O Cavaleiro Misterioso
Um conto dos Sete Reinos
Caía uma leve chuva de verão quando Dunk e Egg se despediram de Septo de Pedra.
Dunk cavalgava seu velho cavalo de guerra, Trovão, com Egg ao seu lado no jovem
palafrém animado que ele chamara de Chuva, levando a mula deles, Meistre. Nas costas de
Meistre estavam empacotados a armadura de Dunk e os livros de Egg, os sacos de dormir, a
tenda, as roupas, vários pedaços de carne salgada dura, meio jarro de hidromel e dois odres
de água. O velho chapéu de palha de Egg, de abas largas e frouxas, mantinha a chuva longe da
cabeça da mula. O garoto cortara buracos para as orelhas de Meistre. O novo chapéu de palha
de Egg estava em sua cabeça. Para Dunk, exceto pelos buracos das orelhas, os dois chapéus
eram muito parecidos.
Quando se aproximaram dos portões da cidade, Egg deu um puxão brusco na rédea. Sobre a
entrada, a cabeça de um traidor fora empalada em uma haste de ferro. Pela aparência, era
recente, a carne mais rosada do que verde, mas os corvos carniceiros já haviam feito seu
trabalho. Os lábios e as bochechas do morto estavam dilacerados e irregulares; seus olhos
eram dois buracos marrons chorando lentas lágrimas vermelhas conforme as gotas de chuva se
misturavam com o sangue seco. A boca do morto estava aberta, como se estivesse discursando
para os viajantes que passavam pelo portão abaixo.
Dunk vira estes sinais antes.
– Em Porto Real, quando eu era menino, certa vez roubei uma cabeça do alto da haste –
contou para Egg. Na verdade, fora Furão quem escalara a muralha para surrupiar a cabeça,
depois que Rafe e Pudim disseram que ele não teria coragem, mas, quando os guardas vieram
correndo, ele a jogou lá embaixo e Dunk a pegou. – Devia ser algum senhor rebelde ou
cavaleiro ladrão. Ou talvez apenas um assassino comum. Uma cabeça é uma cabeça. Todas
parecem iguais depois de alguns dias em uma haste. – Seus três amigos e ele haviam usado a
cabeça para aterrorizar as garotas da Baixada das Pulgas. Eles as perseguiam pelos becos e as
faziam dar um beijo na cabeça antes de deixá-las ir embora. Aquela cabeça foi muito beijada,
ele se lembrava. Não havia uma garota em Porto Real que pudesse correr mais rápido do que
Rafe. Mas era melhor Egg não ouvir essa parte. Furão, Rafe e Pudim. Pequenos monstros
aqueles três, e eu era o pior de todos. Seus amigos e ele tinham ficado com a cabeça até que
a carne enegreceu e começou a se desfazer. Aquilo acabou com a graça de perseguir as
garotas, então numa noite invadiram uma loja de panelas e jogaram o que restou dentro de uma
caldeira. – Os corvos sempre vêm atrás dos olhos – contou para Egg. – Então as bochechas
ficam fundas, a carne se torna verde... – Apertou os olhos. – Espere. Conheço este rosto.
– Conhece, sor – Egg confirmou. – Há três dias. O septão corcunda que ouvimos pregar
contra Lorde Corvo de Sangue.
Ele se lembrou. Era um homem santo juramentado aos Sete, mesmo que tenha pregado
traição.
“Suas mãos estão escarlates com o sangue do irmão, e com o sangue de seus jovens
sobrinhos também”, o corcunda declarara para a multidão que se reunia na praça do mercado.
“Uma sombra veio ao seu comando para estrangular os filhos do corajoso Príncipe Valarr no
útero da mãe. Onde está nosso Jovem Príncipe agora? Onde está o irmão dele, o doce
Matarys? Para onde foram o bom Rei Daeron e o destemido Baelor Quebra-Lança? O túmulo
os reivindicou, cada um deles, e ainda assim ele resiste, esta ave pálida com bico sangrento
que se empoleira no ombro do Rei Aerys e grasna em seu ouvido. A marca do inferno está em
seu rosto e em seu olho vazio, e ele nos tem trazido seca, pestilência e morte. Levantem-se, eu
digo, e lembrem-se do nosso rei verdadeiro do outro lado do mar. São sete deuses, e sete
reinos, e o Dragão Negro gerou sete filhos! Levantem-se, meus senhores e senhoras.
Levantem-se, bravos cavaleiros e resistentes fazendeiros, e derrubem Corvo de Sangue,
aquele feiticeiro vil, para que seus filhos e os filhos de seus filhos não sejam amaldiçoados
para sempre.”
