca para gritar. Tentou abrir caminho até o escudeiro, mas as areias erguiam-se por todos os lados, puxando-o para o túmulo, enchendo sua boca, seu nariz, seus olhos... Com o raiar do dia, Sor Bennis começou a ensinar os recrutas a formar uma parede de escudos. Alinhou oito deles ombro a ombro, com os escudos se tocando e as pontas das lanças passando por cima, como longos dentes de madeira afiados. Então Dunk e Egg montaram e os atacaram. Meistre se recusou a avançar mais de três metros na direção das lanças e parou abruptamente, mas Trovão era treinado para isso. O grande cavalo de guerra seguiu em frente, ganhando velocidade. Galinhas correram embaixo de suas patas e bateram as asas em fuga. O pânico delas deve ter sido contagioso. Mais uma vez, Grande Rob foi o primeiro a largar a lança e fugir, deixando um vazio no meio da parede. Em vez de fechar o espaço, os outros guerreiros de Pousoveloz se juntaram à fuga. Trovão pisoteou seus escudos abandonados antes que Dunk pudesse detê-lo. Galhos entrelaçados rangeram e se estilhaçaram sob seus cascos com ferradura. Sor Bennis desfiou uma série de xingamentos pungentes enquanto galinhas e camponeses se espalhavam por todas as direções. Egg lutou bravamente para conter o riso, mas por fim perdeu a batalha. – Basta disso – Dunk fez Trovão parar, soltou o elmo e o arrancou. – Se fizerem isso em batalha, vamos ter todo o grupo morto. – E você e eu também, provavelmente. A manhã já estava quente e ele se sentia tão sujo e pegajoso como se nunca tivesse se banhado na vida. Sua cabeça latejava, e não conseguia esquecer o sonho que tivera na noite anterior. Nunca acontecera daquele jeito, tentava dizer a si mesmo. Não fora daquele jeito. Castanha morrera da longa cavalgada seca até Vaith, essa parte era verdade. Ele e Egg tinham cavalgado juntos até que o irmão de Egg lhe deu Meistre. O resto, no entanto... Nunca chorei. Posso ter tido vontade, mas nunca chorei. Ele tentara enterrar o cavalo também, mas os dorneses não esperaram. – Cães de areia precisam alimentar seus filhotes – um dos cavaleiros dorneses dissera para ele enquanto o ajudava a tirar a sela e os arreios do castrado. – A carne dele vai alimentar os cães ou as areias. Em um ano, seus ossos estarão totalmente limpos. Isso é Dorne, meu amigo. Ao lembrar-se daquilo, Dunk não pôde deixar de se perguntar quem se alimentaria das carnes de Wat, Wat e Wat. Talvez haja peixes xadrezes no Riacho Xadrez. Cavalgou com Trovão de volta à torre e desmontou. – Egg, ajude Sor Bennis a reuni-los e trazê-los de volta. – Jogou o elmo para ele e subiu os degraus. Sor Eustace o encontrou na penumbra de seu solar. – Isso não foi bom. – Não, senhor – Dunk concordou. – Eles não servem. – Uma espada juramentada deve serviço e obediência ao seu suserano, mas isso é loucura. – Foi a primeira vez deles. Seus pais e irmãos eram tão ruins ou piores quando começaram o treinamento. Meus filhos trabalharam com eles antes que fôssemos ajudar o rei. Todos os dias, por uma boa quinzena. Fizeram deles soldados. – E quando a batalha veio, senhor? – Dunk perguntou. – Como se saíram? Quantos deles voltaram para casa com você? O velho cavaleiro olhou longamente para ele. – Lem – disse por fim –, e Pate e Dake. Dake forrageava para nós. Era o melhor forrageiro que já vi. Nunca marchamos de barrigas vazias. Três voltaram, sor. Três e eu. – O bigode dele estremeceu. – Pode levar mais do que uma quinzena. – Senhor – Dunk falou –, a mulher pode estar sobre nós amanhã, com todos os homens dela. – São bons rapazes, pensou, mas logo serão rapazes mortos se forem contra os cavaleiros de Fosso Gelado. – Deve haver algum outro jeito. – Algum outro jeito. – Sor Eustace passou os dedos de leve no escudo do Pequeno Leão. – Não terei justiça de Lorde Rowan, nem deste rei... – Agarrou Dunk pelo braço. – Ocorre-me que, nos dias passados, quando os reis verdes governavam, era possível pagar a um homem um preço de sangue se você matasse um de seus animais ou camponeses. – Preço de sangue? – Dunk hesitou. – Algum outro jeito, você disse. Eu teria algumas moedas disponíveis. Foi só um pouco de sangue na bochecha, Sor Bennis disse. Eu pagaria ao homem um veado de prata e três à mulher pelo insulto. Eu poderia, e faria... se ela derrubasse a barragem. – O velho franziu o cenho. – Mas eu não posso ir até ela. Não em Fosso Gelado. – Uma mosca gorda e preta zumbiu perto de sua cabeça e pousou em seu braço. – Aquele castelo era nosso antigamente. Sabia disso, Sor Duncan? – Sim, senhor – Sam Stoops lhe dissera. – Por mil anos, antes da Conquista, fomos os Marechais da Fronteira Norte. Um grupo de senhores menores nos devia fidelidade, assim como uma centena de cavaleiros com terras. Tínhamos quatro castelos naquela época e torres de vigia nas colinas para avisar da chegada dos nossos inimigos. Fosso Gelado era a maior de nossas sedes. Lorde Perwyn Osgrey o ergueu. Perwyn, o Orgulhoso, era chamado. Depois do Campo de Fogo, Jardim de Cima deixou de ter reis para ter intendentes, e os Osgrey foram rebaixados e diminuídos. Foi o filho do Rei Maegor, Aegon, quem tomou Fosso Gelado de nós, quando Lorde Ormond Osgrey manifestou-se contra a supressão das Estrelas e Espadas, como os Pobres Irmãos e os Filhos do Guerreiro eram chamados. – Sua voz ficou mais rouca. – Havia um leão xadrez esculpido na pedra sobre os portões de Fosso Gelado. Meu pai me mostrou, na primeira vez que me levou com ele para falar com o velho Reynard Webber. Mostrei aos meus filhos, quando fora minha vez. Addam... Addam serviu em Fosso Gelado como pajem e escudeiro, e um... um certo... carinho surgiu entre ele e a filha de Lorde Wyman. Então, em um dia de inverno, vesti meu traje mais suntuoso e fui até Lorde Wyman para propor casamento. A recusa dele foi cortês, mas, quando parti, eu o ouvi rindo com Sor Lucas Inchfield. Nunca voltei a Fosso Gelado depois disso, exceto uma vez, quando aquela mulher supostamente levou um dos meus. Quando me disseram para procurar o pobre Lem no fundo do fosso... – Dake – Dunk o corrigiu. – Bennis disse que o nome dele era Dake. – Dake? – A mosca estava andando pela luva dele, parando para esfregar uma pata na outra, do jeito que as moscas fazem. Sor Eustace a espantou e coçou o lábio sob o bigode. – Dake. Foi o que eu disse. Um companheiro leal. Ele forrageava para nós durante a guerra. Nunca marchamos de barriga vazia. Quando Sor Lucas me informou o que fora feito ao meu pobre Dake, fiz um juramento sagrado de nunca mais colocar os pés dentro daquele castelo novamente, exceto para tomar posse dele. Então, veja, Sor Duncan, não posso ir lá. Não para pagar o preço de sangue, ou por qualquer outro motivo. Não posso. Dunk compreendeu. – Eu poderia ir, senhor. Não fiz juramento algum. – Você é um bom homem, Sor Duncan. Um cavaleiro corajoso e verdadeiro. – Sor Eustace deu um apertão no braço de Dunk. – Eu gostaria que os deuses tivessem poupado minha Alysanne. Você é o tipo de homem com quem sempre esperei que ela se casasse. Um cavaleiro de verdade, Sor Duncan. Um cavaleiro de verdade. Dunk estava ficando vermelho. – Direi à Senhora Webber o que você disse, sobre o preço de sangue, mas... – Você salvará Sor Bennis do destino de Dake. Sei disso. Não pretendo julgar os homens, e você é aço verdadeiro. Fará com que parem, sor. Simplesmente ao vê-lo. Quando aquela mulher vir que Pousoveloz tem tal campeão, ela pode derrubar a barragem por conta própria. Dunk não soube o que responder para aquilo. Ajoelhou-se. – Senhor, irei até lá pela manhã e farei o melhor possível. – Pela manhã. – A mosca começou a voar ao redor deles e pousou na mão esquerda de Sor Eustace. Ele ergueu a mão direita e esmagou o inseto. – Sim, pela manhã. – Outro banho? – Egg perguntou, consternado. – Você se lavou ontem. – E então passei o dia na armadura, nadando em meu suor. Feche a boca e encha a caldeira. – Você se lavou na noite em que Sor Eustace nos aceitou a seu serviço – Egg apontou – E noite passada, e agora. São três vezes, sor. – Preciso tratar com uma senhora de alto nascimento. Quer que eu apareça diante do trono dela cheirando como Sor Bennis? – Você teria que rolar em uma banheira cheia de excrementos do Meistre para cheirar tão mal assim, sor. – Egg encheu a caldeira. – Sam Stoops diz que o castelão de Fosso Gelado é tão grande quanto você. Lucas Inchfield é o nome dele, mas é chamado de Longo Inch pelo seu tamanho. Acha que ele é tão grande quanto você, sor? – Não. – Há anos Dunk não conhecia ninguém tão alto quanto ele. Pegou a caldeira e a pendurou sobre o fogo. – Vai lutar com ele? – Não. – Dunk quase desejava que fosse de outro jeito. Ele podia não ser o maior guerreiro do reino, mas seu tamanho e força compensavam outras carências. Não a falta de inteligência, no entanto. Ele não era bom com as palavras, e pior com as mulheres. Esse gigante Lucas Longo Inch não o assustava nem metade do que a perspectiva de encarar a Viúva Vermelha. – Vou conversar com a Viúva Vermelha, é só isso. – O que vai dizer para ela, sor? – Que ela tem que derrubar a barragem – Você tem que derrubar a barragem, senhora, ou então... – Pedir para ela derrubar a barragem, quero dizer. – Por favor, devolva nosso riacho xadrez. – Se for do agrado dela. – Um pouco de água, senhora, se for do seu agrado. Sor Eustace não iria querer que ele implorasse. Como digo, então? A água logo começou a soltar vapor e borbulhar. – Ajude-me a arrastar isso para a banheira – Dunk disse para o garoto. Juntos, ergueram a caldeira da lareira e cruzaram o porão até a grande banheira de madeira. – Não sei como falar com senhoras nobres. – Confessou enquanto despejavam a água. – Nós dois podíamos ter sido mortos em Dorne por causa do que eu disse para a Senhora Vaith. – A Senhora Vaith era louca – Egg lembrou –, mas você podia ter sido mais galante. Senhoras gostam quando você é galante. Se salvasse a Viúva Vermelha do jeito que salvou aquela titereira de Aerion... – Aerion está em Lys, e a Viúva não precisa ser salva. – Ele não queria falar de Tanselle. Tanselle Alta Demais era o nome dela, mas ela não era alta demais para mim. – Bem – o garoto prosseguiu –, alguns cavaleiros cantam canções galantes para suas senhoras, ou tocam um alaúde. – Não tenho alaúde. – Dunk parecia sombrio. – E, naquela noite em que bebi demais em Vila Tabueira, você me disse que eu cantava como um boi chafurdando na lama. – Eu tinha esquecido, sor. – Como pôde esquecer? – Você me disse para esquecer, sor – Egg disse, todo inocente. – Disse que me daria um tapão na orelha da próxima vez que eu mencionasse isso. – Não vai ter canto. Mesmo se tivesse voz para isso, a única canção que Dunk conhecia inteira era “O urso e a bela donzela”. Duvidava que isso fosse conquistar a Senhora Webber. A caldeira estava fervendo de novo. Eles a arrastaram até a banheira e despejaram a água. Egg tirou água para encher a caldeira pela terceira vez, então subiu novamente no poço. – Seria bom se não bebesse ou comesse nada em Fosso Gelado, sor. A Viúva Vermelha envenenou todos os maridos. – Não vou casar com ela. Ela é uma senhora nobre, e eu sou apenas Dunk da Baixada das Pulgas, lembra? – Franziu o cenho. – Quantos maridos ela já teve, você sabe? – Quatro – Egg falou. – Mas nenhum filho. Sempre que ela dá à luz, um demônio vem à noite se encarregar do assunto. A esposa de Sam Stoops diz que ela vende os bebês nascituros para o Senhor dos Sete Infernos, então ele a ensina suas artes negras. – Senhoras nobres não se misturam com artes negras. Elas dançam, cantam e bordam. – Talvez ela dance com demônios e borde feitiços malignos – Egg sugeriu com satisfação. – E o que você sabe sobre senhoras nobres, sor? A Senhora Vaith é a única que já conheceu. Aquilo era insolente, mas verdadeiro. – Talvez eu não saiba sobre senhoras nobres, mas conheço um garoto que está pedindo por um bom tapão na orelha. – Dunk apertou a nuca. Um dia usando cota de malha sempre o deixava duro como madeira. – Você conhece rainhas e princesas. Elas dançam com demônios e praticam artes negras? – A Senhora Shiera sim. Amante de Lorde Corvo de Sangue. Ela se banha em sangue para manter a beleza. E uma vez minha irmã Rhae colocou uma poção do amor na minha bebida para que eu me casasse com ela no lugar de minha irmã Daella. Egg falava como se tais incestos fossem a coisa mais natural do mundo. Para ele, são. Os Targaryen casavam irmão com irmã há centenas de anos, para manter o sangue do dragão puro. Ainda que o último dragão de verdade tivesse morrido antes de Dunk nascer, os reis dragões continuavam. Talvez os deuses não se incomodem que se casem com suas irmãs. – A poção funcionou? – Dunk perguntou. – Teria funcionado – Egg falou –, mas eu cuspi. Não quero uma esposa, quero ser um cavaleiro da Guarda Real e viver só para servir e defender o rei. Os cavaleiros da Guarda Real juram não se casar. – É uma coisa nobre, mas, quando você for mais velho, pode descobrir que prefere ter uma garota em vez de um manto branco. – Dunk estava pensando em Tanselle Alta Demais e no jeito que ela sorrira para ele em Vaufreixo. – Sor Eustace disse que sou o tipo de homem que ele esperava que tivesse se casado com sua filha. O nome dela era Alysanne. – Ela está morta, sor. – Eu sei que ela está morta – Dunk respondeu, irritado. – Se ela estivesse viva, ele disse. Se ela estivesse, ele gostaria que ela se casasse comigo. Ou com alguém como eu. Nunca nenhum senhor me ofereceu sua filha antes. – A filha morta. E os Osgrey podem ter sido senhores nos tempos antigos, mas Sor Eustace é só um cavaleiro com terras. – Sei o que ele é. Quer um tapão na orelha? – Bem – Egg respondeu –, eu prefiro ganhar um tapão a uma esposa. Especialmente uma esposa morta, sor. A caldeira está fervendo. Levaram a água até a banheira e Dunk tirou a túnica pela cabeça. – Usarei minha túnica dornesa para ir a Fosso Gelado. – Era de sedareia, a vestimenta mais elegante que ele possuía, pintada com o olmo e a estrela cadente. – Se a usar para cavalgar, vai chegar todo suado, sor – Egg comentou. – Vista a que usou hoje. Eu levarei a outra, e você pode trocar quando chegarmos ao castelo. – Antes de chegar ao castelo. Eu pareceria um tolo trocando de roupa na ponte levadiça. E quem disse que você vai comigo? – Um cavaleiro impressiona mais com um escudeiro ao seu serviço. Aquilo era verdade. O garoto tinha bom senso para aquelas coisas. E tem que ter. Serviu dois anos como pajem em Porto Real. Mesmo assim, Dunk estava relutante em colocá-lo em perigo. Não tinha ideia do tipo de recepção que esperava por ele em Fosso Gelado. Se essa Viúva Vermelha era tão perigosa quanto diziam, ele podia acabar em uma gaiola de corvos, como aqueles dois homens que eles viram na estrada. – Você vai ficar e ajudar Bennis com os plebeus – disse para Egg. – E não me dê esse olhar mal-humorado. – Jogou o calção longe e entrou na banheira de água quente. – Agora, vá dormir e me deixe tomar banho. Você não vai, e não se fala mais nisso. Egg já tinha levantado e deixado o telhado quando Dunk despertou com a luz do sol da manhã em seu rosto. Que os deuses sejam bons, como pode estar tão quente tão cedo? Sentou-se e espreguiçou-se, bocejando, então ficou em pé e cambaleou sonolento até o poço, onde acendeu uma vela de gordura, jogou um pouco de água fria no rosto e se vestiu. Quando saiu para a luz do sol, Trovão estava esperando no estábulo, selado e com arreios. Egg estava esperando também, com Meistre, a mula. O garoto tinha calçado as botas. Pela primeira vez parecia um escudeiro de verdade, em um belo gibão quadriculado em verde e dourado e um calção justo de lã branca. – O calção estava rasgado no traseiro, mas a esposa de Sam Stoop costurou para mim – ele anunciou. – As roupas eram de Addam – Sor Eustace falou, trazendo seu próprio castrado cinzento da baia. Um leão xadrez adornava o manto de seda desfiada que fluía dos ombros do velho. – O gibão está um pouco mofado do baú, mas deve servir. Um cavaleiro impressiona mais com um escudeiro ao seu serviço, então decidi que Egg deve acompanhá-lo até Fosso Gelado. Enganado por um garoto de dez anos. Dunk olhou para Egg e, em silêncio, moveu a boca com as palavras tapão na orelha. O garoto sorriu. – Tenho algo para você também, Sor Duncan. Venha. – Sor Eustace pegou um manto e o sacudiu com um floreio. Era de lã branca, com a borda enfeitada com quadrados de cetim verde e samito. Um manto de lã era a última coisa de que ele precisava naquele calor, mas, quando Sor Eustace o colocou em seus ombros, Dunk viu o orgulho em seu rosto e se viu incapaz de recusar. – Obrigado, senhor. – Cai bem em você. Gostaria de poder lhe dar mais. – O bigode do velho se contorceu. – Mandei Sam Stoops até o porão para procurar nas coisas antigas dos meus filhos, mas Edwyn e Harrold eram homens menores, mais estreitos no peito e muito mais curtos nas pernas. Nada do que deixaram serviria em você, sinto dizer. – O manto é o bastante, senhor. Não vou envergonhá-lo. – Não duvido disso. – Deu um tapinha em seu cavalo. – Pensei em cavalgar com vocês parte do caminho, se não fizer objeção. – Nenhuma, senhor. Egg os levou colina abaixo, sentado ereto em Meistre. – Ele precisa usar aquele chapéu de palha mole? – Sor Eustace perguntou a Dunk. – Parece um pouco tolo, não acha? – Não tão tolo quando sua cabeça corre o risco de despelar, senhor. – Mesmo àquela hora, com o sol pouco acima do horizonte, estava quente. À tarde, as selas estarão quentes o bastante para levantar bolhas. Egg podia parecer elegante nas roupas do menino morto, mas estaria cozido ao cair da noite. Dunk, pelo menos, podia se trocar; tinha a túnica boa no alforje e a velha verde nas costas. – Tomaremos o caminho oeste – Sor Eustace anunciou. – É menos usado nesses últimos anos, mas ainda é o caminho mais curto de