Cada palavra era traição. Mesmo assim, foi um choque vê-lo ali, com buracos onde antes
estavam os olhos.
– É ele, sim – Dunk concordou. – Outra boa razão para deixar esta cidade para trás. – Deu
um toque com a espora em Trovão e eles passaram pelos portões de Septo de Pedra, ouvindo
o som suave da chuva. Quantos olhos o Lorde Corvo de Sangue tem?, a charada dizia. Mil
olhos e mais um. Alguns alegavam que a Mão do Rei era um aluno das artes das trevas que
podia mudar seu rosto, ficar parecido com um cachorro de um olho só, até mesmo se
transformar em bruma. Dizia-se que matilhas de lobos cinzentos cadavéricos caçavam seus
inimigos, e corvos carniceiros espiavam para ele e sussurravam segredos em seus ouvidos. A
maior parte das histórias era só história, Dunk não duvidava, mas ninguém podia duvidar que
Corvo de Sangue tinha informantes em todas as partes.
Vira o homem uma vez com seus próprios olhos, em Porto Real. Brancos como ossos eram a
pele e o cabelo de Brynden Rivers, e seu olho – ele só tinha um, o outro tinha perdido para o
meio-irmão Açoamargo no Campo do Capim-Vermelho – era vermelho como sangue. Na
bochecha e no pescoço ele tinha uma marca de nascença cor de vinho que havia dado origem
ao seu apelido.
Quando a cidade ficou bem para trás, Dunk limpou a garganta e disse:
– Mau negócio cortar cabeças de septões. Tudo o que ele fez foi falar. Palavras são vento.
– Algumas palavras são vento, sor. Outras são traição. – Egg era tão magro quanto uma vara,
todo costelas e cotovelos, mas tinha uma boca grande.
– Agora você fala como um principezinho de verdade.
Egg tomou aquilo como insulto, e era.
– Ele pode ter sido um septão, mas estava pregando mentiras, sor. A seca não foi culpa de
Lorde Corvo de Sangue, nem a Grande Praga da Primavera.
– Pode ser, mas se começarmos a cortar cabeças de todos os tolos e mentirosos, metade das
cidades dos Sete Reinos ficará vazia.
Seis dias mais tarde, a chuva era apenas uma lembrança.
Dunk tirara sua túnica para desfrutar o calor do sol em sua pele. Quando uma brisa suave
apareceu, calma, fresca e perfumada como o hálito de uma donzela, ele suspirou.
– Água – anunciou. – Sente o cheiro? O lago não deve estar longe agora.
– Tudo o que consigo sentir é o cheiro de Meistre, sor. Ela fede. – Egg deu um puxão na
rédea da mula. Meistre deteve-se para pastar na relva ao lado da estrada, como fazia de
tempos em tempos.
– Há uma velha estalagem na margem do lago. – Dunk parara ali uma vez, quando era
escudeiro do velho. – Sor Arlan dizia que fabricavam uma boa cerveja escura. Talvez
pudéssemos provar um pouco enquanto esperamos a balsa.
Egg lhe deu um olhar esperançoso.
– Para empurrar a comida para baixo, sor?
– Que comida poderia ser?
– Um pedaço de assado? – o menino sugeriu. – Um pouco de pato, uma tigela de ensopado?
O que quer que tenham, sor.
A última refeição quente deles fora há três dias. Desde então, estavam vivendo a base de
frutas caídas e tiras de carne salgada velha, tão duras quanto madeira. Seria bom colocar um
pouco de comida de verdade na barriga antes de começarmos o longo caminho na direção
da Muralha, no norte.
– Podíamos passar a noite também – sugeriu Egg.
– Meu senhor quer uma cama de penas?
– Palha seria o bastante para mim, sor – Egg respondeu, ofendido.
– Não temos dinheiro para camas.
– Temos vinte e duas moedas, três estrelas, um veado de prata e aquela granada lascada, sor.
Dunk coçou a orelha.
– Pensei que tivéssemos dois veados de prata.
– Tínhamos, até que você comprou a tenda. Agora temos um.
– Não teremos nenhum se começarmos a dormir em estalagens. Quer dividir a cama com
qualquer mascate e acordar com pulgas? – Dunk bufou. – Eu não. Tenho minhas próprias
pulgas, e elas não se dão bem com estranhos. Dormiremos sob as estrelas.
– As estrelas são boas – Egg concordou. – Mas o chão é duro, sor, e de vez em quando é
bom ter um travesseiro sob a cabeça.