Pousoveloz até o Castelo de Fosso Gelado. – O caminho os fez contornar a parte de trás da colina, passando pelos túmulos onde o velho cavaleiro colocara a esposa e os filhos para descansar em um emaranhado de amoreiras. – Eles adoravam pegar amoras aqui, meus meninos. Quando eram pequenos, voltavam com o rosto pegajoso e arranhões nos braços, e eu sabia exatamente onde tinham estado. – Sorriu carinhosamente. – Seu Egg lembra meu Addam. Um garoto corajoso para alguém tão jovem. Addam estava tentando proteger o irmão ferido, Harrold, quando a batalha caiu sobre eles. Um homem das terras fluviais com seis bolotas no escudo arrancou seu braço com um machado. – Seus tristes olhos cinzentos encontraram os de Dunk. – Esse seu antigo mestre, o cavaleiro de Centarbor... ele lutou na Rebelião Blackfyre? – Lutou, senhor, antes que me pegasse ao seu serviço. – Dunk não tinha mais do que três ou quatro anos naquela época, correndo seminu pelos becos da Baixada das Pulgas, mais animal do que menino. – Ele lutou pelo dragão vermelho ou pelo negro? Vermelho ou negro? era uma pergunta perigosa, mesmo agora. Desde os dias de Aegon, o Conquistador, o brasão de armas da Casa Targaryen ostentava um dragão de três cabeças, vermelho em fundo negro. Daemon, o Pretendente, invertera as cores em seu próprio estandarte, como muitos bastardos faziam. Sor Eustace é meu suserano, Dunk lembrou a si mesmo. Tem o direito de perguntar. – Ele lutou sob o estandarte de Lorde Hayford, senhor. – Uma treliça verde em fundo dourado e um ondulado verde claro? – Pode ser, senhor. Egg saberia dizer. – O rapaz podia recitar os brasões de armas de metade dos cavaleiros de Westeros. – Lorde Hayford era um conhecido legalista. O Rei Daeron o fez sua Mão bem antes da batalha. Butterwell fizera um trabalho tão ruim que muitos questionaram sua lealdade, mas Lorde Hayford foi resoluto desde o início. – Sor Arlan estava ao lado dele quando ele caiu. Um senhor com três castelos no escudo o cortou. – Muitos homens bons caíram naquele dia, dos dois lados. O capim não era vermelho antes da batalha. Sor Arlan lhe contou isso? – Sor Arlan nunca gostava de falar sobre a batalha. O escudeiro dele morreu lá também. Roger de Centarbor era o nome dele, filho da irmã de Sor Arlan. – Até dizer o seu nome fazia Dunk se sentir vagamente culpado. Roubei o lugar dele. Só príncipes e grandes senhores tinham meios para manter dois escudeiros. Se Aegon, o Indigno, tivesse dado sua espada para seu herdeiro, Daeron, em vez de para seu bastardo, Daemon, poderia nunca ter havido uma Rebelião Blackfyre, e Roger de Centarbor poderia estar vivo hoje. Ele seria um cavaleiro em algum lugar, um cavaleiro mais verdadeiro do que eu. Eu teria terminado na forca, ou teria sido mandado para a Patrulha da Noite, para andar pela Muralha até a minha morte. – Uma grande batalha é uma coisa terrível – o velho cavaleiro disse. – Mas, no meio de todo o sangue e carnificina, algumas vezes há alguma beleza, beleza que pode partir seu coração. Nunca vou me esquecer do sol sobre o Campo do Capim-Vermelho... dez mil homens mortos, e o ar estava cheio de gemidos e lamentações, mas sobre nós, o céu ficou dourado, vermelho e laranja, tão bonito que me fez chorar por saber que meus filhos nunca veriam aquilo. – Suspirou. – Naqueles dias, a coisa chegou mais perto do que querem fazer acreditar. Se não fosse por Corvo de Sangue... – Sempre ouvi dizer que foi Baelor Quebra-Lança quem ganhou a batalha – Dunk comentou. – Ele e o Príncipe Maekar. – O martelo e a bigorna? – O bigode do velho se contorceu. – Os cantores deixam muita coisa de fora. Daemon foi o próprio Guerreiro naquele dia. Nenhum homem podia ficar diante dele. Ele fez a linha de frente de Lorde Arryn em pedaços e matou o Cavaleiro das Novestrelas e Wyl Selvagem Waynwood antes de enfrentar Sor Gwayne Corbray, da Guarda Real. Por quase uma hora, eles dançaram em seus cavalos, rodopiando, circulando e atacando um ao outro, enquanto homens morriam ao redor deles. Dizem que sempre que a Blackfyre e a Senhora Desespero se enfrentavam, era possível ouvir o som a cinco quilômetros dali. Era metade canção metade grito, dizem. Mas, quando finalmente a Senhora vacilou, a Blackfyre entrou pelo elmo de Sor Gwayne e o deixou cego e sangrando. Daemon desmontou para garantir que seu inimigo não fosse pisoteado e ordenou que Presa Vermelha o levasse até os meistres na retaguarda. E esse foi seu erro mortal, pois os Dentes de Corvo tinham chegado ao alto do Cume Chorão, e Corvo de Sangue viu o estandarte real de seu meio-irmão parado a quinhentos metros de distância, e Daemon e seus filhos embaixo dele. Corvo de Sangue matou Aegon primeiro, o mais velho dos gêmeos, pois sabia que Daemon nunca deixaria o menino enquanto seu corpo estivesse quente, mesmo com dardos brancos caindo como chuva. E ele não saiu do lado do filho, embora sete flechas o acertassem, guiadas tanto pela feitiçaria quanto pelo arco de Corvo de Sangue. O jovem Aemon pegou a Blackfyre quando a lâmina caiu dos dedos de seu pai moribundo, então Corvo de Sangue o matou também, o mais jovem dos gêmeos. Assim pereceram o dragão negro e seus filhos. Houve muito mais depois disso, eu sei. Vi um pouco com meus próprios olhos... os rebeldes fugindo, Açoamargo superando a derrota e liderando o ataque louco... sua batalha com Corvo de Sangue, perdendo apenas para aquela que Daemon lutou com Gwayne Corbray... os golpes de martelo do Príncipe Baelor contra a retaguarda rebelde, os dorneses gritando enquanto enchiam o ar de lanças... mas no fim do dia não havia diferença. A guerra acabou quando Daemon morreu. Chegou tão perto... se Daemon tivesse cavalgado sobre Gwayne Corbray e o deixado ao seu destino, poderia ter rompido com a esquerda de Maekar antes que Corvo de Sangue tomasse o cume. Então o dia teria pertencido aos dragões negros, com a Mão morta e a estrada para Porto Real aberta diante deles. Daemon estaria sentado no Trono de Ferro quando o Príncipe Baelor chegasse com os senhores da tempestade e os dorneses. Os cantores podem ficar com o martelo e a bigorna, sor, mas foi o regicida quem virou a maré com a flecha branca e a magia negra. Ele nos governa agora, mas não se engane. O Rei Aerys é um joguete dele. Não se surpreenda em saber que Corvo de Sangue enfeitiçou Sua Graça para dobrá-lo às suas vontades. Não admira que estejamos amaldiçoados. – Sor Eustace balançou a cabeça e caiu em um silêncio melancólico. Dunk se perguntou o quanto Egg tinha escutado da conversa, mas não havia como perguntar para ele. Quantos olhos Lorde Corvo de Sangue tem?, pensou. O dia já estava ficando mais quente. Até as moscas fugiram, Dunk notou. Moscas têm mais juízo do que cavaleiros. Ficam fora do sol. Ele se perguntou se seria oferecida hospitalidade para eles em Fosso Gelado. Um caneco de cerveja gelada cairia bem. Dunk considerava aquela perspectiva com prazer, quando se lembrou do que Egg dissera sobre a Viúva Vermelha envenenar seus maridos. Sua sede sumiu imediatamente. Havia coisas piores do que gargantas secas. – Houve uma época em que a Casa Osgrey era dona de todas as terras a muitos quilômetros no entorno, de Nunny até Barqueiras – Sor Eustace contou. – Fosso Gelado era nosso, e a Colina Ferradura, as cavernas na Encosta Derring, os vilarejos de Dosk, Pequena Dosk e Fundo da Aguardente, ambas as margens do Lago Frondoso... as donzelas Osgrey se casavam com Florent, Swann e Tarbeck, até mesmo com Hightower e Blackwood. O limite do Bosque de Wat estava à vista. Dunk cobriu os olhos com a mão e estreitou-os na direção da vegetação. Pela primeira vez, invejou o chapéu mole de Egg. Pelo menos teria um pouco de sombra. – Antigamente, o Bosque de Wat se estendia até Fosso Gelado – Sor Eustace contou. – Não lembro quem era Wat. Antes da Conquista, era possível encontrar auroques no bosque e grandes alces de dois metros ou mais. Havia mais veados vermelhos do que qualquer homem poderia caçar na vida, mas ninguém, além do rei e do leão xadrez, tinha permissão de caçar aqui. Até mesmo na época do meu pai, havia árvores nas duas margens do riacho, mas as aranhas desmataram o bosque para plantar pastos para suas vacas, ovelhas e cavalos. Um dedo fino de suor escorreu pelo peito de Dunk. Ele se pegou desejando ardentemente que seu suserano ficasse quieto. Está quente demais para falar. Está quente demais para cavalgar. Está quente demais. No bosque, encontraram a carcaça de um grande gato das árvores marrom, cheio de vermes. – Eca – Egg disse, enquanto dava a volta no animal com Meistre –, essa coisa fede mais do que Sor Bennis. Sor Eustace puxou as rédeas. – Um gato das árvores. Eu sabia que ainda restavam alguns na floresta. O que será que o matou? – Quando ninguém respondeu, ele disse: – Voltarei daqui. Simplesmente continue para oeste e isso o levará direto até Fosso Gelado. Está com as moedas? – Dunk assentiu. – Bom. Volte para casa com minha água, sor. – O velho cavaleiro deu meia-volta, trotando pelo caminho de onde vieram. Quando ele se foi, Egg disse: – Pensei sobre como deve falar com a Senhora Webber, sor. Você deve conquistá-la com elogios galantes. – O menino parecia tão fresco e vívido em sua túnica xadrez quanto Sor Eustace em seu manto. Sou o único que transpira? – Elogios galantes – Dunk repetiu. – Que tipo de elogios galantes? – Você sabe, sor. Diga para ela o quão jovem e bonita ela é. Dunk tinha dúvidas. – Ela sobreviveu a quatro maridos, deve ser tão velha quanto a Senhora Vaith. Se eu disser que ela é jovem e bonita quando ela é velha e cheia de verrugas, ela vai me tomar por mentiroso. – Só precisa encontrar algo verdadeiro para dizer sobre ela. É o que meu irmão Daeron faz. Até putas velhas e feias têm bons cabelos e orelhas bonitas. – Orelhas bonitas? – As dúvidas de Dunk aumentavam. – Ou belos olhos. Diga para ela que o vestido dela destaca a cor de seus olhos. – O garoto refletiu por um momento. – A menos que ela tenha só um olho, como Lorde Corvo de Sangue. Minha senhora, esse vestido destaca a cor do seu único olho. Dunk ouvira cavaleiros e nobres falarem tais galanteios para outras senhoras. Mas nunca eram colocados tão descaradamente. Boa senhora, esse vestido é bonito. Destaca a cor dos seus olhos encantadores. Algumas senhoras eram velhas e enrugadas, ou gordas e coradas, ou marcadas pela varíola e desajeitadas, mas todas usavam vestidos e tinham dois olhos e, pelo que Dunk se lembrava, ficavam bem satisfeitas com as palavras floreadas. Que vestido adorável, minha senhora. Ele destaca a encantadora beleza de seus olhos coloridos. – A vida de um cavaleiro andante é mais simples – Dunk disse melancolicamente. – Se eu disser a coisa errada, ela vai me costurar em um saco de pedras e me jogar no fosso. – Duvido que ela tenha um saco tão grande, sor – Egg comentou. – Podíamos usar minha bota, em vez disso. – Não – Dunk rosnou. – Não podíamos. Quando saíram do Bosque de Wat, encontraram-se bem na montante da barragem. As águas tinham subido o bastante para Dunk dar o mergulho que sonhava. Profunda o bastante para afogar um homem, ele pensou. No outro lado, a margem tinha sido cortada por uma vala que levava parte da água para oeste. A vala corria ao longo da estrada, alimentando uma infinidade de canais menores que serpenteavam pelos campos. Assim que cruzarmos o riacho, estaremos sob o poder da Viúva. Dunk se perguntou onde estava se metendo. Era só um homem, com um garoto de dez anos para proteger sua retaguarda. Egg abanou o rosto. – Sor? Por que paramos? – Não paramos. – Dunk apertou os calcanhares em sua montaria e entrou no riacho. Egg o seguiu com a mula. A água subiu até a barriga de Trovão, antes de começar a baixar novamente. Saíram pingando no lado da Viúva. Adiante, a vala corria reta como uma lança, brilhando verde e dourada ao sol. Quando vislumbraram as torres de Fosso Gelado, várias horas mais tarde, Dunk parou para vestir sua boa túnica dornesa e soltar a espada longa da bainha. Não queria que a lâmina ficasse presa se precisasse desembainhá-la. Egg deu uma mexida no cabo do punhal também, o rosto solene sob o chapéu mole. Cavalgaram lado a lado, Dunk no grande cavalo de guerra, o menino sobre a mula, o estandarte Osgrey agitando-se a esmo no mastro. Fosso Gelado foi uma espécie de decepção depois de tudo o que Sor Eustace dissera. Comparado com Ponta Tempestade, Jardim de Cima ou outras casas nobres que Dunk vira, era um castelo modesto... mas era um castelo, não uma torre de vigia fortificada. As muralhas exteriores, com ameias, tinham nove metros de altura, com torres em cada canto, cada uma delas tinha metade do tamanho de Pousoveloz. De cada torre e pináculo pendia um pesado estandarte Webber, cada um deles estampando uma aranha manchada sobre uma teia prateada. – Sor? – Egg falou. – A água. Olhe para onde vai. A vala terminava na muralha oriental de Fosso Gelado, derramando-se no fosso do qual o castelo tomava o nome. O murmúrio da água caindo fez Dunk ranger os dentes. Ela não terá a água xadrez. – Venha – disse para Egg. Sobre o arco do portão principal, uma fileira de estandartes da aranha pendia no ar parado sobre o brasão mais velho esculpido na rocha. Séculos de vento e da ação do clima o tinham desgastado, mas o formato ainda era visível: um leão furioso feito de quadrados de xadrez. Os portões estavam abertos. Enquanto atravessavam a ponte levadiça, Dunk notou o quão fundo o fosso era. Dois metros, pelo menos, julgou. Dois lanceiros barraram o caminho deles no portão levadiço. Um deles tinha uma grande barba negra e o outro, não. O barbudo quis saber quais eram os propósitos deles ali. – Meu senhor de Osgrey me mandou para tratar com a Senhora Webber – Dunk lhe disse. – Sou Sor Duncan, o Alto. – Bem, eu sabia que você não era Bennis. – O guarda sem barba comentou. – Teríamos sentido o cheiro dele chegando. – Faltava um dente em sua boca, e ele tinha um distintivo com uma aranha manchada costurada acima do coração. O barbudo olhava desconfiado para Dunk. – Ninguém vê sua senhoria a menos que Longo Inch dê permissão. Venha comigo. Você, cavalariço, pode ficar com os cavalos. – Sou um escudeiro, não um cavalariço – Egg corrigiu. – Você é cego ou apenas estúpido? O guarda sem barba caiu na gargalhada. O barbudo colocou a ponta da lança na garganta do garoto. – Diga isso de novo. Dunk deu um tapão na orelha de Egg. – Não. Cale a boca e cuide dos cavalos. – Desmontou. – Verei Sor Lucas agora. O barbudo abaixou a lança. – Ele está no pátio. Passaram por baixo de um portão levadiço de ferro cravado e sobre um buraco assassino antes de saírem na ala externa. Cães de caça latiam nos canis, e Dunk podia ouvir canto vindo das janelas de vidro com chumbo de um septo de madeira de sete lados. Diante da forja, um ferreiro colocava a ferradura em um cavalo de guerra, com um menino aprendiz assistindo. Ali perto, um escudeiro perdia flechas em um alvo, enquanto uma garota sardenta, com uma trança comprida, o acompanhava disparo após disparo. O estafermo girava também, enquanto meia dúzia de cavaleiros em roupas almofadadas se revezavam em atacá-lo. Encontraram Sor Lucas Longo Inch entre os observadores do estafermo, conversando com um grande septão gordo, que suava mais do que Dunk; um homem branco rechonchudo em uma túnica tão molhada quanto se tivesse entrado com ela no banho. Inchfield era uma lança ao lado dele, ereto, rígido e muito alto... embora não tão alto quanto Dunk. Um metro e oitenta, Dunk julgou, e cada centímetro mais orgulhoso que outro. Embora usasse seda negra e pano de prata, Sor Lucas parecia tão fresco quanto se estivesse caminhando na Muralha. – Meu senhor – o guarda o saudou. – Este aqui vem da torre das galinhas, em busca de uma audiência com sua senhoria. O septão se virou primeiro, com um assobio de prazer que fez Dunk se perguntar se ele estaria bêbado. – E o que é isso? Um cavaleiro andante? Você tem grandes sebes na Campina. – O septão fez um sinal de bênção. – Que o Guerreiro sempre lute ao seu lado. Sou o Septão Sefton. Um nome infeliz, mas meu. E você? – Sor Duncan, o Alto. – Um camarada modesto, este aqui – o septão disse para Sor Lucas. – Se eu fosse tão grande quanto ele, eu me chamaria Sor Sefton, o Imenso. Sor Sefton, a Torre. Sor Sefton, Com as Nuvens nas Orelhas. – Seu rosto redondo estava corado, e havia manchas de vinho em sua túnica. Sor Lucas estudava Dunk. Era um homem mais velho; quarenta anos pelo menos, talvez perto dos cinquenta, vigoroso em vez de musculoso, com um rosto extremamente feio. Os lábios eram grossos; os dentes, um emaranhado amarelo; o nariz, largo e carnudo; os olhos, salientes. E está com raiva, Dunk pressentiu antes mesmo que o homem dissesse: – Cavaleiros andantes são pedintes com espadas, na melhor das hipóteses; foras da lei, na pior. Vá embora. Não queremos tipos como você aqui. O rosto de Dunk ficou sombrio. – Sor Eustace Osgrey me mandou de Pousoveloz para tratar com a senhora do castelo. – Osgrey? – O septão olhou para Longo Inch. – Osgrey, o leão xadrez? Pensei que a Casa Osgrey estivesse extinta. – Perto o bastante disso para não fazer diferença. O velho é o último deles. Deixamos que mantivesse uma casa de torre caindo aos pedaços a alguns quilômetros a leste. – Sor Lucas franziu o cenho para Dunk. – Se Sor Eustace quer falar com sua senhoria, que venha ele mesmo. – Seus olhos se estreitaram. – Era você quem estava com Bennis na barragem. Nem tente negar. Eu devia enforcá-lo. – Que os Sete nos salvem. – O septão secou o suor da testa com a manga. – Ele é um bandido? E um dos grandes. Sor, arrependa-se dos maus caminhos e a Mãe terá misericórdia. – O apelo piedoso do septão foi interrompido quando ele peidou. – Ah, deuses. Perdoe meus gases, sor. É o que vem de feijão e pão de centeio. – Não sou um bandido – Dunk disse para os dois, com toda a dignidade que conseguiu reunir. Longo Inch não se comoveu com a negação. – Não teste minha paciência, sor... se é que é um sor. Corra para sua torre de galinhas e diga para Sor Eustace entregar Sor Bennis Fedor Marrom. Se ele nos poupar o trabalho de arrancá- lo de Pousoveloz, sua senhoria pode ficar mais inclinada à clemência. – Falarei com sua senhoria sobre Sor Bennis e o problema na barragem, e sobre o roubo da nossa água também. – Roubo? – Sor Lucas disse. – Diga isso para nossa senhora e estará nadando em um saco antes que o sol se ponha. Tem certeza de que deseja vê-la? A única coisa de que Dunk tinha certeza era que queria enfiar o punho nos dentes amarelos tortos de Lucas Inchfield. – Eu lhe disse o que quero. – Ah, deixe-o falar com ela – o septão instou. – Que mal poderia fazer? Sor Duncan fez uma longa cavalgada sob este sol bestial. Deixe o camarada falar o que quer. Sor Lucas estudou Dunk novamente. – Nosso septão é um homem sagrado. Venha. Eu agradeceria se fosse breve. – Ele atravessou o pátio e Dunk foi forçado a correr atrás dele. As portas do septo do castelo estavam abertas e os adoradores estavam saindo pela escadaria. Havia cavaleiros e escudeiros, uma dúzia de crianças, vários velhos, três septãs em túnicas brancas com capuz... e uma senhora nobre, suave e carnuda, em um vestido adamascado azul escuro com bainhas de renda de Myr, com uma barra tão comprida que arrastava na terra. Dunk julgou que ela tivesse quarenta anos. Sob uma teia de fios de prata, seu cabelo ruivo estava preso no alto, mas a coisa mais vermelha nela era o rosto. – Minha senhora – Sor Lucas disse, quando parou diante dela e das septãs –, este cavaleiro andante afirma trazer uma mensagem de Sor Eustace Osgrey. Pode escutá-lo? – Se é o que deseja, Sor Lucas. – Ela olhou para Dunk com tanta intensidade que ele não pôde deixar de lembrar da conversa de Egg sobre feitiçaria. Não acho que essa aqui se banhe em sangue para manter sua beleza. A Viúva era forte e angulosa, com uma cabeça estranhamente pontuda que o cabelo não conseguia esconder. O nariz era muito grande e a boca, muito pequena. Tinha os dois olhos, ele ficou aliviado ao notar, mas todos os pensamentos galantes tinham abandonado Dunk. – Sor Eustace me pede para conversar com você sobre os problemas recentes na barragem. Ela pestanejou. – A... barragem, é isso? A multidão se reunia ao redor deles. Dunk podia sentir olhos pouco amistosos sobre ele. – O riacho – ele disse. – O Riacho Xadrez. Vossa senhoria construiu uma barragem nele... – Ah, tenho certeza de que não fiz isso – ela respondeu. – Ora, estive nas minhas devoções a manhã toda, sor. Dunk ouviu Sor Lucas rir. – Não quis dizer que vossa senhoria construiu a barragem com suas mãos, só que... sem a água, todas as nossas plantações vão morrer... os plebeus têm feijões e centeio nos campos, e melões. – Verdade? Gosto muito de melões. – Sua boca pequena fez uma curva feliz. – Que tipos de melões eles têm? Dunk olhou de relance, inquieto, para os rostos que o cercavam e sentiu o próprio rosto corar. Algo está errado aqui. Longo Inch está me fazendo de tolo. – Senhora, podíamos continuar nossa conversa em algum... lugar mais privado? – Algo me diz que o grande imbecil quer ir para a cama com ela! – alguém brincou, e o estrondo de gargalhadas o cercou. A senhora se encolheu para longe, meio aterrorizada, e levantou as mãos para cobrir o rosto. Uma das septãs se moveu rapidamente ao seu lado e colocou um braço protetor em seus ombros. – E o que é toda essa animação? – A voz fria e firme interrompeu os risos. – Ninguém vai dividir a piada? Sor cavaleiro, por que está incomodando minha cunhada? Era a garota que ele vira antes no treino de arco e flecha. Trazia uma aljava de flechas em um dos lados do quadril e segurava um arco longo, do seu tamanho. Ela não era muito alta. Se Dunk tinha quase dois metros, a arqueira tinha quase um metro e meio. Ele podia envolver a cintura dela com as mãos. Seu cabelo ruivo estava preso para cima, em uma trança tão longa que ultrapassava suas coxas, e tinha um queixo com uma covinha, um nariz arrebitado e sardas espalhadas nas bochechas. – Perdoe-nos, Senhora Rohanne. – Quem falava era um belo jovem senhor com o centauro Caswell bordado em seu gibão. – Esse grande imbecil tomou a Senhora Helicent por você. Dunk olhou de uma senhora para a outra. – Você é a Viúva Vermelha? – Ouviu-se dizendo, sem conseguir se controlar. – Mas você é tão... – Jovem? – A garota jogou o arco para o rapaz magrela que ele vira atirando com ela. – Acontece que tenho vinte e cinco anos. Ou era pequena que pretendia dizer? –... bonita. Era bonita. – Dunk não sabia de onde tinha tirado aquilo, mas ficou feliz de fazê- lo. Ele gostava do nariz dela e da cor louro-avermelhada de seus cabelos, e dos pequenos seios bem formados sob o justilho de couro. – Pensei que seria... quero dizer... dizem que é viúva quatro vezes, então... – Meu primeiro marido morreu quando eu tinha dez anos. Ele tinha doze, era escudeiro do meu pai, cavalgando no Campo do Capim-Vermelho. Meus maridos raramente duram muito, receio. O último morreu na primavera. Era o que sempre diziam daqueles que tinham perecido durante a Grande Praga da Primavera, dois anos atrás. Ele morreu na primavera. Dezenas de milhares morreram na primavera, entre eles um velho e sábio rei e dois jovens príncipes muito promissores. – Eu... eu sinto muito por todas as suas perdas, senhora. – Uma coisa galante, seu pateta, diga para ela uma coisa galante. – Eu quero dizer... seu vestido... – Vestido? – Ela olhou para as botas e calção, túnica de linho solta e justilho de couro. – Não estou usando vestido. – Seu cabelo, quero dizer... é macio e... – E como sabe disso, sor? Se já tivesse tocado meu cabelo, acho que eu me lembraria. – Não macio – Dunk disse, se sentindo terrível. – Vermelho, quero dizer. Seu cabelo é muito vermelho. – Muito vermelho, sor? Ah, não tão vermelho quanto seu rosto, espero. – Ela gargalhou e os espectadores gargalharam com ela. Todos, menos Sor Lucas Longo Inch. – Minha senhora – ele interrompeu –, este homem é um dos mercenários de Pousoveloz. Ele estava com Bennis do Escudo Marrom quando ele atacou nossos escavadores na barragem e marcou o rosto de Wolmer. O velho Osgrey o mandou para tratar com você. – Ele mandou, senhora. Sou chamado de Sor Duncan, o Alto. – Sor Duncan, o Opaco, é mais provável – disse um cavaleiro barbudo que usava os três raios de Leygood. Mais gargalhadas soaram. Até mesmo a Senhora Helicent tinha se recuperado o suficiente para dar uma risadinha. – A cortesia de Fosso Gelado morreu com o senhor meu pai? – a garota perguntou. Não, não uma garota, uma mulher crescida. – Como Sor Duncan veio cometer tal erro, me pergunto? Dunk deu a Inchfield um olhar perverso. – A culpa foi minha. – Foi? – A Viúva Vermelha olhou para Dunk dos pés à cabeça, embora tenha demorado mais em seu peito. – Uma árvore e uma estrela cadente. Nunca vi esse brasão de armas antes. – Ela tocou a túnica dele, traçando um galho de seu elmo com dois dedos. – E pintado, não bordado. Os dorneses pintam suas sedas, ouvi dizer, mas você parece grande demais para um dornês. – Nem todos os dorneses são pequenos, senhora. – Dunk podia sentir os dedos dela através da seda. Suas mãos eram sardentas também. Aposto que ela é toda sardenta. Sua boca estava estranhamente seca. – Passei um ano em Dorne. – Todos os carvalhos crescem tão alto lá? – ela disse, enquanto seus dedos traçavam um galho da árvore ao redor de seu coração. – Era pra ser um olmo, senhora. – Vou me lembrar. – Ela tirou a mão, solene. – O pátio é muito quente e empoeirado para uma conversa. Septão, mostre a Sor Duncan minha câmara de audiências. – Será um grande prazer, cunhada. – Nosso convidado deve estar com sede. Mande uma jarra de vinho também. – Devo? – O gordo sorriu. – Bem, se isso lhe agrada. – Eu me juntarei a vocês assim que me trocar. – Soltando o cinto e a aljava, passou-os para seu companheiro. – Quero Meistre Cerrick também. Sor Lucas, peça para ele me atender. – Eu o trarei imediatamente, minha senhora – disse Lucas, o Longo Inch. O olhar que ela deu ao castelão era frio. – Não precisa. Sei que tem muitos deveres a cumprir no castelo. Basta que mande Meistre Cerrick aos meus aposentos. – Senhora – Dunk a chamou. – Meu escudeiro está esperando nos portões. Ele pode se juntar a nós também? – Seu escudeiro? – Quando ela sorria, parecia uma garota de quinze anos, não uma mulher de vinte e cinco. Uma garota bonita, cheia de travessuras e risos. – Se lhe agradar, certamente. – Não beba o vinho, sor – Egg sussurrou para ele enquanto esperavam com o septão na câmara de audiências. O chão de pedra era coberto de juncos perfumados, e as paredes eram repletas de tapeçarias com cenas de torneios e batalhas. Dunk bufou. – Ela não precisa me envenenar – sussurrou de volta. – Ela acha que sou um grande caipira com purê de ervilhas entre as orelhas, se me entende. – Acontece que minha cunhada gosta de purê de ervilhas – disse o Septão Sefon, enquanto reaparecia com um jarro de vinho, um jarro de água e três taças. – Sim, sim, eu ouvi. Sou gordo, não surdo. – Encheu duas taças com vinho e uma com água. A terceira ele deu para Egg, que deu um longo olhar de dúvida e a deixou de lado. O septão não tomou conhecimento. – Esta é uma safra da Árvore – dizia para Dunk. – Muito boa, e o veneno dá um sabor especial. – Piscou para Egg. – Raramente experimento as uvas, mas ouvi dizer. – Deu uma taça para Dunk. O vinho era exuberante e doce, mas Dunk bebeu devagar, e só depois que o septão tinha bebido metade da sua taça em três longos goles de estalar os lábios. Egg cruzou os braços e continuou a ignorar sua água. – Ela gosta de purê de ervilha – o septão prosseguiu –, e de você também, sor. Conheço minha cunhada. Quando eu o vi pela primeira vez no pátio, meio que esperei que fosse algum pretendente, vindo de Porto Real para pedir a mão da minha senhora. Dunk franziu a testa. – Como sabia que eu era de Porto Real, septão? – As pessoas de Porto Real têm um certo jeito de falar. – O septão tomou um gole de vinho, espalhou-o pela boca, engoliu e suspirou de prazer. – Servi lá por muitos anos, atendendo ao Alto Septão no Grande Septo de Baelor. – Suspirou. – Não se reconhece a cidade desde a primavera. Os incêndios a mudaram. Um quarto das casas se foi e outro quarto está vazio. Os ratos se foram também. Essa é a coisa mais estranha. Nunca pensei em ver a cidade sem ratos. Dunk ouvira aquilo também. – Estava lá durante a Grande Praga da Primavera? – Ah, estava. Uma época terrível, sor, terrível. Homens fortes acordavam saudáveis ao romper do dia e estavam mortos ao cair da noite. Tantos morriam tão rapidamente que não havia tempo para enterrá-los. Em vez disso, eram empilhados no Poço dos Dragões e, quando os montes de cadáveres alcançavam três metros, Lorde Rivers ordenou que os piromantes os queimassem. A luz das fogueiras refletia nas janelas, como acontecia outrora, quando os dragões vivos ainda se aninhavam sob a cúpula. À noite, era possível ver o brilho por toda a cidade, o brilho verde-escuro do fogovivo. O verde ainda me assombra até os dias de hoje. Dizem que a primavera foi ruim em Lannisporto, e pior em Vilavelha, mas em Porto Real matou quatro a cada dez. Nem jovens nem velhos foram poupados, nem ricos nem pobres, nem grandes nem humildes. Nosso bom Alto Septão foi levado, a própria voz dos deuses na terra, com um terço dos Mais Devotos e quase todas as nossas irmãs silenciosas. Sua Graça, o Rei Daeron, o doce Matarys e o ousado Valarr, a Mão... ah, foi uma época terrível. No fim, metade da cidade estava rezando para o Estranho. – Pegou outra bebida. – E onde você estava, sor? – Em Dorne – Dunk falou. – Agradeça à Mãe pela misericórdia, então. – A Grande Praga da Primavera nunca chegou a Dorne, talvez porque os dorneses tenham fechado suas fronteiras e seus portos, assim como o Vale de Arryn, que também foi poupado. – Toda essa conversa sobre morte é o suficiente para afastar um homem do vinho, mas a alegria é algo difícil nesses tempos em que vivemos. A seca continua, apesar de todas as nossas orações. A mata do rei é um grande barril inflamável, e os incêndios espalham sua fúria noite e dia. Açoamargo e os filhos e Daemon Blackfyre conspiram em Tyrosh, e as lulas gigantes de Dagon Greyjoy espreitam o Mar do Poente como lobos, atacando ao sul até a Árvore. Levaram metade da riqueza da Ilha Leal, dizem, e uma centena de mulheres também. Lorde Farman está reparando suas defesas, se bem que, para mim, isso é como o homem que coloca a filha grávida em um cinto de castidade quando a barriga dela está tão grande quanto a minha. Lorde Bracken está morrendo lentamente no Tridente, e seu filho mais velho pereceu na primavera. Isso significa que Sor Otho deve sucedê-lo. Os Blackwood nunca vão aguentar Bracken, o Bruto, como vizinho. Isso significará guerra. Dunk sabia sobre a antiga inimizade entre os Blackwood e os Bracken. – O suserano deles não forçará a paz? – Ai de mim – disse o Septão Sefton. – Lorde Tully é um menino de oito anos, cercado de mulheres. Correrrio fará pouco, e o Rei Aerys fará menos ainda. A menos que algum meistre escreva um livro sobre isso, o assunto todo vai escapar da atenção real. Não é provável que Lorde Rivers deixe algum Bracken vê-lo. Se você se recorda, nossa Mão nasceu meio Blackwood. Se ele tomar qualquer atitude, será apenas para ajudar seu primo a levar o Bruto para a baía. A Mãe marcou Lorde Rivers no dia em que ele nasceu, e Açoamargo o marcou novamente no Campo do Capim-Vermelho. Dunk sabia que ele falava de Corvo de Sangue. Brynden Rivers era o nome verdadeiro da Mão. Sua mãe fora uma Blackwood, e seu pai, o Rei Aegon, o Quarto. O gordo bebeu o vinho e continuou. – Quanto a Aerys, Sua Graça se importa mais com pergaminhos antigos e profecias empoeiradas do que com senhores e leis. Ele nem se mexe para gerar um herdeiro. A rainha Aelinor reza diariamente no Grande Septo, rogando à Mãe de Cima que a abençoe com uma criança, mas mesmo assim permanece donzela. Aerys mantém seus próprios aposentos, e dizem que prefere levar um livro a qualquer mulher para a cama. – Encheu a taça novamente. – Não se engane, é este Lorde Rivers quem nos governa, com feitiços e espiões. Não há uma pessoa que se oponha a ele. O Príncipe Maekar fica amuado em Solarestival, nutrindo suas queixas contra o irmão real. O Príncipe Rhaegal é tão manso quanto louco, e suas crianças são... bem, crianças. Amigos e preferidos de Lorde Rivers ocupam todos os cargos, os senhores do pequeno conselho lambem sua mão e este novo Grande Meistre é tão impregnado em feitiçaria quanto ele. A Fortaleza Vermelha é guarnecida pelos Dentes de Corvo, e nenhum homem vê o rei sem sua permissão. Dunk se mexeu desconfortavelmente em seu assento. Quantos olhos Lorde Corvo de Sangue tem? Mil olhos e mais um. Esperava que a Mão do Rei não tivesse mil ouvidos e mais um também. Algumas coisas que o Septão Sefton dizia soavam a traição. Olhou para Egg, para ver como ele estava encarando tudo isso. O garoto lutava com toda sua força para conter a língua. O septão ficou em pé. – Minha cunhada vai demorar um pouco ainda. Como todas as grande senhoras, os primeiros dez vestidos que experimentar não vão combinar com seu humor. Aceita mais vinho? – Sem esperar uma resposta, encheu as duas taças. – A senhora me confundiu – disse Dunk, ansioso em falar sobre outro assunto. – Ela é sua irmã? – Somos todos filhos dos Sete, sor, mas fora isso... deuses, não. A Senhora Helicent era irmã de Sor Rolland Uffering, quarto marido da Senhora Rohanne, que morreu na primavera. Meu irmão era o predecessor dele, Sor Simon Staunton, que teve o grande azar de engasgar com um osso de galinha. Fosso Gelado é cheio de fantasmas, deve ser dito. Os maridos morrem e, mesmo assim, os parentes ficam, para beber o vinho de minha senhora e comer suas guloseimas, como uma praga de gordos gafanhotos-rosa vestidos em seda e veludo. – Limpou a boca. – E, mesmo assim, ela deve casar novamente, e logo. – Deve? – Dunk perguntou. – O senhor seu pai exigiu isso. Lorde Wyman queria netos para levar sua linhagem adiante. Quando ele adoeceu, tentou casá-la com Longo Inch, para que pudesse morrer sabendo que ela teria um homem forte para protegê-la, mas Rohanne o recusou. Sua senhoria teve sua vingança no testamento. Se ela permanecesse sem se casar até o segundo aniversário da morte do pai, Fosso Gelado passaria para seu primo, Wendell. Talvez você o tenha visto no pátio. Um homem baixo, com um bócio no pescoço, muito dado à flatulência. Embora eu não possa dizer nada sobre isso. Também sou amaldiçoado com excesso de gases. Seja como for, sor Wendell é ganancioso e estúpido, mas a senhora sua esposa é irmã de Lorde Rowan... e abominavelmente fértil, não se pode negar. Ela dá à luz com a mesma frequência que ele peida. Os filhos deles são tão maus quanto ele, as filhas piores, e todos eles começaram a contar os dias. Lorde Rowan confirmou o testamento, então sua senhoria tem só até a próxima lua. – Por que ela esperou tanto tempo? – Dunk se perguntou em voz alta. O septão deu de ombros. – Verdade seja dita, houve uma escassez de pretendentes. Minha cunhada não é difícil de se olhar, você já notou, e um castelo robusto e terras amplas são um acréscimo ao seu charme. Você pensaria que filhos mais jovens e cavaleiros sem terras cairiam sobre sua senhoria como moscas. Estaria errado. Os quatro maridos mortos os deixaram cautelosos, e há aqueles que dizem que ela é estéril também... embora nunca aos ouvidos dela, a menos que quisessem ver o lado de dentro de uma gaiola de corvos. Ela carregou duas crianças até o fim, um menino e uma menina, mas nenhum deles