– Travesseiros são para príncipes. – Egg era tão bom escudeiro quanto qualquer cavaleiro
poderia desejar, mas de vez em quando parecia agir como um príncipe. O garoto tem o
sangue do dragão, nunca se esqueça. Dunk, por sua vez, tinha sangue de mendigo... ou era o
que costumavam dizer para ele na Baixada das Pulgas, quando lhe falavam que era certo que
seria enforcado. – Talvez possamos pagar um pouco de cerveja e uma refeição quente, mas
não vou desperdiçar boa moeda com uma cama. Precisamos economizar para a balsa. – Da
última vez que cruzou o lago, a balsa custava apenas algumas moedas, mas isso fora há seis
anos, ou talvez sete. Tudo ficara mais caro desde aquela época.
– Bem – Egg sugeriu –, podíamos usar minha bota para atravessar.
– Podíamos – Dunk concordou –, mas não vamos. – Usar a bota era perigoso. A notícia
poderia se espalhar. As notícias sempre se espalham. Seu escudeiro não era careca por
acaso. Egg tinha os olhos púrpuras da antiga Valíria e o cabelo que brilhava como ouro velho
e fios de prata entretecidos. Ele também podia usar um dragão de três cabeças como broche
enquanto deixava o cabelo crescer. Aqueles eram tempos perigosos em Westeros e... bem, era
melhor não arriscar. – Outra palavra sobre sua maldita bota e eu a acerto na sua orelha com
tanta força que você voará para o outro lado do lago.
– Eu preferiria nadar, sor. – Egg nadava bem, e Dunk não. O garoto se virou na sela. – Sor?
Alguém está vindo na estrada atrás de nós. Escuta os cavalos?
– Não sou surdo. – Dunk podia ver a poeira também. – Um grupo grande. E com pressa.
– Acha que podem ser foras da lei, sor? – Egg se ergueu nos estribos, mais ansioso do que
assustado. O garoto era assim.
– Foras da lei seriam mais silenciosos. Só senhores fazem tanto barulho. – Dunk sacudiu o
punho da espada para soltar a lâmina da bainha. – Mesmo assim, vamos sair da estrada e
deixá-los passar. Há senhores e senhores. – Não custava ser um pouco cauteloso. As estradas
não eram tão seguras quanto na época em que o bom Rei Daeron se sentava no Trono de Ferro.
Egg e ele se esconderam atrás de um espinheiro. Dunk pegou o escudo e o colocou no braço.
Era uma coisa velha, alta e pesada, com formato triangular, feito de pinho e contornado com
ferro. Ele o comprara no Septo de Pedra para substituir o escudo que o Longinch havia feito
em pedaços quando lutaram. Dunk não tivera tempo de pintá-lo com seu olmo e a estrela
cadente, então a peça ainda ostentava o brasão de armas do último dono: um homem enforcado
balançando triste e cinzento embaixo de uma árvore. Não era um símbolo que teria escolhido
para si mesmo, mas o escudo fora barato.
Os primeiros cavaleiros passaram galopando poucos segundos depois; dois jovens fidalgos
montados em um par de corcéis. O que montava o baio usava um elmo de aço dourado, com o
rosto aberto e três plumas altas: uma branca, uma vermelha, uma dourada. Plumas das mesmas
cores adornavam a proteção sobre a crina do cavalo. O garanhão negro ao seu lado estava
com arreios azuis e dourados. Seus enfeites ondulavam ao vento quando passaram trovejando.
Lado a lado, os cavaleiros coloriam o percurso, gritando e rindo, os longos mantos flutuando
atrás de si.
Um terceiro senhor os seguia mais serenamente, na frente de uma grande coluna. Havia duas
dúzias de pessoas no grupo, cavalariços, cozinheiros e criados, todos para atender os três
cavaleiros mais os homens de armas e besteiros montados, e uma dúzia de pesadas carroças
carregadas com armaduras, tendas e provisões. Pendurado na sela do senhor estava o escudo,
laranja-escuro, ostentando três castelos negros.
Dunk conhecia aquele brasão, mas de onde? O senhor que as usava era um velho, sombrio e
de boca amarga, com uma barba grisalha cortada rente. Ele deve ter estado na Campina de
Vaufreixo, Dunk pensou. Ou talvez tenhamos servido em seu castelo quando eu era escudeiro
de Sor Arlan. O velho cavaleiro andante prestara serviços em tantas fortalezas e castelos
distintos ao longo dos anos que Dunk não se lembrava nem de metade deles.
O senhor puxou as rédeas abruptamente, olhando feio para os espinheiros.
– Você. Nos arbustos. Mostre-se. – Atrás dele, dois besteiros deslizaram as setas até o
encaixe das armas. O restante seguiu seu caminho.
Dunk saiu da relva alta, o escudo sobre o braço, a mão direita repousando sobre o cabo da
espada longa. Seu rosto era uma máscara marrom-avermelhada da poeira que os cavalos
levantavam, e estava nu da cintura para cima. Tinha uma aparência desalinhada, ele sabia,
embora, como era de esperar, seu tamanho fez com que o outro se detivesse.
– Não queremos encrenca, meu senhor. Há só dois de nós, meu escudeiro e eu. – Fez sinal
para que Egg avançasse.
– Escudeiro? Afirma ser um cavaleiro?
Dunk não gostava do jeito que o estranho olhava para ele. Aqueles olhos podem esfolar um
homem. Parecia prudente tirar a mão da espada.
– Sou um cavaleiro andante, procurando serviço.
– Cada cavaleiro ladrão que enforquei afirmou o mesmo. Seu escudo pode ser profético,
sor... se é que é sor. Uma forca e um homem enforcado. Esse é seu brasão?
– Não, senhor. Preciso pintar novamente o escudo.
– Por quê? Você o roubou de um cadáver?
– Eu o comprei, por boas moedas. – Três castelos, negro sobre laranja, onde já vi isso
antes? – Não sou ladrão.
Os olhos do senhor eram lascas de pedra.
– Como conseguiu essa cicatriz na bochecha? Um corte de chibata?
– Um punhal. Embora meu rosto não seja problema seu, senhor.
– Eu julgarei o que é problema meu.
A essa altura, os dois cavaleiros mais jovens haviam trotado de volta para ver o que tinha
atrasado o grupo.
– Aí está você, Gormy – chamou o cavaleiro de negro, um jovem magro e ágil, com o rosto
bem escanhoado e traços elegantes. O cabelo negro caía reluzente até o colarinho. Seu gibão
era feito de seda azul-escura com acabamento em cetim dourado. Em seu peito, uma cruz
serrilhada fora bordada com fio dourado, com um violino dourado no primeiro e no terceiro
quadrante, e uma espada dourada no segundo e no quarto. Seus olhos tinham o mesmo azulescuro
do gibão e brilhavam de diversão. – Alyn ficou com medo de que tivesse caído do
cavalo. Uma desculpa palpável, me parece, já que eu estava prestes a fazê-lo comer poeira.
– Quem são esses dois bandidos? – perguntou o cavaleiro no baio.
Egg se eriçou com o insulto.
– Não tem motivo para nos chamar de bandidos, meu senhor. Quando vimos sua poeira,
pensamos que vocês pudessem ser os foras da lei; foi o único motivo pelo qual nos
escondemos. Este é Sor Duncan, o Alto, e eu sou seu escudeiro.
Os fidalgos não prestaram mais atenção do que teriam prestado ao coaxar de um sapo.
– Acho que é o maior desajeitado que já vi – declarou o cavaleiro das três penas. Tinha um
rosto rechonchudo sob cabelos cacheados da cor de mel escuro. – Aposto que tem mais de
dois metros. Vai ser um tremendo estrondo se chegar a desmoronar.
Dunk sentiu o rubor crescer no rosto. Você perderia sua aposta, pensou. Da última vez que
fora medido, o irmão de Egg, Aemon, afirmara que faltavam dois centímetros para dois
metros.
– Esse é seu cavalo de guerra, Sor Gigante? – disse o senhor das penas. – Imagino que
podemos abatê-lo pela carne.
– Lorde Alyn com frequência esquece a cortesia – o cavaleiro de cabelo negro disse. – Por
favor, perdoe as palavras grosseiras dele, sor. Alyn, você vai pedir desculpas a Sor Duncan.
– Se é preciso. Pode me perdoar, sor? – Sem esperar resposta, deu meia-volta no baio e
trotou de volta para a estrada.
O outro continuou onde estava.
– Está indo para o casamento, sor?
Algo no tom de voz dele fez Dunk querer fazer uma reverência. Resistiu ao impulso e disse:
– Estamos indo para a balsa, meu senhor.
– Assim como nós... mas os únicos senhores por aqui são Gormy e aquele esbanjador que
acaba de nos deixar, Alyn Cockshaw. Sou um cavaleiro andante vagabundo como você. Sor
John, o Violinista, me chamam. – Era o tipo de nome que um cavaleiro andante poderia
escolher, mas Dunk nunca vira um cavaleiro andante enfeitado, armado ou montado com tal
esplendor. O cavaleiro andante de ouro, pensou.
– Sabe meu nome. Meu escudeiro se chama Egg.