viveu para ver um dia do nome. Os poucos que não acreditam nas conversas sobre envenenamento e feitiçaria não querem problemas com Longo Inch. Lorde Wyman o encarregou, em seu leito de morte, de proteger sua filha de pretendentes indignos, que é como ele considera todos os pretendentes. Qualquer homem que pretenda ter a mão dela precisa encarar a espada dele antes. – Ele terminou o vinho e deixou a taça de lado. – Isso não quer dizer que não houve ninguém. Cleyton Caswell e Simon Leygood têm sido os mais persistentes, embora pareçam mais interessados nas terras do que na pessoa dela. Se eu fosse dado a apostas, colocaria meu ouro em Gerold Lannister. Ele ainda tem que aparecer por aqui, mas dizem que tem cabelos dourados e é rápido de raciocínio, e tem mais de um metro e oitenta... – ... e a Senhora Webber é muito ligada às cartas dele. – A senhora em questão estava parada na porta, ao lado de um jovem meistre desajeitado, com um grande nariz adunco. – Você perderia a aposta, cunhado. Gerold nunca vai deixar voluntariamente os prazeres de Lannisporto e o esplendor do Rochedo Casterly por alguma pequena propriedade. Ele tem mais influência como irmão e conselheiro de Lorde Tybolt do que jamais poderia esperar ter como meu marido. Quanto aos outros, Sor Simon precisaria vender metade das minhas terras para pagar suas dívidas, e Sor Cleyton treme como uma folha ao vento cada vez que Longo Inch se digna a olhar em sua direção. Além disso, ele tem mais beleza do que eu. E você, septão, tem a maior boca de Westeros. – Uma barriga grande exige uma boca grande – respondeu o Septão Sefton, totalmente imperturbável. – De outro modo, ela logo se torna pequena. – Você é a Viúva Vermelha? – Egg perguntou, atônito. – Sou quase tão alto quanto você! – Outro garoto fez o mesmo comentário há seis meses. Eu o mandei para a mesa de estiramento para que ficasse mais alto. – Quando a Senhora Rohanne se acomodou em sua cadeira de espaldar alto no estrado, puxou a trança por sobre o ombro esquerdo. Era tão longa que ficou enrolada em seu colo, como um gato adormecido. – Sor Duncan, eu não devia tê-lo provocado no pátio, quando estava se esforçando tanto para ser gracioso. É só que ficou tão enrubescido... não havia garotas para provocá-lo no vilarejo onde cresceu até ficar tão alto? – O vilarejo era Porto Real. – Ele não mencionou a Baixada das Pulgas. – Havia garotas, mas... – O tipo de provocação que acontecia na Baixada das Pulgas algumas vezes envolvia cortar um dedo do pé. – Imagino que tinham medo de provocá-lo. – A Senhora Rohanne acariciou sua trança. – Não tenho dúvidas de que ficavam assustadas com seu tamanho. Não pense mal da Senhora Helicent, lhe peço. Minha cunhada é uma criatura simplória, mas não há mal dentro dela. Por toda sua piedade, ela não poderia se vestir sem as septãs. – Não foi culpa dela. O engano foi meu. – Você mente de modo mais galante. Sei que foi Sor Lucas. Ele é um homem de humor cruel, e você o ofendeu logo que ele o viu. – Como? – Dunk disse, intrigado. – Nunca causei mal a ele. Ela sorriu um sorriso que o fez desejar que ela fosse mais clara. – Eu o vi parado ao lado dele. É um palmo mais alto, ou quase isso. Já faz muito tempo desde que Sor Lucas encontrou alguém para quem não tivesse que olhar para baixo. Quantos anos tem, sor? – Quase vinte, se for do seu agrado, senhora. – Dunk gostava de ter vinte, embora seria mais provável que fosse um ano mais jovem, talvez dois. Ninguém sabia com certeza, muito menos ele. Devia ter tido uma mãe e um pai como todo mundo, mas nunca os conheceu, nem mesmo sabia seus nomes, e ninguém na Baixada das Pulgas jamais se importou muito com quando ele nascera ou de quem. – É tão forte quanto aparenta? – Quão forte eu aparento ser, senhora? – Ah, forte o bastante para incomodar Sor Lucas. Ele é meu castelão, embora não por escolha minha. Como Fosso Gelado, ele é um legado do meu pai. Foi armado cavaleiro em alguma batalha, Sor Duncan? Seu modo de falar sugere que não nascera de sangue nobre, perdoa-me dizer. Nasci do sangue da sarjeta. – Um cavaleiro andante chamado Sor Arlan de Centarbor me pegou como seu escudeiro quando eu era apenas um garoto. Ele me ensinou a cavalaria e as artes da guerra. – E esse mesmo Sor Arlan o armou cavaleiro? Dunk remexeu os pés. Viu que uma de suas botas estava meio desamarrada. – Ninguém mais faria isso. – Onde está Sor Arlan agora? – Morreu. – Ergueu os olhos. Podia amarrar a bota mais tarde. – Eu o enterrei em uma encosta. – Ele caiu corajosamente em batalha? – Era época de chuva. Ele pegou um resfriado. – Velhos são frágeis, eu sei. Aprendi isso com meu segundo marido. Eu tinha treze anos quando nos casamos. Ele faria cinquenta e cinco no próximo dia do seu nome, se tivesse vivido tempo bastante para isso. Quando ele estava há meio ano enterrado, eu lhe dei um filho, mas o Estranho o levou de mim também. O septão disse que o pai o queria ao seu lado. O que acha, sor? – Bem – Dunk falou, hesitante –, pode ser, senhora. – Bobagem – ela disse. – O menino nasceu muito fraco. Uma coisinha tão pequena. Mal tinha forças o suficiente para se alimentar. Mesmo assim, se os deuses deram ao pai dele cinquenta e cinco anos, seria de imaginar que garantiriam mais do que três dias para o filho. – Seria. – Dunk sabia pouco e ainda menos sobre os deuses. Ia ao septo de vez em quanto e rezava para o Guerreiro dar força para seus braços, mas, fora isso, deixava os Sete em paz. – Sinto muito que seu Sor Arlan tenha morrido – ela disse. – E sinto mais ainda que tenha ficado a serviço de Sor Eustace. Nem todos os velhos são iguais, Sor Duncan. Você faria bem em voltar para sua casa em Centarbor. – Não tenho outra casa além daquela para a qual juro minha espada. – Dunk nunca vira Centarbor; nem mesmo era capaz de dizer se ficava na Campina. – Jure sua espada aqui, então. Os tempos são incertos. Preciso de cavaleiros. Você parece ter um apetite saudável, Sor Duncan. Quantas galinhas consegue comer? Em Fosso Gelado, vai se encher de carne rosada quente e tortas de frutas doces. Seu escudeiro parece precisar de sustento também. Está tão magro que todo seu cabelo caiu. Faremos com que divida um aposento com outros garotos de sua idade. Ele vai gostar. Meu mestre de armas pode treiná-lo nas artes da guerra. – Eu o treino – Dunk falou, defensivamente. – E quem mais? Bennis? O velho Osgrey? As galinhas? Houve dias em que Dunk colocou Egg para perseguir as galinhas. Isso o ajuda a ficar mais rápido, ele pensou, mas sabia que, se dissesse isso, ela daria risada. Ela o estava distraindo, com o nariz arrebitado e as sardas. Dunk tinha que se lembrar do motivo pelo qual Sor Eustace o mandara ali. – Minha espada é juramentada ao meu senhor de Osgrey, senhora – disse. – E é assim que vai ficar. – Então que seja, sor. Vamos falar de assuntos menos agradáveis. – A Senhora Rohanne deu um puxão em sua trança. – Nós não aceitamos ataques contra Fosso Gelado ou seu povo. Então me diga por que não devo costurá-lo em um saco. – Vim negociar – ele a lembrou – e bebi seu vinho. – O gosto ainda permanecia em sua boca, rico e doce. Até agora não o envenenara. Talvez fosse o vinho que o tornava ousado. – E você não tem um saco grande o bastante para mim. Para alívio dele, a piada de Egg a fez sorrir. – Tenho vários que são grandes o bastante para Bennis, no entanto. Meistre Cerrick diz que o rosto de Wolmer foi cortado quase até o osso. – Sor Bennis perdeu a cabeça com o homem, senhora. Sor Eustace me mandou aqui para pagar o preço de sangue. – Preço de sangue? – ela gargalhou. – Ele é um velho, eu sei, mas não tinha percebido o quão velho ele é. Ele acha que estamos vivendo na Era dos Heróis, quando a vida de um homem estava fadada a não valer mais do que um saco de prata? – O escavador não morreu, senhora – Dunk lhe lembrou. – Ninguém foi morto, que eu tenha visto. O rosto dele foi cortado, só isso. Os dedos dela dançavam preguiçosamente ao longo da trança. – Quanto Sor Eustace considera que a bochecha de Wolmer vale, posso saber? – Um veado de prata. E três para a senhora. – Sor Eustace estabeleceu um preço sovina pela minha honra, embora três veados de prata sejam melhores do que três galinhas, eu lhe garanto. Ele faria melhor em me entregar Bennis para que eu possa castigá-lo. – Isso envolveria o saco que mencionou? – Pode ser. – Ela enrolou a trança em volta da mão. – Osgrey pode ficar com sua prata. Só sangue pode pagar por sangue. – Bem – Dunk comentou –, pode ser como diz, senhora, mas por que não chama o homem que Bennis cortou e lhe pergunta se ele prefere um veado de prata ou Bennis em um saco? – Ah, ele escolheria a prata, se não pudesse ter ambos. Não duvido disso, sor. A escolha não é dele. Agora, isso diz respeito ao leão e à aranha, não à bochecha de um camponês. É Bennis quem eu quero, e Bennis quem eu terei. Ninguém entra em minhas terras, machuca um dos meus e escapa para rir disso. – Vossa Senhoria entrou nas terras de Pousoveloz e feriu um dos homens de Sor Eustace – Dunk disse, sem parar para pensar. – Foi? – Ela puxou a trança novamente. – Se está falando do ladrão de ovelhas, o homem tinha má fama. Reclamei duas vezes com Osgrey e, mesmo assim, ele não fez nada. Não pedi a terceira. A lei do rei me garante o poder do fosso e da forca. Foi Egg quem respondeu. – Em suas próprias terras – o garoto insistiu. – A lei do rei dá aos senhores o poder do fosso e da forca em suas próprias terras. – Garoto esperto – ela falou. – Se sabe tanto, também deve saber que cavaleiros com terras não têm o direito de punir sem a permissão de seu suserano. Sor Eustace detém Pousoveloz de Lorde Rowan. Bennis rompeu a paz do rei quando derramou sangue, e deve responder por isso. – Ela olhou para Dunk. – Se Sor Eustace me entregar Bennis, cortarei o nariz dele, e isso acaba por aí. Se eu tiver que ir atrás dele, não posso prometer nada. Dunk teve uma sensação de mal-estar súbito na boca do estômago. – Direi a ele, mas ele não entregará Sor Bennis. – Hesitou. – A barragem foi a causa de todos os problemas. Se vossa senhoria consentir em derrubá-la... – Impossível – declarou o jovem meistre ao lado da Senhora Rohanne. – Fosso Gelado mantém vinte vezes mais plebeus do que Pousoveloz. Sua senhoria tem campos de trigo, milho e cevada, todos morrendo pela seca. Tem uma meia dúzia de pomares, maçãs, damascos e três tipos de peras. Tem vacas prestes a parir, quinhentas cabeças de ovelhas de cara preta e cria os melhores cavalos da Campina. Temos dúzias de éguas com potros. – Sor Eustace tem ovelhas também – Dunk comentou. – Tem melões nos campos, feijões e cevada, e... – Vocês estão pegando água para o fosso! – Egg disse em voz alta. Eu estava chegando ao fosso, Dunk pensou. – O fosso é essencial para as defesas de Fosso Gelado – o meistre insistiu. – Você sugere que a Senhora Rohanne fique aberta ao ataque, em tempos incertos como estes? – Bem – Dunk falou lentamente –, um fosso seco ainda é um fosso. E a senhora tem muralhas fortes, com muitos homens para defendê-las. – Sor Duncan – a Senhora Rohanne disse –, eu tinha dez anos de idade quando o dragão negro se ergueu. Implorei ao meu pai para não se colocar em risco, ou pelo menos para deixar meu marido. Quem me protegeria se ambos se fossem? Então ele me levou até o alto das muralhas e apontou os pontos fortes de Fosso Gelado. “Mantenha-os fortalecidos”, ele disse, “e eles a manterão em segurança. Se cuidar de suas defesas, nenhum homem poderá fazer mal a você.” A primeira coisa que ele apontou foi o fosso. – Ela acariciou a bochecha com a ponta da trança. – Meu primeiro marido morreu no Campo do Capim-Vermelho. Meu pai me encontrou outros, mas o Estranho os levou também. Não confio mais nos homens, não importa o quão amplos possam parecer. Confio na pedra, no aço e na água. Eu confio em fossos, sor, e o meu não vai ficar seco. – O que seu pai disse foi certo e bom – Dunk comentou –, mas isso não lhe dá o direito de pegar a água de Osgrey. Ela puxou a trança. – Suponho que Sor Eustace tenha lhe dito que o riacho era dele. – Por mil anos – Dunk confirmou. – É chamado Riacho Xadrez. Isso é claro. – Então que seja. – Ela puxou novamente; uma, duas, três vezes. – Como o rio é chamado Vago, embora os Manderly tenham deixado suas margens há mil anos. Jardim de Cima ainda é Jardim de Cima, ainda que o último Gardener tenha morrido no Campo de Fogo. Rochedo Casterly fervilha de Lannister, e em nenhum lugar um Casterly é encontrado. O mundo muda, sor. Esse Riacho Xadrez nasce na Colina Ferradura, que era inteiramente minha quando olhei pela última vez. A água é minha também. Meistre Cerrick, mostre a ele. O meistre desceu do estrado. Não devia ser muito mais velho do que Dunk, mas sua túnica cinza e a corrente em volta do pescoço lhe davam um ar de sabedoria sombria que desmentiam seus anos. Em suas mãos estava um velho pergaminho. – Veja você mesmo, sor – ele disse, enquanto o desenrolava e o oferecia a Dunk. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo. Sentiu as bochechas corarem de novo. Cautelosamente, pegou o pergaminho do meistre e fez uma careta para a escrita. Nem uma palavra era inteligível para ele, mas conhecia o selo de cera sob a assinatura elaborada; o dragão de três cabeças da Casa Targaryen. O selo do rei. Estava olhando para um decreto real de algum tipo. Dunk moveu a cabeça de lado a lado, para que pensassem que estava lendo. – Há uma palavra aqui que não consigo decifrar – resmungou, depois de um momento. – Egg, venha dar uma olhada, você tem olhos mais afiados do que os meus. O garoto disparou para o lado dele. – Qual palavra, sor? – Dunk apontou. – Essa aqui? Ah. – Egg leu rapidamente, então ergueu os olhos para Dunk e assentiu levemente. O riacho é dela. Ela tem um papel. Dunk sentiu como se tivesse sido apunhalado no estômago. O selo do próprio rei. – Isso... deve haver algum engano. Os filhos do velho morreram a serviço do rei. Por que Sua Graça tiraria seu riacho? – Se o rei Daeron fosse um homem menos misericordioso, ele teria perdido a cabeça também. Por um instante, Dunk ficou perdido. – O que quer dizer? – Ela quer dizer – Meistre Cerrick disse – que Sor Eustace Osgrey é um rebelde e um traidor. – Sor Eustace escolheu o dragão negro em vez do vermelho, na esperança de que um Rei Blackfyre pudesse restaurar as terras e os castelos que os Osgrey tinham perdido sob o reinado Targaryen – a Senhora Rohanne explicou. – Principalmente, ele queria Fosso Gelado. Os filhos dele pagaram pela traição com sangue. Quando ele trouxe os ossos dos rapazes para casa e entregou a filha para os homens do rei como refém, sua esposa se jogou do alto da torre de Pousoveloz. Sor Eustace lhe contou isso? – O sorriso dela era triste. – Não, não acho que tenha contado. – O dragão negro. – Você jurou sua espada para um traidor, pateta. Você comeu o pão de um traidor e dormiu sob o teto de um traidor. – Senhora – ele disse, tateando –, o dragão negro... foi há quinze anos. Isso é agora, e há uma seca. Mesmo que tenha sido um rebelde antigamente, Sor Eustace ainda precisa de água. A Viúva Vermelha se levantou e alisou a saia. – Melhor que reze por chuva, então. Foi quando Dunk se lembrou das palavras de despedida de Osgrey no bosque. – Se não lhe der uma parte da água para seu próprio bem, faça isso pelo filho dele. – O filho dele? – Addam. Ele serviu aqui como pajem e escudeiro do seu pai. O rosto da Senhora Rohanne era uma pedra. – Aproxime-me. Ele não sabia o que mais fazer além de obedecer. O estrado acrescentava quase meio metro à altura dela, mesmo assim, Dunk era mais alto. – Ajoelhe-se – ela disse. Ele se ajoelhou. Ela lhe deu um tapa com toda sua força, e era muito mais forte do que parecia. A bochecha dele ardeu, e ele sentiu o gosto de sangue na boca, de um lábio cortado, mas ela não o machucou de verdade. Por um momento, tudo o que Dunk pôde pensar foi em agarrá-la pela longa trança ruiva, colocá-la no colo e lhe dar uns tapas no traseiro, como alguém faria com uma criança mimada. Se eu fizer isso, no entanto, ela vai gritar e vinte cavaleiros entrarão aqui para me matar. – Ousa apelar para mim em nome de Addam? – As narinas dela se abriram. – Retire-se de Fosso Gelado, sor. Imediatamente. – Eu nunca pretendi... – Vá, ou eu encontrarei um saco grande o bastante para você, e eu mesma o costurarei. Diga a Sor Eustace para me trazer Bennis do Escudo Marrom pela manhã, ou eu mesma irei atrás dele com fogo e espada. Você me entendeu? Fogo e espada! Septão Sefton pegou Dunk pelo braço e o tirou rapidamente da sala. Egg os seguiu de perto. – Isso foi muito insensato, sor – o gordo septão sussurrou, levando-os até a escada. – Muito insensato. Mencionar Addam Osgrey... – Sor Eustace me disse que ela gostava muito do garoto. – Gostava? – O septão bufou pesadamente. – Ela amava o garoto, e ele a ela. Nunca passou de um beijo ou dois, mas... foi por Addam que ela chorou após o Campo do Capim-Vermelho, não pelo marido que mal conheceu. Ela culpa Sor Eustace pela morte dele, e corretamente. O garoto tinha doze anos. Dunk sabia o que era ter uma ferida. Sempre que alguém falava da Campina de Vaufreixo, ele pensava nos três bons homens que morreram para salvar seu pé, e nunca deixava de doer. – Diga a senhora que não foi meu desejo magoá-la. Peça-lhe perdão. – Farei tudo o que puder, sor – o Septão Sefton assegurou –, mas diga a Sor Eustace para trazer Bennis para ela, e rápido. Caso contrário, vai ficar difícil para ele. Vai ficar muito difícil. Foi só depois que as muralhas e torres de Fosso Gelado desapareceram no oeste atrás deles que Dunk se virou para Egg e perguntou: – Que palavras estavam escritas naquele papel? – Era uma garantia de direitos, sor. Para Lorde Wyman Webber, do rei. Pelos serviços leais dele na rebelião recente, Lorde Wyman e seus descendentes tinham garantidos todos os direitos sobre o Riacho Xadrez, desde a nascente na Colina Ferradura até a foz, no Lago Frondoso. Também diz que Lorde Wyman e seus descendentes têm o direito de caçar veados vermelhos, javalis e coelhos no Bosque de Wat sempre que desejarem, e de cortar vinte árvores do bosque a cada ano. – O garoto limpou a garganta. – A garantia é só por um tempo, no entanto. O papel diz que, se Sor Eustace morrer sem um herdeiro do sexo masculino do seu sangue, Pousoveloz reverterá para a coroa, e os privilégios de Lorde Webber acabarão. Eles foram Marechais da Fronteira Norte por mil anos. – Tudo o que deixaram para o velho foi uma torre na qual morrer. – E sua cabeça – Egg comentou. – Sua Graça deixou a cabeça dele, sor. Mesmo ele sendo um rebelde. Dunk deu uma olhada no menino. – Você teria tirado isso dele? Egg teve que pensar a respeito. – Algumas vezes, na corte, eu servia no pequeno conselho do rei. Eles costumavam brigar por causa disso. Tio Baelor dizia que a clemência era melhor quando se lidava com um adversário honrado. Se um homem derrotado acredita que será perdoado, ele vai abaixar a espada e dobrar o joelho. Caso contrário, ele lutará até a morte, e matará mais homens leais e inocentes. Mas Lorde Corvo de Sangue dizia que, quando você perdoa rebeldes, só está plantando sementes para a próxima rebelião. – A voz dele era cheia de dúvidas. – Por que Sor Eustace se levantou contra o Rei Daeron? Ele era um bom rei, todo mundo diz isso. Trouxe Dorne para o reino e fez dos dorneses nossos amigos. – Você teria que perguntar a Sor Eustace, Egg. – Dunk achava que sabia a resposta, mas não era a que o garoto gostaria de ouvir. Ele queria um castelo com um leão no portão de entrada, mas tudo o que conseguiu foram túmulos entre as amoreiras. Quando alguém jurava a espada para um homem, prometia servir e obedecer, lutar por ele, se necessário, não se intrometer em seus assuntos nem questionar sua lealdade... mas Sor Eustace o fizera de tolo. Ele disse que os filhos morreram lutando pelo rei, e me vez acreditar que o riacho era dele. A noite os pegou no Bosque de Wat. Aquilo foi culpa de Dunk. Devia ter ido direto para casa pelo caminho que vieram, mas, em vez disso, virou para norte para dar outra olhada na barragem. Ele chegou a pensar em derrubar a coisa toda com as próprias mãos. Mas os Sete e Sor Lucas Longo Inch provaram não ser tão obsequiosos. Quando Dunk e Egg chegaram à barragem, encontraram-na guardada por um par de besteiros com emblemas da aranha costurados em seus justilhos. Um estava sentado com os pés descalços na água roubada. Dunk poderia tê-lo estrangulado alegremente apenas por isso, mas o homem os ouviu chegando e rapidamente pegou sua besta. Seu companheiro, ainda mais rápido, engatilhou a arma e se preparou. O melhor que Dunk pôde fazer foi olhar para eles ameaçadoramente. Depois disso, não havia mais nada a fazer além de refazer seus passos. Dunk não conhecia essas terras tão bem quanto Sor Bennis; teria sido humilhante se perder em um bosque tão pequeno quanto o de Wat. Quando finalmente chegaram ao outro lado do riacho, o sol estava baixo no horizonte e as primeiras estrelas surgiram, juntamente com nuvens de cupins. Entre as altas árvores negras, Egg encontrou a língua novamente.
– Sor? Aquele septão gordo disse que meu pai fica amuado em Solarestival. – Palavras são vento. – Meu pai não fica amuado. – Bem – Dunk comentou –, ele devia. Você fica amuado. – Eu não, sor. – Franziu o cenho. – Fico? – Um pouco. Mas não com muita frequência. De outro modo, eu lhe daria um tapão na orelha mais vezes do que eu dou. – Você me deu um tapão na orelha no portão. – Aquilo foi meio tapão, na melhor das hipóteses. Se eu lhe der um tapão inteiro, você saberá. – A Viúva Vermelha deu um tapão inteiro em você. Dunk tocou o lábio inchado. – Não precisa soar tão deliciado com isso. – Ninguém deu um tapão na orelha do seu pai, no entanto. Talvez por isso o Príncipe Maekar seja como é. – Quando o rei nomeou Lorde Corvo de Sangue sua Mão, o senhor seu pai se recusou a fazer parte do conselho e partiu de Porto Real para sua própria sede – ele relembrou Egg. – Está em Solarestival há um ano inteiro mais metade de outro. Como chama isso, além de “ficar amuado”? – Chamo isso de ficar irritado – Egg declarou com arrogância. – Sua Graça devia ter feito de meu pai sua Mão. Ele é seu irmão, e o melhor comandante em batalha no reino desde que tio Baelor morreu. Lorde Corvo de Sangue não é nem mesmo um lorde de verdade, isso é só algum tipo de cortesia estúpida. Ele é um feiticeiro, e ainda de baixo nascimento. – Nascimento bastardo, não baixo nascimento. – Corvo de Sangue podia não ser um lorde de verdade, mas era nobre de ambos os lados. Sua mãe fora uma das várias amantes do Rei Aeron, o Indigno. Os bastardos de Aegon tinham sido banidos dos Sete Reinos desde que o velho rei morrera. Ele os legitimara em seu leito de morte; não só os Grandes Bastardos, como Corvo de Sangue, Açoamargo e Daemon Blackfyre, cujas mães eram senhoras, mas até os menos importantes, que gerara com putas e vadias de tavernas, filhas de comerciantes, donzelas de pantomimeiros e cada camponesa bonita sobre a qual teve a chance de por o olho. Fogo e Sangue eram as palavras da Casa Targaryen, mas certa vez Dunk ouvira Sor Arlan dizer que as de Aegon deviam ter sido Lave-a e traga-a para minha cama. – O Rei Aegon deixou Corvo de Sangue limpo da bastardia – ele recordou Egg. – E fez o mesmo com o restante deles. – O velho Alto Septão disse para meu pai que as leis do rei são uma coisa, e que as leis dos deuses são outra – o garoto respondeu, teimoso. – Filhos legítimos são gerados em um leito nupcial e abençoados pelo Pai e pela Mãe, mas bastardos nascem da luxúria e da fraqueza, ele disse. O Rei Aegon decretou que seus bastardos não eram bastardos, mas não podia mudar a natureza deles. O Alto Septão dizia que todos os bastardos nascem para trair... Daemon Blackfyre, Açoamargo e até Corvo de Sangue. Lorde Rivers era mais esperto do que os outros dois, ele dizia, mas no fim também provaria ser um traidor. O Alto Septão aconselhou meu pai a nunca confiar nele, nem em outros bastardos, grandes ou pequenos. Nascidos para trair, Dunk pensou. Nascidos da luxúria e da fraqueza. Nunca se deve confiar neles, grandes ou pequenos. – Egg – ele falou –, já pensou que eu posso ser um bastardo? – Você, sor? – Aquilo pegou o menino de surpresa. – Você não é. – Posso ser. Nunca conheci minha mãe, ou soube o que foi feito dela. Talvez eu tenha nascido grande demais e a matado. Mais provável que ela fosse alguma puta ou garota de taverna. Não se encontram senhoras bem-nascidas na Baixada das Pulgas. E se ela chegou a se casar com meu pai... bem, o que aconteceu com ele? – Dunk não gostava de lembrar de sua vida antes de Sor Arlan o ter encontrado. – Havia uma casa de pasto em Porto Real onde eu costumava vender ratos, gatos e pombos para o guisado. O cozinheiro sempre afirmou que meu pai era algum ladrão ou larápio. “É provável que eu o tenha visto enforcado”, ele costumava me dizer, “mas talvez só o tenham mandado para a Muralha.” Quando era escudeiro de Sor Arlan, eu perguntava para ele se não podíamos ir naquele caminho algum dia, para pegar serviço em Winterfell ou em algum outro castelo nortenho. Eu tinha essa ideia de que, se conseguisse chegar à Muralha, talvez encontrasse algum velho, um homem realmente alto que se parecesse comigo. No entanto, nunca fomos. Sor Arlan dizia que não havia sebes no norte e que todas as florestas eram cheias de lobos. – Ele negou com a cabeça. – Resumindo, é provável que você seja escudeiro de um bastardo. Pela primeira vez, Egg não tinha nada a dizer. A escuridão se aprofundava ao redor deles. Vaga-lumes se moviam lentamente pelas árvores; suas luzinhas eram como muitas estrelas vagantes. Havia estrelas no céu também, mais estrelas do que qualquer homem conseguiria contar, mesmo se vivesse até ficar tão velho quanto o Rei Jaehaerys. Dunk precisava só erguer os olhos para encontrar amigos conhecidos: o Garanhão e a Porca, a Coroa do Rei e a Lanterna da Velha, a Galé, o Fantasma e a Donzela da Lua. Mas havia nuvens ao norte, e o olho azul do Dragão de Gelo estava escondido dele, o olho azul que apontava para o norte. A lua tinha nascido quando chegaram a Pousoveloz, escura e alta no topo da colina. Uma pálida luz amarela se derramava pelas janelas superiores da torre, ele viu. Na maior parte das noites, Sor Eustace ia para a cama assim que jantava, mas não esta noite, pelo que parecia. Está esperando por nós, Dunk sabia. Bennis do Escudo Marrom os esperava também. Encontraram-no sentado nos degraus da torre, mastigando folhamarga e amolando sua espada longa à luz da lua. O ruído lento da pedra no metal percorria um longo caminho. Por mais que Sor Bennis negligenciasse suas roupas e a si mesmo, mantinha suas armas em ordem. – O pateta voltou – Bennis disse. – Eu estava amolando meu aço para resgatá-lo daquela Viúva Vermelha. – Onde estão os homens? – Buco e Wat Molhado estão no telhado de vigia, caso a viúva apareça. O resto se arrastou para a cama, choramingando. Estão doloridos como o pecado. Trabalhei duro com eles. Tirei um pouco de sangue daquele simplório grande, só para deixá-lo louco. Ele luta melhor quando está louco. – Deu seu sorriso marrom e vermelho. – Belo lábio sangrando você tem. Da próxima vez, não caia nas pedras. O que a mulher disse? – Ela pretende ficar com a água, e quer você também, por ter cortado aquele escavador na barragem. – Achei que ela fosse querer – Bennis cuspiu. – Muito incômodo por um camponês qualquer. Ele devia me agradecer. Mulheres gostam de homens com cicatrizes. – Não vai se incomodar se ela cortar seu nariz, então. – Que se foda. Se eu quisesse meu nariz cortado, eu mesmo o cortaria. – Apontou com o polegar para cima. – Vai encontrar Sor Inútil em seus aposentos, pensando no quão grande ele costumava ser. Egg falou. – Ele lutou pelo dragão negro. Dunk teria dado um tapão no garoto, mas o cavaleiro marrom só gargalhou. – Claro que sim. Olhe para ele. Parece o tipo que escolhe o lado vencedor? – Não mais do que você. Caso contrário, não estaria aqui conosco. – Dunk se virou para Egg. – Cuide de Trovão e de Meistre e depois junte-se a nós. Quando Dunk apareceu na porta, o velho cavaleiro estava sentado ao lado da lareira, em seu roupão de dormir, embora não houvesse fogo aceso. Estava com a taça de seu pai na mão, uma pesada taça de prata que fora feita para algum Lorde Osgrey de antes da Conquista. Um leão xadrez adornava o cálice, feito de escamas de jade e ouro, embora algumas das escamas de jade estivessem faltando. Ao ouvir os passos de Dunk, o velho cavaleiro levantou os olhos e pestanejou, como um homem despertando de um sonho. – Sor Duncan, você voltou. Será que vê-lo fez Lucas Inchfield se deter, sor? – Não que eu tenha visto, senhor. É mais provável que o tenha deixado irado. – Dunk lhe contou o melhor que pôde, embora omitisse a parte sobre a Senhora Helicent, que fazia dele um completo tolo. Teria deixado de lado o tapão também, mas seu lábio cortado estava inchado duas vezes o tamanho normal, e Sor Eustace não deixaria de notar. Quando percebeu, o velho franziu o cenho. – Seu lábio... Dunk o tocou cautelosamente. – Sua senhoria me deu um tapa. – Ela bateu em você? – A boca dele abriu e fechou. – Ela bateu no meu enviado, que foi até ela sob o estandarte do leão xadrez? Ela ousou colocar as mãos em sua pessoa? – Só uma mão, sor. Parou de sangrar antes que deixássemos o castelo. – Ele fechou a mão em um punho. – Ela quer Sor Bennis, não sua prata, e não vai derrubar a barragem. Ela me mostrou um pergaminho com alguns escritos nele, e o selo do próprio rei. Lá diz que o riacho é dela. E... – ele hesitou. – Ela disse que você é... que você se... – ... ergueu com o dragão negro? – Sor Eustace pareceu se afundar. – Temi que ela fizesse isso. Se desejar deixar meus serviços, não o deterei. – O velho cavaleiro olhou para a taça, embora Dunk não pudesse dizer o que estava vendo. – Você me disse que seus filhos morreram lutando pelo rei. – E foi o que aconteceu. O rei legítimo, Daemon Blackfyre. O Rei que Ostentava a Espada. – O bigode do velho estremeceu. – Os homens do dragão vermelho chamavam a si mesmos de legalistas, mas nós, que escolhemos o negro, éramos leais do mesmo jeito. Embora agora... todos os homens que marcharam ao meu lado para colocar o Príncipe Daemon no Trono de Ferro desapareceram como orvalho da manhã. Talvez eu tenha sonhado com eles. Ou, mais provável, Lorde Corvo de Sangue e seus Dentes de Corvo colocaram medo neles. Não podem estar todos mortos. Dunk não pode negar a verdade daquilo. Até aquele momento, nunca havia conhecido um homem que lutara pelo Pretendente. Devo ter conhecido, no entanto. Havia milhares deles. Metade do reino era pelo dragão vermelho, e metade pelo negro. – Ambos os lados lutaram corajosamente, Sor Arlan sempre disse. – Ele achou que o velho cavaleiro iria querer ouvir aquilo. Sor Eustace agarrou a taça de vinho com as duas mãos. – Se Daemon tivesse cavalgado sobre Gwayne Corbray... se Bola de Fogo não tivesse sido morto na véspera da batalha... se Hightower, Tarbeck, Oakheart e Butterwell tivessem nos enviado todas as suas forças, em vez de tentar manter um pé em cada campo... se Manfred Lothston tivesse se provado verdadeiro, em vez de traidor... se tempestades não tivessem atrasado a frota de Lorde Bracken com os besteiros de Myr... se Dedoligeiro não tivesse sido pego com os ovos de dragão roubados... tantos ses, sor... e qualquer um teria feito diferença, teria virado o jogo. Então nós poderíamos nos chamar de legalistas, e os dragões vermelhos seriam lembrados como homens que lutaram para manter o usurpador Daeron, o Falso Herdeiro, sobre o trono roubado e falharam. – Pode ser que sim, senhor – Dunk comentou. – Mas as coisas foram do jeito que foram. Foi há muitos anos, e vocês foram perdoados. – Sim, fomos perdoados. Desde que dobrássemos o joelho e lhe déssemos um refém para garantir nossa lealdade futura, Daeron perdoaria os traidores e rebeldes. – A voz dele estava amarga. – Comprei minha cabeça de volta com a vida da minha filha. Alysanne tinha sete anos quando a levaram para Porto Real, e vinte quando morreu, uma irmã silenciosa. Fui uma vez a Porto Real, para vê-la, e ela sequer falou comigo, seu próprio pai. A misericórdia de um rei é um presente envenenado. Daeron Targaryen me deixou vivo, mas levou meu orgulho, sonhos e honra. – Suas mãos tremiam, e o vinho espirrou vermelho em seu colo, mas o velho não pareceu notar. – Eu devia ter ido com Açoamargo para o exílio, ou morrido ao lado dos meus filhos e do meu doce rei. Teria sido uma morte digna de um leão xadrez, descendente de tantos senhores orgulhosos e guerreiros poderosos. A misericórdia de Daeron me fez menor. Em seu coração, o dragão negro nunca morreu, Dunk percebeu. – Senhor? Era a voz de Egg. O garoto entrara enquanto Sor Eustace falava de sua morte. O velho cavaleiro piscou para ele como se o visse pela primeira vez. – Sim, rapaz? O que é? – Se me permite... a Viúva Vermelha disse que o senhor se rebelou para ficar com o castelo dela. Isso não é verdade, é? – O castelo? – Ele pareceu confuso. – Fosso Gelado... Fosso Gelado me foi prometido por Daemon, sim, mas... não foi pelo ganho, não... – Então por quê? – Egg perguntou. – Por quê? – Sor Eustace franziu o cenho. – Por que se tornou um traidor, se não foi só pelo castelo? Sor Eustace olhou para Egg por um longo tempo antes de responder. – Você é só um menino. Não entenderia. – Bem – Egg falou –, eu poderia. – Traição... é só uma palavra. Quando dois príncipes lutam por uma cadeira onde só um homem pode se sentar, tanto grandes senhores quanto homens do povo precisam escolher. E, quando a batalha acaba, os vitoriosos vão ser aclamados como homens leais e verdadeiros, enquanto os que foram derrotados serão conhecidos para sempre como rebeldes e traidores. Esse foi meu destino. Egg pensou naquilo por um momento. – Sim, meu senhor. Só que... o Rei Daeron era um bom homem. Por que escolheu Daemon? – Daeron... – Sor Eustace quase arrastou a palavra, e Dunk percebeu que o velho estava meio bêbado. – Daeron era esguio e de ombros caídos, com uma barriguinha que balançava quando ele caminhava. Daemon andava ereto e orgulhoso, e seu abdome era tão reto e duro quanto um escudo de carvalho. E ele lutava. Com um machado, uma lança ou um mangual, era tão bom quanto qualquer cavaleiro que já vi, mas, com a espada, era o próprio Guerreiro. Quando o Príncipe Daemon estava com a Blackfyre nas mãos, não havia homem páreo para ele... nem Ulrick Dayne com a Alvorada, não, nem mesmo o Cavaleiro do Dragão com a Irmã Negra. É possível conhecer um homem por seus amigos, Egg. Daeron se cercava de meistres, septãos e cantores. Sempre havia mulheres sussurrando em seu ouvido, e a corte estava cheia de dorneses. Como não, se ele levara uma mulher dornesa para sua cama e vendera a própria doce irmã para o Príncipe de Dorne, embora fosse Daemon quem ela amava? Daeron tinha o mesmo nome do Jovem Dragão, mas quando sua esposa dornesa lhe deu um filho, ele chamou a criança de Baelor, como o rei mais fraco que já se sentou no Trono de Ferro. Daemon, no entanto... Daemon não era mais devoto do que um rei precisa ser, e todos os grandes cavaleiros do reino se reuniam ao seu redor. Convém a Lorde Corvo de Sangue que os nomes de todos eles sejam esquecidos, então ele proibiu que cantássemos sobre eles, mas eu me lembro. Robb Reyne, Gareth, o Cinza, Sor Aubrey Ambrose, Lorde Gormon Peake, o Negro Byren Flowers, Presa Vermelha, Bola de Fogo... Açoamargo! Eu lhe pergunto, já houve uma companhia tão nobre, tal rol de heróis? Por quê, rapaz? Você me pergunta por quê? Porque Daemon era o melhor homem. O velho rei viu isso também. Ele deu a espada a Daemon. Blackfyre, a espada de Aegon, o Conquistador, a lâmina que todo rei Targaryen empunhou desde a Conquista... ele colocou a espada na mão de Daemon, no dia em que o sagrou cavaleiro, um garoto de doze anos. – Meu pai diz que foi porque Daemon era um espadachim, e Daeron nunca foi – Egg comentou. – Por que dar um cavalo para um homem que não sabe cavalgar? A espada não era o reino, ele diz. A mão do cavaleiro estremeceu com tanta força que o vinho espirrou da taça. – Seu pai é um tolo. – Ele não é – o garoto respondeu. O rosto de Osgrey se retorceu de raiva. – Você fez uma pergunta e eu respondi, mas não aceitarei insolência. Sor Duncan, devia espancar esse menino com mais frequência. A cortesia dele deixa muito a desejar. Se for necessário que eu mesmo o faça, eu... – Não – Dunk o interrompeu. – Não precisa, sor. – Ele tomara sua decisão. – Está escuro. Partiremos com a primeira luz. Sor Eustace o encarou, chocado. – Partir? – De Pousoveloz. Do seu serviço. – Você mentiu para nós. Chame como quiser, não há honra nisso. Ele soltou o manto, o enrolou e o colocou no colo do velho. Os olhos de Osgrey se estreitaram. – A mulher ofereceu pegá-lo ao serviço dela? Está me deixando pela cama daquela puta? – Não sei se ela é uma puta – Dunk falou –, ou uma feiticeira, ou uma envenenadora ou nada disso. Mas o que quer que ela seja, não importa. Estamos partindo para as andanças, não para Fosso Gelado. – As valas, você quer dizer. Está me deixando para espreitar nas matas como lobos, para atacar de surpresa homens honestos nas estradas. – A mão dele tremia. A taça caiu de seus dedos, derramando vinho enquanto rolava pelo chão. Vão, então. Vão. Não quero nenhum de vocês. Nunca devia tê-los aceitado. Vão! – Como queira, sor – Dunk fez um gesto, e Egg o seguiu. Naquela última noite, Dunk queria ficar o mais distante possível de Eustace Osgrey, então eles dormiram no porão, entre o restante do exército mirrado de Pousoveloz. Foi uma noite agitada. Lem e Pate olho-vermelho roncavam, o primeiro bem alto, e o segundo de modo constante. Vapores úmidos enchiam o porão, levantando-se dos porões mais profundos abaixo. Dunk se revirava na cama áspera, mergulhando em um sono leve até despertar de repente na escuridão. As picadas que levara no bosque coçavam ferozmente, e havia pulgas na palha também. Farei bem em ir embora deste lugar, bem em me afastar do velho, de Sor Bennis e do restante deles. Talvez fosse hora de levar Egg de volta a Solarestival, para ver o pai. Perguntaria ao menino sobre aquilo pela manhã, quando todos estivessem bem distantes. A manhã parecia muito distante, no entanto. A cabeça de Dunk estava cheia de dragões, vermelho e negro... cheia de leões xadrezes, escudos antigos, botas surradas... cheia de riachos, fossos e barragens, e papéis estampados com o grande selo real que ele não conseguia ler. E ela estava lá também, a Viúva Vermelha, Rohanne de Fosso Gelado. Ele podia ver o rosto sardento dela, os braços delgados, a longa trança ruiva. Aquilo o fez se sentir culpado. Eu devia sonhar com Tanselle. Tanselle Alta-Demais, eles a chamavam, mas ela não era alta demais para mim. Ela tinha pintado o brasão de armas em seu escudo, e ele a salvara do Príncipe Brilhante, mas ela desaparecera bem antes do julgamento de sete. Ela não podia suportar me ver morrer, Dunk dizia para si mesmo com frequência, mas o que ele sabia? Ele era cabeça-dura como uma muralha de castelo. Só de pensar na Viúva Vermelha era prova o bastante disso. Tanselle sorriu para mim, mas nunca nos abraçamos, nunca nos beijamos, nem mesmo no rosto. Rohanne pelo menos tocara nele; e ele tinha um lábio inchado para provar isso. Não seja idiota. Ela não é para pessoas como você. É muito pequena, muito esperta e muito, muito perigosa. Finalmente adormecendo, Dunk sonhou. Estava correndo por uma clareira no coração do Bosque de Wat, correndo na direção de Rohanne, e ela disparava flechas nele. Cada flecha que ela soltava voava de verdade, e o acertava no peito. Mesmo assim, a dor era estranhamente doce. Ele devia se virar e fugir, mas, em vez disso, corria na direção dela, correndo lentamente, como sempre acontece nos sonhos, como se o ar tivesse se transformado em mel. Outra flecha veio, e ainda outra. As flechas na aljava dela pareciam não ter fim. Seus olhos eram cinzentos e verdes e cheios de malícia. Seu vestido destaca a cor dos seus olhos, ele queria dizer, mas ela não estava usando vestido, ou roupa de espécie alguma. Seus pequenos seios eram salpicados de sardas, e os mamilos eram vermelhos e duros como pequenas amoras. As flechas o faziam parecer um grande porco-espinho, quando cambaleou aos pés dela, mas de algum modo ele ainda encontrou forças para agarrar sua trança. Com um puxão, ele a fez cair em cima dele e a beijou. Acordou de repente, com o som de um grito. No porão escuro, tudo era confusão. Xingamentos e reclamações ecoavam por todos os lados, e os homens tropeçavam uns nos outros enquanto buscavam suas lanças e calções. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Egg encontrou uma vela de sebo e a acendeu para colocar um pouco de luz na cena. Dunk foi o primeiro a alcançar a escada. Quase colidiu com Sam Stoops, que descia correndo, bufando como um fole e balbuciando de modo incoerente. Dunk teve que segurá-lo pelos ombros para impedi-lo de cair. – Sam, o que houve? – O céu – o velho choramingou. – O céu! – Nada mais que fizesse sentido podia ser tirado dele, então todos subiram ao telhado para olhar. Sor Eustace estava diante deles, parado nos parapeitos com seu roupão de dormir, encarando a distância. O sol estava nascendo no oeste. Demorou um tempo até que Dunk percebesse o que aquilo significava. – O Bosque de Wat está em chamas – disse em voz baixa. Da base da torre veio o som de Bennis xingando, uma jorrada incomparável de sujeiras, que teria feito até Aegon, o Indigno, corar. Sam Stoops começou a rezar. Estavam longe demais para distinguir as chamas, mas o brilho vermelho envolvia metade do horizonte ocidental e, acima da luz, as estrelas desapareciam. A Coroa do Rei já quase se fora, obscurecida atrás de um véu de fumaça que se erguia. Fogo e espada, ela disse. O fogo ardeu até a manhã. Ninguém em Pousoveloz dormiu naquela noite. Em pouco tempo, podiam sentir a fumaça e ver as chamas dançando como garotas distantes em saias escarlates. Todos se perguntavam se o fogo os envolveria. Dunk ficou parado atrás dos parapeitos, os olhos ardendo, observando os cavaleiros na noite. – Bennis – disse quando o cavaleiro marrom subiu, mascando sua folhamarga. – É você quem ela quer. Talvez devesse ir embora. – O quê? Fugir? – ele zurrou. – No meu cavalo? Faria melhor em tentar voar como uma dessas malditas galinhas. – Então se entregue. Ela só vai cortar seu nariz. – Gosto do meu nariz do jeito que está, pateta. Deixe que ela tente me levar, e veremos o que vai ficar cortado. – Sentou de pernas cruzadas, com as costas contra uma ameia, e pegou a pedra de amolar do alforje para amolar a espada. Sor Eustace parou diante dele. Em voz baixa, conversaram sobre como lutar a guerra. – Longo Inch vai nos esperar na barragem – Dunk ouviu o velho cavaleiro dizer. – Então vamos queimar as plantações dela, enquanto isso. Fogo por fogo. – Sor Bennis achava que seria a única alternativa, mas talvez pudessem colocar fogo no moinho dela também. – Está a trinta quilômetros do outro lado do castelo; Longo Inch não nos procurará ali. Queime o moinho e mate o moleiro, isso vai lhe custar caro. Egg ouvia também. Ele tossiu e olhou para Dunk com olhos arregalados. – Sor, tem que detê-los. – Como? – Dunk perguntou. A Viúva Vermelha vai detê-los. Ela e aquele Lucas, o Longo Inch. – Estão só fazendo barulho, Egg. É isso, ou mijar nos calções. E não tem nada a ver conosco agora. O amanhecer veio com um céu cinzento e nebuloso que queimava os olhos. Dunk pretendia partir cedo, mas depois da noite insone não sabia o quão longe conseguiriam chegar. Egg e ele quebraram o jejum com ovos cozidos, enquanto Bennis reunia os outros do lado de fora para mais treinos. Eles são homens de Osgrey, e nós não, disse para si mesmo. Comeu quatro ovos. Sor Eustace lhe devia aquilo, como podia ver. Egg comeu dois. Empurraram tudo para baixo com cerveja. – Podíamos ir para a Ilha Leal, sor – o menino disse, enquanto juntavam suas coisas. – Se estão sendo saqueados pelos homens de ferro, Lorde Farman pode estar procurando algumas espadas. Era uma boa ideia. – Já esteve na Ilha Leal? – Não, sor – Egg respondeu. – Mas dizem que é um lugar leal. A sede de Lorde Farman é leal também. Chama-se Casteloleal. Dunk gargalhou. – Então que seja Casteloleal. – Sentia como se um grande peso tivesse sido tirado de seus ombros. – Verei os cavalos – disse, depois de prender sua armadura em um pacote, preso com corda de cânhamo. – Vá até o telhado e pegue nossos sacos de dormir, escudeiro. – A última coisa que queria naquela manhã era outro confronto com o leão xadrez. – Se encontrar Sor Eustace, deixe-o para lá. – Deixarei, sor. Do lado de fora, Bennis tinha os recrutas alinhados com lanças e escudos, e tentava fazê-los avançar ao mesmo tempo. O cavaleiro marrom não prestou a menor atenção em Dunk quando passou por ele no pátio. Ele vai levar todos para a morte. A Viúva Vermelha pode chegar a qualquer momento. Egg irrompeu pela porta da torre, batendo nos degraus de madeira com os sacos de dormir. Acima dele, Sor Eustace estava parado rigidamente na sacada, as mãos descansando no parapeito. Quando seus olhos encontraram os de Dunk, seu bigode estremeceu, e ele rapidamente se afastou. O ar estava nebuloso com a fumaça. Bennis estava com o escudo pendurado nas costas, um escudo alto, em formato triangular, de madeira sem pintar, escurecido pelas incontáveis camadas de verniz velho e todo cingido com ferro. Não tinha emblema algum, só um entalhe central, que a Dunk lembrava um grande olho, bem fechado. Tão cego quanto ele. – Como pretende lutar contra ela? – Dunk perguntou. Sor Bennis olhou para seus soldados, a boca vermelha de folhamarga. – Não dá para guardar a colina com tão poucas lanças. Tem que ser a torre. Todos nós buraco adentro. – Assentiu na direção da porta. – Só há um jeito de entrar. Tire os degraus de madeira e não há como nos alcançarem. – Até que construam a própria escada. Podem ter trazido cordas e arpéus também e invadir pelo telhado. A menos que simplesmente fiquem atrás com os besteiros e encham vocês de dardos enquanto tentam proteger a porta. Os Melão, Feijão e Cevada ouviam tudo o que eles estavam dizendo. Toda a conversa corajosa desaparecera, embora não houvesse um sopro de vento. Estavam parados, agarrando os bastões afiados, olhando para Dunk e Bennis, e um para o outro. – Esse grupo não vai servir de nada – Dunk disse, com o aceno de cabeça na direção do esfarrapado exército Osgrey. – Os cavaleiros da Viúva Vermelha vão fazê-los em pedaços se deixá-los em campo aberto, e as lanças não servirão de nada dentro daquela torre. – Eles podem jogar coisas do telhado – Bennis sugeriu. – Buco é bom jogando pedras. – Ele poderia jogar uma pedra ou duas, suponho – Dunk concordou –, até que um dos besteiros da Viúva o acerte com um dardo. – Sor? – Egg estava parado ao lado dele. – Sor, se pretendemos partir, é melhor irmos, caso a Viúva venha. O garoto estava certo. Se ficarmos mais, ficaremos presos aqui. Mesmo assim, Dunk ainda hesitava. – Deixe-os ir, Bennis. – O quê? Perder nossos valentes rapazes? – Bennis olhou para os camponeses e zurrou sua gargalhada. – Vocês não fiquem tendo ideias – advertiu o grupo. – Estriparei qualquer homem que tentar fugir. – Tente, e eu estripo você – Dunk desembainhou a espada. – Vão para casa, todos vocês – disse para os plebeus. – Voltem para seus vilarejos e assegurem-se de que o fogo não chegue a suas casas ou plantações. Ninguém se moveu. O cavaleiro marrom o encarava, a boca se mexendo. Dunk o ignorou. – Vão – disse novamente para os plebeus. Era como se algum deus tivesse colocado a palavra em sua boca. Não o Guerreiro. Há um deus dos tolos? – VÃO! – falou novamente, rugindo desta vez. – Peguem suas lanças e escudos, mas vão, ou não viverão para ver o amanhã. Querem beijar suas esposas mais uma vez? Querem segurar seus filhos no colo? Vão para casa! Ficaram todos surdos? Não estavam surdos. Uma corrida louca teve início entre as galinhas. Grande Rob pisou em uma galinha enquanto corria, e Pate ficou a meio metro de estripar Will Feijão quando tropeçou em sua própria lança, mas os dois fugiram correndo. Os Melão seguiram em uma direção, os Feijão em outra, os Cevada em uma terceira. Sor Eustace gritava para eles lá de cima, mas ninguém prestava atenção. São surdos a ele, pelo menos, Dunk pensou. Quando o velho cavaleiro saiu da torre e veio tropeçando nos degraus, só Dunk, Egg e Bennis permaneciam entre as galinhas. – Voltem! – Sor Eustace gritou para seu grupo fugitivo. – Não têm minha permissão para irem embora. Não têm minha permissão! – Não adianta, senhor – Bennis falou. – Eles se foram. Sor Eustace circundou Dunk, o bigode tremendo de raiva. – Não tinha o direito de mandá-los embora. Nenhum direito! Eu disse para não irem, eu proibi isso. Proibi você de dispensá-los. – Não o ouvimos, senhor – Egg tirou o chapéu para abanar a fumaça. – As galinhas estavam cacarejando alto demais. O velho afundou no degrau mais baixo de Pousoveloz. – O que aquela mulher ofereceu para você me entregar a ela? – ele perguntou a Dunk com voz sombria. – Quanto ouro ela lhe deu para me trair, para mandar meus rapazes embora e para me deixar aqui sozinho? – Não está sozinho, senhor. – Dunk embainhou a espada. – Eu dormi sob seu teto e comi seus ovos esta manhã. Ainda lhe devo algum serviço. Não vou me esgueirar com o rabo entre as pernas. Minha espada ainda está aqui. – Tocou o punho da espada. – Uma espada. – O velho cavaleiro se levantou lentamente. – O que uma espada pode fazer contra aquela mulher? – Tentar mantê-la longe de suas terras, para começar – Dunk desejava ter tanta certeza quanto suas palavras faziam crer. O bigode do velho cavaleiro tremia cada vez que ele inspirava. – Sim – disse finalmente. – Melhor ir com ousadia do que se esconder atrás de paredes de pedra. Melhor morrer como um leão do que como um coelho. Fomos os Marechais da Fronteira Norte por mil anos. Preciso pegar minha armadura. – Começou a subir os degraus. Egg estava olhando para Dunk. – Não sabia que tinha rabo, sor – o garoto comentou. – Quer um tapão na orelha? – Não, sor. Quer sua armadura? – Sim – Dunk falou. – E mais uma coisa. Houve uma conversa sobre Sor Bennis ir com eles, mas, no fim, Sor Eustace ordenou que ele ficasse e protegesse a torre. Sua espada teria pouco uso na disputa que iriam encarar, e a visão dele talvez inflamasse a Viúva ainda mais. O cavaleiro marrom não discutiu de modo muito convincente. Dunk o ajudou a soltar os pinos de ferro que prendiam os degraus superiores no lugar. Bennis subiu neles, desamarrou a velha corda de cânhamo cinzenta e a puxou com toda a sua força. Rangendo e gemendo, a escada de madeira oscilou para cima, deixando um vão de três metros entre o alto dos degraus de pedra e a única entrada da torre. Sam Stoops e sua esposa estavam lá dentro também. As galinhas teriam que se defender sozinhas. Sentado sobre seu castrado cinzento, Sor Eustace gritou para eles: – Se não retornarmos até o cair da noite... – ... eu cavalgarei até Jardim de Cima, senhor, e direi a Lorde Tyrell como aquela mulher queimou seu bosque e o matou. Dunk seguiu Egg e Meistre colina abaixo. O velho vinha logo atrás, a armadura rangendo de leve. Pela primeira vez, o vento estava aumentando, e era possível ouvir seu manto se agitando. Onde o Bosque de Wat ficava, encontraram uma terra devastada esfumaçando. O fogo já havia se consumido em grande parte quando chegaram ao bosque, mas aqui e ali havia partes que ainda queimavam, ilhas ardentes em um mar de cinzas. Por todos os lados, troncos de árvores queimadas estavam enfiados na terra como lanças enegrecidas no céu. Outras árvores caíram e estavam largadas no meio do caminho para oeste, com os galhos queimados e quebrados, brasas vermelho-escuras ardendo em seus âmagos ocos. Havia pontos quentes no chão da floresta também, e lugares em que a fumaça subia pelo ar como uma névoa cinza quente. Sor Eustace foi acometido de um ataque de tosse e, por um momento, Dunk teve medo de que o velho tivesse que voltar para casa, mas finalmente passou. Passaram cavalgando pela carcaça de um veado vermelho e, mais tarde, pelo que devia ter sido um texugo. Nada vivia, exceto as moscas. As moscas sobreviviam a tudo, pelo que parecia. – O Campo de Fogo deve ter sido parecido com isso – Sor Eustace comentou. – Foi quando nosso infortúnio começou, há duzentos anos. O último dos reis verdes pereceu naquele campo, com as mais finas flores da Campina ao redor dele. Meu pai dizia que o fogo de dragão ardia tão quente que as espadas deles derretiam nas mãos. Depois, as lâminas foram reunidas e ajudaram a fazer o Trono de Ferro. Jardim de Cima passou de reis para intendentes, e os Osgrey foram rebaixados e diminuíram até que os Marechais da Fronteira Norte não eram mais do que cavaleiros com terras ligados por vassalagem aos Rowan. Dunk não tinha nada a dizer sobre aquilo, então cavalgaram em silêncio por um tempo, até que Sor Eustace tossiu e disse: – Sor Duncan, lembra-se daquela história que lhe contei? – Pode ser – Dunk respondeu. – Qual delas? – A do Pequeno Leão. – Lembro. Era o mais jovem de cinco filhos. – Isso. – Ele tossiu novamente. – Quando ele matou Lancel Lannister, os homens do oeste deram meia-volta. Sem o rei, não havia guerra. Entende o que estou dizendo? – Sim – Dunk respondeu, relutante. Eu seria capaz de matar uma mulher? Pela primeira vez, Dunk desejou ser cabeça-dura como uma muralha de castelo. Não deve chegar a isso. Eu não devo deixar chegar a isso. Umas poucas árvores verdes ainda estavam em pé onde o caminho a oeste cruzava o Riacho Xadrez. Os troncos estavam queimados e enegrecidos em um dos lados. Logo além, a água reluzia escura. Azul e verde, Dunk pensou, mas todo o dourado se foi. A fumaça tinha encoberto o sol. Sor Eustace parou quando chegaram à beira da água. – Fiz um voto sagrado. Não vou cruzar o riacho. Não enquanto as terras depois dele forem dela. – O velho cavaleiro usava cota de malha e placas de ferro sob o sobretudo amarelo. A espada estava em seu quadril. – E se ela nunca vier, sor? – Egg perguntou. Com fogo e espada, Dunk pensou. – Ela virá. E o fez, em uma hora. Eles ouviram os cavalos primeiro e, então, o som metálico da armadura tinindo cada vez mais alto. A fumaça no ar tornava difícil dizer a que distância estavam, até que o porta-estandarte cruzou a cortina cinzenta irregular. O mastro era coroado por uma aranha de ferro pintada de branco e vermelho, com o estandarte negro dos Webber pendurado com displicência logo abaixo. Quando os viu do outro lado da água, ele parou em uma margem. Sor Lucas Inchfield apareceu meio segundo depois, armado da cabeça aos pés. Só então a Senhora Rohanne apareceu, montada em uma égua negra como carvão, decorada com fios de seda prateados, como uma teia de aranha. O manto da Viúva era feito do mesmo material. Saía de seus ombros e pulsos, leve como o ar. Ela estava armada também, em um traje verde de escamas esmaltadas, entalhado com ouro e prata. Caía em sua silhueta como uma luva e a fazia parecer como se estivesse vestida com folhas de verão. A comprida trança ruiva pendia pelo lado do corpo, balançando enquanto ela cavalgava. Septão Sefton cavalgava com o rosto vermelho ao lado dela, montado em um grande castrado cinzento. Do outro lado, estava o jovem meistre, Cerrick, montado em uma mula. Mais cavaleiros vieram na sequência, meia dúzia deles, atendidos pela mesma quantidade de escudeiros. Uma coluna de besteiros montados vinha na retaguarda e se espalhou de lado a lado da estrada quando chegaram ao Riacho Xadrez e viram Dunk esperando do outro lado. Eram trinta e três guerreiros ao todo, excluindo o septão, o meistre e a própria Viúva. Um dos cavaleiros chamou a atenção de Dunk: um homem atarracado e careca, em cota de malha e couro, com o rosto zangado e um bócio feio no pescoço. A Viúva Vermelha levou a água até a margem. – Sor Eustace, Sor Duncan – falou, do outro lado do riacho. – Vimos fogo ardendo durante a noite. – Viram? – Sor Eustace gritou de volta. – Sim, você viu... depois que o acendeu. – Essa é uma acusação vil. – Para um ato vil. – Eu estava dormindo em minha cama noite passada, com todas as minhas senhoras ao meu redor. Os gritos que vinham das muralhas me despertaram, como fizeram com quase todos. Velhos subiram na escada da torre para olhar e bebês de peito viram a luz vermelha e choraram de medo. É tudo o que sei sobre seu incêndio, sor. – Foi seu incêndio, mulher – Sor Eustace insistiu. – Meu bosque se foi. Se foi, digo! Septão Sefton limpou a garganta. – Sor Eustace – ressoou –, há incêndios na Mata de Rei também, e até na Mata de Chuva. A seca transformou todas as nossas matas em lenha. A Senhora Rohanne levantou o braço e apontou. – Olhe para meus campos, Osgrey, como estão secos. Eu teria que ser uma tola para colocar fogo em alguma coisa. Se o vento tivesse mudado de direção, as chamas bem que podiam ter atravessado o riacho e queimado metade das minhas plantações. – Poderia? – Sor Eustace gritou. – Foi o meu bosque que queimou, e você que o queimou. É mais provável que tenha feito algum feitiço para comandar o vento, assim como usou a magia negra para matar seus maridos e irmãos! O rosto da Senhora Rohanne ficou mais duro. Dunk vira aquele olhar em Fosso Gelado, bem antes dela esbofeteá-lo. – Bobagens – ela disse para o velho. – Não vou desperdiçar mais palavras com você, sor. Traga Bennis do Escudo Marrom, ou iremos buscá-lo. – Isso você não fará – Sor Eustace declarou em um tom de voz vibrante. – Isso você nunca fará. – O bigode dele se contorceu. – Não vá além. Este lado do riacho é meu, e você não é bem-vinda aqui. Não lhe devo hospitalidade. Nenhum pão ou sal, nem mesmo sombra ou água. Você vem como intrusa. Eu a proíbo de colocar os pés nas terras Osgrey. A Senhora Rohanne jogou a trança por sobre o ombro. – Sor Lucas – foi tudo o que disse. Longo Inch fez um gesto, os besteiros desmontaram, pegaram as armas com a ajuda de um gancho e do estribo, e tiraram dardos de suas aljavas. – Agora, sor – sua senhoria gritou, quando cada besta estava carregada, erguida e a postos –, o que é que me proíbe? Dunk ouvira o bastante. – Se cruzar o riacho sem permissão, estará rompendo a paz do rei. O Septão Sefton fez seu cavalo dar um passo adiante. – O rei nunca saberá ou se importará – falou. – Somos todos filhos da Mãe, sor. Pelo amor dela, fique fora disso. Dunk franziu o cenho. – Não sei muito sobre deuses, septão... mas não somos filhos do Guerreiro também? – Esfregou a nuca. – Se tentarem cruzar, eu os deterei. Sor Lucas, o Longo Inch, deu uma gargalhada. – Eis um cavaleiro andante que anseia por se tornar um ouriço, minha senhora – ele disse a Viúva Vermelha. – Dê a ordem e colocaremos uma dúzia de dardos nele. Nesta distância, vão atravessar a armadura como se fosse feita de saliva. – Não. Ainda não, sor. – A Senhora Rohanne os estudou do outro lado do riacho. – Vocês são dois homens e um garoto. Somos trinta e três. Como pretendem nos impedir de atravessar? – Bem – Dunk falou –, eu lhe direi. Mas só para você. – Como queira. – Ela pressionou os calcanhares no cavalo e cavalgou para dentro do riacho. Quando a água alcançou a barriga da égua, ela parou, esperando. – Aqui estou. Aproxime-se, sor. Prometo não costurá-lo em um saco. Sor Eustace agarrou Dunk pelo braço antes que ele pudesse reagir. – Vá até ela – o velho cavaleiro disse. – Mas lembre-se do Pequeno Leão. – Como queira, senhor. – Dunk levou Trovão para dentro da água. Parou ao lado dela e disse: – Senhora. – Sor Duncan. – Ela estendeu a mão e colocou dois dedos no lábio inchado dele. – Eu fiz isso, sor? – Ninguém mais esbofeteou meu rosto ultimamente, senhora. – Isso foi mau da minha parte. Uma quebra de hospitalidade. O bom septão tem me repreendido. – Ela olhou através da água, até Sor Eustace. – Mal me lembro de Addam agora. Foi mais do que metade da minha vida atrás. Lembro que o amei, no entanto. E não amei nenhum dos outros. – O pai dele o colocou nas amoreiras, com os irmãos – Dunk contou. – Ele gostava de amoras. – Eu me lembro. Ele costumava pegá-las para mim, e comíamos com uma tigela de creme. – O rei perdoou o velho por Daemon – Dunk falou. – Já passou da hora de perdoá-lo por Addam. – Dê-me Bennis e vou considerar isso. – Bennis não é meu para que possa dá-lo. Ela suspirou. – Eu não o mataria de bom grado. – Eu não morreria de bom grado. – Então me dê Bennis. Vamos cortar o nariz dele e devolvê-lo, e isso será o fim dessa história. – Não será – Dunk falou. – Ainda há a questão da barragem para resolver, e o fogo. A senhora nos dará os homens que fizeram isso? – Há vaga-lumes naquele bosque – ela disse. – Pode ser que eles tenham causado o fogo com suas pequenas luzes. – Sem provocações agora, senhora – Dunk a advertiu. – Não há tempo para isso. Derrube a barragem e deixe Sor Eustace ter água para compensar o bosque. É justo, não é? – Pode ser, se eu tivesse queimado o bosque. O que não fiz. Eu estava em Fosso Gelado, segura na cama. – Ela olhou para a água. – O que há aqui para nos impedir de cavalgar até o outro lado do riacho? Espalhou estrepes entre as rochas? Escondeu arqueiros nas cinzas? Diga-me o que está pensando para nos deter. – Em mim. – Tirou uma manopla. – Na Baixada das Pulgas, eu sempre era maior e mais forte do que os outros meninos, então me acostumei a espancá-los até deixá-los sangrando e roubar deles. O velho me ensinou a não fazer isso. Era errado, ele dizia, e, além disso, algumas vezes meninos pequenos têm irmãos grandes. Aqui, dê uma olhada nisso. – Dunk torceu o anel para fora do dedo e o entregou para ela. Ela teve que soltar a trança para pegá- lo. – Ouro? – ela perguntou, quando sentiu o peso daquilo. – O que é isso, sor? – Revirou o anel na mão. – Um sinete. Ouro e ônix. – Seus olhos verdes se estreitaram enquanto ela estudava o selo. – Onde encontrou isso, sor? – Em uma bota. Envolto em trapos e enfiado no lugar dos dedos. Os dedos da Senhora Rohanne se fecharam ao redor do anel. Ela olhou para Egg e para o velho Sor Eustace. – Corre um grande risco em me mostrar este anel, sor. Mas como isso nos beneficia? Se eu ordenasse que meus homens atravessassem... – Bem – Dunk falou –, isso significaria que eu teria que lutar. – E morrer. – É muito provável – ele disse. – E então Egg voltaria para o lugar de onde veio e contaria o que aconteceu aqui. – Não se ele morresse também. – Não acho que mataria um garoto de dez anos – ele disse, esperando estar certo. – Não este menino de dez anos, não faria isso. Você tem trinta e três homens aqui, como disse. Homens falam. Aquele gordo em especial. Não importa o quão fundos sejam os túmulos, as histórias correm. E então, bem... pode ser que a mordida de uma aranha manchada possa matar um leão, mas um dragão é um tipo diferente de besta. – Eu preferiria ser amiga do dragão. – Ela experimentou o anel no dedo. Era grande demais até mesmo para seu polegar. – Dragão ou não, devo ter Bennis do Escudo Marrom. – Não. – Você tem dois metros de teimosia. – Menos dois centímetros. Ela lhe devolveu o anel. – Não posso voltar para Fosso Gelado de mãos vazias. Dirão que a Viúva Vermelha perdeu sua picada, que está fraca demais para fazer justiça, que não pode proteger seus plebeus. Você não entende, sor. – Eu poderia. – Melhor do que imagina. – Lembro que, uma vez, um pequeno senhor nas terras da tempestade pegou Sor Arlan ao seu serviço, para ajudá-lo a lutar contra algum outro pequeno senhor. Quando perguntei ao velho pelo que estavam lutando, ele disse: “Por nada, rapaz. É só um concurso para ver quem mija mais longe”. A Senhora Rohanne lhe deu um olhar espantado, mas não conseguiu sustentá-lo por mais de meio segundo antes que se transformasse em um sorriso. – Já ouvi milhares de cortesias vazias em minha vida, mas você é o primeiro cavaleiro a dizer mijo na minha presença. – Seu rosto sardento ficou sombrio. – Esses concursos para ver quem mija mais longe são como os senhores julgam a força um do outro, e coitado do homem que mostra sua fraqueza. Uma mulher precisa mijar duas vezes mais longe, se espera governar. E se acontece de a mulher ser pequena... Lorde Stackhouse cobiça minha Colina Ferradura, Sor Clifford Conklyn tem uma antiga reivindicação do Lago Frondoso, aqueles tristes Durwell vivem de roubar gado... e sob meu próprio teto tenho Longo Inch. Todo dia eu acordo me perguntando se esse será o dia em que ele se casará comigo à força. – Sua mão apertou a trança com força, tão forte como se fosse uma corda, e ela estivesse pendurada em um precipício. – Ele quer isso, eu sei. Contém-se por medo da minha fúria, assim como Conklyn, Stackhouse e Durwell pisam com cuidado quando se trata da Viúva Vermelha. Se um deles pensar por um momento que me tornei fraca e branda... Dunk colocou o anel no dedo e desembainhou o punhal. Os olhos da viúva se arregalaram ao ver o aço. – O que está fazendo? – ela disse. – Perdeu o juízo? Há dúzias de besteiros mirando em você. – Você queria sangue por sangue. – Ele colocou o punhal contra a própria bochecha. – Contaram errado para você. Não foi Bennis que cortou o escavador, fui eu. – Ele pressionou a borda do aço no rosto, cortando para baixo. Quando sacudiu o sangue da lâmina, um pouco espirrou no rosto dela. Mais sardas, ele pensou. – Pronto, a Viúva Vermelha tem sua dívida. Uma bochecha por uma bochecha. – Você é bem louco. – A fumaça enchera os olhos dela de lágrimas. – Se fosse bem-nascido, me casaria com você. – Sim, senhora. E se porcos tivessem asas, e escamas e soltassem fogo pelas ventas, seriam tão bons quanto dragões. – Dunk guardou a faca na bainha. Seu rosto começava a latejar. O sangue corria por sua bochecha e pingava em seu gorjal. O cheiro fez Trovão bufar e bater a pata na água. – Dê-me os homens que queimaram o bosque. – Ninguém queimou o bosque – ela disse. – Mas se um dos meus homens fez isso, deve ter sido para me agradar. Como eu daria um homem desses para você? – Ela olhou para trás, para sua escolta. – Seria melhor se Sor Eustace simplesmente retirasse sua acusação. – Aqueles porcos soltariam fogo pelas ventas antes disso, senhora. – Nesse caso, devo afirmar minha inocência diante dos olhos dos deuses e dos homens. Diga a Sor Eustace que exijo desculpas... ou um julgamento. A escolha é dele. – Ela virou seu cavalo e voltou para seus homens. O riacho seria o campo de batalha. Septão Sefton foi bamboleando até lá e disse uma oração, rogando ao Pai de Cima que olhasse por aqueles dois homens e os julgasse com justiça, pedindo ao Guerreiro para fortalecer o homem cuja causa fosse justa e verdadeira, implorando à Mãe misericórdia para o mentiroso, que ele fosse perdoado por seus pecados. Quando a oração acabou, ele se virou para Sor Eustace Osgrey uma última vez. – Sor – disse –, eu lhe imploro novamente, retire sua acusação. – Não farei isso – o velho disse, com o bigode tremendo. O septão gordo se voltou para a Senhora Rohanne. – Cunhada, se você fez isso, confesse sua culpa e ofereça ao bom Sor Eustace alguma restituição por seu bosque. Caso contrário, sangue deve ser derramado. – Meu campeão provará minha inocência diante dos olhos dos deuses e dos homens. – Julgamento por combate não é o único jeito – o septão falou, com água na altura do peito. – Vamos até Bosquedouro, eu imploro a ambos, e levemos a questão diante de Lorde Rowan, para julgamento dele. – Nunca – falou Sor Eustace. A Viúva Vermelha negou com a cabeça. Sor Lucas Inchfield olhou para a Senhora Rohanne, o rosto sombrio de fúria. – Você se casará comigo quando esta farsa acabar. Como o senhor seu pai desejava. – O senhor meu pai nunca o conheceu como eu o conheço – ela replicou. Dunk se apoiou em um joelho diante de Egg e colocou o sinete na mão do menino; quatro dragões de três cabeças, dois e dois, o brasão de armas de Maekar, Príncipe de Solarestival. – Coloque-o novamente na bota – ele disse –, mas, se acontecer de eu morrer, vá até o amigo mais próximo de seu pai e faça-o levar você de volta a Solarestival. Não cruze toda a Campina por conta própria. Não vá esquecer, ou meu fantasma virá dar um tapão na sua orelha. – Sim, sor – Egg concordou. – Mas eu prefiro que não morra. – Está quente demais para morrer. – Dunk colocou o elmo e Egg o ajudou a prendê-lo à armadura de pescoço. O sangue estava grudento em seu rosto, embora Sor Eustace tivesse rasgado um pedaço de seu manto para ajudar a fazer o sangue parar de escorrer. Ele se levantou e foi até Trovão. A maior parte da fumaça tinha se esvaído, ele viu enquanto subia na sela, mas o céu ainda estava escuro. Nuvens, pensou, nuvens escuras. Fazia tanto tempo. Talvez seja um presságio. Mas será um bom presságio para ele ou para mim? Dunk não era bom com presságios. Do outro lado do riacho, Sor Lucas montou também. Seu cavalo era um corcel alazão; um animal esplêndido, rápido e forte, mas não tão grande quanto Trovão. O que faltava em tamanho, o cavalo compensava em armadura, no entanto; estava vestido com proteção de crina e de cabeça e um manto de cota de malha leve. O próprio Longo Inch usava armadura preta esmaltada e cota de malha prateada. Uma aranha de ônix se abaixava malignamente no alto de seu elmo, mas seu escudo mostrava seu próprio brasão de armas: uma curva ameaçadora, quadriculada em preto e branco, sobre um fundo cinza-claro. Dunk observou Sor Lucas entregar o escudo ao escudeiro. Ele não pretende usá-lo. Quando outro escudeiro lhe entregou uma alabarda, ele soube o motivo. A lâmina era comprida e letal, com um cabo enfaixado, um espigão pesado e uma ponta maligna na parte de trás, mas era uma arma de duas mãos. Longo Inch teria que confiar em sua armadura para protegê-lo. Preciso fazê-lo lamentar essa escolha. Seu próprio escudo estava no braço esquerdo, o escudo que Tanselle pintara com seu olmo e a estrela cadente. Uma rima de criança ecoou em sua cabeça. Carvalho e ferro, guardem-me bem, senão estou morto e no inferno também. Ele desembainhou a espada longa. O peso dela era bom em suas mãos. Bateu com os calcanhares nos flancos de Trovão e levou o grande cavalo de guerra até a água. Do outro lado do riacho, Sor Lucas fez o mesmo. Dunk se posicionou à direita, para que pudesse enfrentar Longo Inch com o lado esquerdo, protegido pelo escudo. Aquilo não era algo que Sor Lucas estava disposto a lhe conceder. Ele virou seu corcel rapidamente, e encontraram-se em um tumulto de aço cinzento e água verde espalhada. Sor Lucas atacou com a alabarda. Dunk teve que girar na sela para defender o golpe com o escudo. A força daquilo derrubou seu braço e sacudiu seus dentes. Ele balançou a espada em resposta, um corte lateral que acertou o outro cavaleiro embaixo do braço levantado. Aço gritou contra aço, e foi isso. Longo Inch fez seu corcel girar em círculo, tentando dar a volta até o lado desprotegido de Dunk, mas Trovão girou no mesmo sentindo, atrapalhando o outro cavalo. Sor Lucas dava um golpe atrás do outro, em pé nos estribos para usar todo o peso e força na arma. Dunk movia seu escudo para pegar cada golpe que vinha. Meio encolhido sob seu carvalho, ele acertava os braços, a lateral do corpo e as pernas de Longo Inch, mas a armadura repelia cada golpe. Deram uma volta, e ainda outra, com água batendo nas pernas. Longo Inch atacava e Dunk defendia, procurando uma fraqueza. Finalmente ele a encontrou. Cada vez que Sor Lucas erguia a alabarda para outro golpe, uma fenda aparecia embaixo de seu braço. Havia cota de malha e couro ali, e acolchoamento por baixo, mas nenhuma placa de aço. Dunk manteve o escudo levantado, tentado conseguir tempo para o ataque. Logo. Logo. A alabarda golpeava, se soltava, subia. Agora! Ele bateu as esporas em Trovão, levando-o para mais perto, e atacou com a espada longa, para levar a ponta através da abertura. Mas a fenda desapareceu tão rapidamente quanto havia aparecido. A ponta da espada raspou em uma saliência, e Dunk, com o corpo estendido, quase perdeu o assento. A alabarda desceu com um estrondo, entortando o rebordo de ferro do escudo de Dunk, esmagando contra a lateral do seu elmo, e acertando Trovão com um golpe rude ao longo do pescoço. O cavalo de guerra berrou e se ergueu sob as duas patas traseiras, os olhos revirando de dor enquanto um acentuado odor acobreado de sangue enchia o ar. Atacou com os cascos de ferro bem quando Longo Inch se aproximou. Uma pata acertou Sor Lucas no rosto, a outra no ombro. Então o pesado cavalo de guerra caiu sobre o corcel. Aconteceu em um segundo. Os dois cavalos despencaram enroscados, escoiceando e mordendo um ao outro, espalhando água e lama embaixo. Dunk tentou se jogar da sela, mas um pé ficou preso no estribo. Ele caiu de cara primeiro, puxando ar desesperadamente antes que o riacho invadisse o elmo pela abertura do olho. Seu pé ainda estava preso, e ele sentiu um puxão selvagem quando os esforços de Trovão quase arrancaram sua perna. Com a mesma rapidez, ele ficou livre, se virando e afundando. Por um momento, se debateu impotente na água. O mundo era azul, verde e marrom. O peso de sua armadura o puxou para o fundo até que o ombro acertou o leito do riacho. Se aqui é embaixo, do outro lado é para cima. As mãos revestidas de aço de Dunk tatearam nas pedras e na areia, e de algum modo conseguiu posicionar as pernas e se levantar. Estava cambaleando, pingando lama, com água escorrendo pelos buracos do seu elmo amassado, mas estava em pé. Puxou o ar para dentro. O escudo golpeado ainda estava pendurado no braço esquerdo, mas a bainha estava vazia e sua espada tinha sumido. Havia sangue dentro de seu elmo, assim como água. Quando tentou apoiar o peso do corpo na outra perna, o tornozelo mandou uma pontada de dor pela perna. Os dois cavalos tinham conseguido ficar em pé novamente, ele viu. Virou a cabeça, focando um olho através de um véu de sangue, procurando seu adversário. Ele se foi, Dunk pensou. Ele se afogou ou Trovão esmagou seu crânio. Sor Lucas irrompeu da água bem na sua frente, com a espada na mão. Deu um golpe selvagem no pescoço de Dunk, e só a grossura de seu gorjal manteve sua cabeça sobre os ombros. Ele não tinha lâmina com a qual responder, só o escudo. Cedeu terreno, e Longo Inch veio atrás, gritando e golpeando. O braço levantado de Dunk levou um golpe entorpecente acima do cotovelo. Um corte no quadril o fez grunhir de dor. Enquanto retrocedia, uma pedra virou sob seu pé e ele caiu sobre um joelho, com água na altura do peito. Conseguiu levantar o escudo, mas desta vez Sor Lucas o acertou com tanta força que rachou o grosso carvalho bem ao meio, lançando lascas no rosto de Dunk. Suas orelhas zumbiam e a boca estava cheia de sangue, mas em algum lugar ao longe ouviu Egg gritar: – Pega ele, sor, pega ele, pega ele, ele está bem ali! Dunk mergulhou para a frente. Sor Lucas tinha soltado sua espada para outro golpe. Dunk bateu nele na altura do peito e o fez perder o equilíbrio. O riacho engoliu os dois novamente, mas desta vez Dunk estava pronto. Manteve o braço ao redor de Longo Inch e o forçou a ir para o fundo. Bolhas vinham de trás da viseira golpeada e retorcida de Inchfield, mas mesmo assim ele lutava. Encontrou uma pedra no fundo do riacho e começou a martelar a cabeça e as mãos de Dunk. Dunk tateava o cinturão da espada. Perdi o punhal também?, se perguntou. Não, estava lá. Sua mão se fechou ao redor do cabo e Dunk puxou o punhal da bainha, levando-o lentamente através da água agitada, dos anéis de ferro e do couro fervido embaixo do braço de Lucas, o Longo Inch, girando a lâmina ao empurrá-la. Sor Lucas estremeceu e se contorceu, e a força o deixou. Dunk se afastou e flutuou. Seu peito estava em chamas. Um peixe passou diante de seu rosto, comprido, branco e esguio. O que é aquilo?, ele se perguntou. O que é aquilo? O que é aquilo? Ele acordou no castelo errado. Quando abriu os olhos, não sabia onde estava. Estava abençoadamente fresco. O gosto de sangue estava na boca, e ele tinha um tecido sobre os olhos, um tecido grosso perfumado com algum unguento. Cheirava a cravo, ele pensou. Dunk tateou o rosto, arrancando o tecido. Acima dele, a luz de tochas brincavam contra um teto alto. Corvos andavam nas vigas sobre sua cabeça, espiando para baixo com pequenos olhos negros, e crocitavam para ele. Pelo menos não estou cego. Estava em uma torre de meistre. As paredes eram cheias de prateleiras com ervas e poções em frascos de barro e recipientes de vidro verde. Uma longa mesa de cavalete ali perto estava coberta com pergaminhos, livros e estranhos instrumentos de bronze, todos salpicados com excrementos de corvo nas vigas. Dunk podia ouvi-los resmungando uns para os outros. Tentou se sentar. Isso se mostrou um grave erro. Sua cabeça rodopiou e a perna esquerda gritou em agonia quando ele colocou o mínimo peso sobre ela. Seu tornozelo estava enfaixado com linho, ele viu, e havia faixas de linho ao redor do peito e dos ombros também. – Fique quieto. – Um rosto apareceu sobre ele, jovem e cansado, com olhos castanhoescuros e um nariz adunco. Dunk conhecia aquele rosto. O homem que o possuía estava todo de cinza, com uma corrente pendurada em volta do pescoço, uma corrente de meistre com muitos metais. Dunk o agarrou pelo pulso. – Onde?... – Fosso Gelado – o meistre respondeu. – Você estava ferido demais para voltar a Pousoveloz, então a Senhora Rohanne ordenou que o trouxéssemos para cá. Beba isso. – Levantou uma taça com... alguma coisa... até os lábios de Dunk. A poção tinha um gosto amargo, como vinagre, mas pelo menos lavou o gosto de sangue. Dunk se obrigou a beber tudo. Depois, flexionou os dedos da mão da espada, e então da outra mão. Pelo menos minhas mãos ainda funcionam, e meus braços. – O que... o que eu machuquei? – O que não? – O meistre bufou. – Uma lesão no tornozelo, uma entorse no joelho, uma clavícula quebrada, hematomas... a parte superior do seu torso está, em grande parte, verde e amarela, e seu braço direito está roxo-escuro. Pensei que seu crânio estivesse rachado também, mas parece que não. Há um corte em seu rosto, sor. Temo que ficará com uma cicatriz. Ah, e você estava afogado quando o tiramos da água. – Afogado? – Dunk perguntou. – Nunca suspeitei que um homem pudesse engolir tanta água, nem mesmo um homem tão grande quanto você, sor. Considere-se afortunado por eu ser um nascido do ferro. Os sacerdotes do Deus Afogado sabem como afogar um homem e trazê-lo de volta, e fiz um estudo sobre essas crenças e costumes. Eu me afoguei. Dunk tentou se sentar novamente, mas estava sem forças. Eu me afoguei em uma água que não chegava nem no meu pescoço. Gargalhou, então gemeu de dor. – Sor Lucas? – Morto. Duvida disso? Não. Dunk duvidava de muitas coisas, mas não daquilo. Ainda se lembrava de como a força abandonara os membros de Longo Inch, de uma vez. – Egg – ele falou. – Quero ver Egg, meu escudeiro... – É? Um rapaz corajoso, e mais forte do que parece. Foi ele quem o tirou do riacho. Ajudou a tirar sua armadura também e o acompanhou na carroça quando o trouxemos para cá. Ele não dormiu, mas ficou sentado ao seu lado com sua espada no colo, caso alguém tentasse lhe fazer mal. Suspeitou até de mim e insistiu que eu provasse tudo o que pretendia dar para você. Uma criança estranha, mas devotada. – Onde ele está? – Sor Eustace pediu ao garoto para atendê-lo no banquete de casamento. Não havia mais ninguém ao lado dele. Teria sido descortês se ele recusasse. – Banquete de casamento? – Dunk não entendeu. – Você não saberia, é claro. Fosso Gelado e Pousoveloz se reconciliaram depois da sua batalha. A Senhora Rohanne pediu a permissão do velho Sor Eustace para cruzar suas terras e visitar o túmulo de Addam, e ele lhe deu esse direito. Ela se ajoelhou diante das amoreiras e começou a chorar, e ele ficou tão tocado que foi confortá-la. Passaram a noite toda conversando sobre o jovem Addam e o nobre pai da minha senhora. Lorde Wyman e Sor Eustace eram antigos amigos, até a Rebelião Blackfyre. Sua senhoria e minha senhora foram casados esta manhã, pelo nosso bom Septão Sefton. Eustace Osgrey é o senhor de Fosso Gelado, e seu leão xadrez se agita ao lado da aranha Webber em toda torre e muralha. O mundo de Dunk girava lentamente ao seu redor. Aquela poção. Ele vai me colocar para dormir. Fechou os olhos e deixou toda a dor se esvair dele. Podia ouvir os corvos crocitando e gritando uns com os outros, e o som de sua própria respiração, e algo mais também... um som mais suave, firme e forte, de algum modo reconfortante. – O que é? – murmurou sonolento. – Esse som?... – Esse? – O meistre escutou. – É apenas chuva. Ele não a viu até o dia em que se despediram. – Isso é tolice, sor – Septão Sefton reclamou, enquanto Dunk mancava pesadamente pelo pátio, balançando o pé enfaixado e apoiando-se em uma muleta. – Meistre Cerrick diz que ainda não está nem meio curado, e esta chuva... é provável que pegue um resfriado, se não se afogar de novo. Pelo menos espere a chuva passar. – Pode demorar anos. – Dunk estava grato ao gordo septão, que o visitara quase que diariamente... para orar por ele, aparentemente, embora a maior parte do tempo fosse tomada com histórias e fofocas. Ele sentiria falta da língua solta e vivaz e da companhia alegre, mas aquilo não mudava nada. – Preciso ir. A chuva açoitava ao redor deles, mil chicotes frios e cinzentos sobre suas costas. Seu manto já estava encharcado. Era o manto de lã branca que Sor Eustace lhe dera, com a borda quadriculada verde e dourada. O velho cavaleiro lhe entregara a vestimenta novamente, como um presente de despedida. – Por sua coragem e serviço leal, sor – disse. O broche que prendia o manto em seu ombro era um presente também; um broche em formato de aranha, em marfim com patas de prata. Aglomerados de granadas esmagadas faziam as manchas em suas costas. – Espero que isso não seja sobre alguma busca maluca atrás de Bennis – o Septão Sefton disse. – Você está tão machucado e com hematomas que eu temeria por você se aquele lá o encontrasse nesse estado. Bennis, Dunk pensou com amargura, maldito Bennis. Enquanto Dunk lutava no riacho, Bennis tinha amarrado Sam Stoops e sua esposa, saqueado Pousoveloz de cima a baixo e recolhido cada item de valor que pôde encontrar, de velhas roupas e armas até a antiga taça de prata de Osgrey e um pequeno esconderijo de moedas que o velho tinha em seu solário, atrás de uma tapeçaria mofada. Um dia Dunk esperava encontrar Sor Bennis do Escudo Marrom novamente, e quando isso acontecesse... – Bennis vai esperar. – Para onde você vai? – O septão estava ofegante. Mesmo com Dunk em uma muleta, ele era gordo demais para acompanhar seu passo. – Ilha Leal. Harrenhal. O Tridente. Há andanças em todos os lugares. – Deu de ombros. – Sempre quis ver a Muralha. – A Muralha? – O septão fez uma parada. – Eu me aflijo por você, Sor Duncan! – gritou, parado na lama com as mãos abertas, enquanto a chuva caía ao redor deles. – Ore, sor, ore para a Velha iluminar seu caminho! – Dunk continuou andando. Ela estava esperando por ele dentro dos estábulos, de pé ao lado dos fardos de feno amarelo, em um vestido tão verde quanto o verão. – Sor Duncan – ela disse quando ele passou pela porta. Sua trança vermelha estava pendurada na frente do corpo, a ponta esfregando contra suas coxas. – É bom vê-lo em pé. Você nunca me viu de costas, ele pensou. – Senhora. O que a traz até os estábulos? É um dia úmido para uma cavalgada. – Posso dizer o mesmo a você. – Egg lhe contou? – Devo a ele outro tapão na orelha. – Fique feliz que ele tenha feito isso, ou eu mandaria homens atrás de você, para arrastá-lo de volta. É muito cruel de sua parte tentar se esgueirar sem nem mesmo um adeus. Ela nunca fora vê-lo enquanto ele esteve sob os cuidados de Meistre Cerrick, nem uma vez. – Esse verde lhe cai bem, senhora – ele disse. – Destaca a cor dos seus olhos. – Mudou o peso desajeitadamente para a muleta. – Estou aqui pelo meu cavalo. – Você não precisa ir. Há um lugar para você aqui, quando se recuperar. Capitão dos meus guardas. E Egg pode se juntar aos meus outros escudeiros. Ninguém jamais saberá quem ele é. – Obrigado, senhora, mas não. – Trovão estava a doze baias de distância. Dunk mancou na direção dele. – Por favor, reconsidere, sor. Estes são tempos perigosos, mesmo para dragões e seus amigos. Fique até estar curado. – Ela caminhou ao lado dele. – Seria do agrado de Lorde Eustace também. Ele gosta muito de você. – Gosta muito – Dunk concordou. – Se a filha dele não estivesse morta, ele gostaria que ela se casasse comigo. Então você poderia ser a senhora minha mãe. Nunca tive uma mãe, muito menos uma mãe senhora. Por meio segundo, a Senhora Rohanne pareceu prestes a esbofeteá-lo novamente. Talvez ela apenas chute minha muleta para longe. – Está zangado comigo, sor – ela disse, em vez disso. – Tem que me deixar compensá-lo. – Bem – ele disse –, você podia me ajudar a colocar a sela em Trovão. – Eu tinha outra coisa em mente. – Ela estendeu a mão até pegar a dele, uma mão sardenta, os dedos fortes e delgados. Aposto que é sardenta por inteiro. – Quão bem conhece cavalos? – Cavalgo um. – Um velho cavalo de guerra, criado para batalha, lento e mal-humorado. Não é um cavalo para ir de um lugar para o outro. – Se eu precisar ir de um lugar para o outro, é ele ou esses. – Dunk apontou para seus pés. – Você tem pés grandes – ela observou. – Mãos grandes também. Acho que deve ser todo grande. Grande demais para a maioria dos palafréns. Devem parecer pôneis com você nas costas deles. Mesmo assim, uma montaria mais rápida iria atendê-lo bem. Um grande corcel, com alguma coragem de corcel dornês para resistência. – Ela apontou para a baia em frente a Trovão. – Um cavalo como aquele. Era um baio de raça com olhos brilhantes e uma longa crina de fogo. A Senhora Rohanne pegou uma cenoura de suas mangas e acariciou a cabeça do animal enquanto o alimentava. – A cenoura, não os dedos – disse para o cavalo antes de se virar para Dunk. – Eu a chamo Chama, mas pode lhe dar o nome que for do seu agrado. Chame-a Compensação, se gostar. Por um momento, ele ficou sem palavras. Apoiou-se na muleta e olhou para o baio de raça com novos olhos. Era magnífica. Uma montaria melhor do que qualquer outra que o velho possuíra. Era só olhar para as patas longas e esguias para ver o quão rápida devia ser. – Eu a crio pela beleza, e pela velocidade. Ele se voltou para Trovão. – Não posso aceitá-la. – Por que não? – É um cavalo bom demais para mim. É só olhar para ela. Um rubor percorreu o rosto de Rohanne. Ela agarrou a trança, torcendo-a entre os dedos. – Tive que me casar, sabe disso. O testamento do meu pai... ah, não seja tão tolo. – O que mais eu poderia ser? Sou cabeça-dura como uma muralha de castelo, e de nascimento baixo também. – Aceite o cavalo. Recuso-me a deixá-lo partir sem alguma coisa para se lembrar de mim. – Eu me lembrarei de você, senhora. Não tema isso. – Aceite-a! Dunk agarrou a trança dela e puxou seu rosto até o dele. Era estranho com a muleta e a diferença de altura. Ele quase caiu antes de colocar os lábios sobre os dela. Beijou-a com força. Uma das mãos dela foi atrás de seu pescoço, a outra ao redor de suas costas. Ele aprendeu mais sobre beijos em um segundo do que já sabia de observar. Mas, quando finalmente se separaram, ele desembainhou o punhal. – Eu sei o que quero para me lembrar de você, senhora. Egg estava esperando por ele no portão, montado em um novo e belo palafrém alazão e segurando as rédeas de Meistre. Quando Dunk trotou até eles em cima de Trovão, o garoto pareceu surpreso. – Ela disse que queria lhe dar um cavalo novo, sor. – Nem senhoras nobres conseguem tudo o que querem – Dunk disse, enquanto cavalgavam pela ponte levadiça. – Não era um cavalo que eu queria. – O fosso estava tão cheio que ameaçava transbordar pelas margens. – Peguei outra coisa para me lembrar dela, em vez disso. Uma mecha daquele cabelo vermelho. – Levou a mão por sob o manto, pegou a trança e sorriu. Na gaiola de ferro na encruzilhada, os cadáveres ainda se abraçavam. Pareciam solitários, abandonados. Até as moscas os abandonaram, e os corvos também. Só alguns pedaços de pele e cabelo permaneciam sobre os ossos dos mortos. Dunk parou, franzindo o cenho. Seu tornozelo doía com a cavalgada, mas não importava. A dor era tão parte da cavalaria quanto espadas e escudos. – Para que lado é o sul? – perguntou para Egg. Era difícil saber quando o mundo era todo chuva e lama, e o céu estava cinza como uma muralha de granito. – Aquele é o sul, sor – Egg apontou. – Aquele é o norte. – Solarestival é para o sul. Seu pai. – A Muralha é para o norte. Dunk olhou para ele. – É um longo caminho a percorrer. – Tenho um cavalo novo, sor. – É verdade. – Dunk teve que sorrir. – E por que quer ver a Muralha? – Bem – Egg respondeu. – Ouvi dizer que é alta.

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