– Muito prazer, sor. Venha, cavalgue conosco até Alvasparedes e quebre algumas lanças
para ajudar Lorde Butterwell a celebrar seu novo casamento. Aposto que pode se dar muito
bem.
Dunk não participava de uma justa desde o campo de Vaufreixo. Se eu puder ganhar alguns
resgates, comeremos bem durante a cavalgada para o norte, pensou, mas o senhor com os
três castelos no escudo disse:
– Sor Duncan precisa continuar sua viagem, assim como nós.
John, o Violinista, não prestou atenção no velho.
– Eu adoraria cruzar espadas com você, sor. Combati homens de muitas terras e raças, mas
nunca um do seu tamanho. Seu pai era tão grande quanto você?
– Nunca conheci meu pai, sor.
– Fico triste em ouvir isso. Meu próprio pai foi tirado de mim cedo demais. – O Violinista
se virou para o senhor dos três castelos. – Devíamos convidar Sor Duncan para se juntar à
nossa alegre companhia.
– Não precisamos de um tipo desses.
Dunk estava sem palavras. Cavaleiros andantes sem dinheiro não eram convidados com
frequência para cavalgar com senhores bem-nascidos. Eu tenho mais em comum com os
criados deles. A julgar pelo comprimento da coluna, Lorde Cockshaw e o Violinista tinham
trazido cavalariços para cuidar dos cavalos, cozinheiros para alimentá-los, escudeiros para
limpar as armaduras, guardas para defendê-los. Dunk tinha Egg.
– Um tipo desses? – O Violinista deu uma gargalhada. – Qual é o tipo dele? O tipo grande?
Olhe para o tamanho dele. Queremos homens fortes. Espadas jovens valem mais do que
nomes velhos, ouço isso com frequência.
– Dos tolos. Não sabe nada sobre este homem. Ele pode ser um bandido, ou um dos espiões
de Lorde Corvo de Sangue.
– Não sou espião de ninguém – Dunk respondeu. – E o senhor não precisa falar de mim
como se eu fosse surdo, morto ou estivesse em Dorne.
Aqueles olhos de pedra o observaram.
– Dorne seria um bom lugar para você, sor. Tem minha permissão para ir para lá.
– Não preste atenção nele – o Violinista disse. – É uma velha alma azeda, suspeita de todo
mundo. Gormy, tenho um bom pressentimento sobre este camarada. Sor Duncan, virá conosco
para Alvasparedes?
– Senhor, eu... – Como poderia dividir um acampamento com pessoas assim? Os criados
levantariam os pavilhões, os cavalariços escovariam os cavalos, os cozinheiros serviriam um
capão ou um pedaço de carne para cada um, enquanto Dunk e Egg roeriam tiras de carne seca
salgada. – Eu não poderia.
– Veja – disse o senhor dos três castelos –, ele sabe qual é o lugar dele, e não é conosco. –
Deu meia-volta no cavalo, na direção da estrada. – A essa altura, Lorde Cockshaw está três
quilômetros à frente.
– Suponho que posso alcançá-lo de novo. – O Violinista deu a Dunk um sorriso de
desculpas. – Talvez nos encontremos novamente algum dia. Espero que sim. Eu adoraria
experimentar minha lança em você.
Dunk não sabia o que responder.
– Boa sorte nas listas, sor – finalmente conseguiu dizer, mas então Sor John já estava dando
meia-volta para seguir a coluna. O senhor mais velho cavalgou atrás dele. Dunk estava feliz
em vê-lo partir. Não gostara dos olhos impiedosos nem da arrogância de Lorde Alyn. O
Violinista fora bem agradável, mas havia algo estranho nele também.
– Dois violinos e duas espadas, uma cruz dentada – disse para Egg enquanto observavam o
pó da partida deles. – Que casa é essa?
– Nenhuma, sor. Nunca vi aquele escudo em nenhuma relação de brasões de armas.
Talvez, no fim das contas, fosse um cavaleiro andante. Dunk tinha inventado seu próprio
brasão na campina de Vaufreixo, quando uma titereira chamada Tanselle Alta Demais lhe
perguntara o que queria pintar em seu escudo.
– O senhor mais velho era algum parente da Casa Frey? – Os Frey ostentavam castelos em
seus escudos, e suas terras não eram muito longe dali.
Egg revirou os olhos.
– O brasão de armas dos Frey tem duas torres azuis conectadas por uma ponte, em um fundo
cinza. Aqueles eram três castelos, negro sobre laranja, sor. Viu alguma ponte?
– Não. – Ele faz isso só para me irritar. – E da próxima vez que revirar os olhos para mim,
vou dar um tapão tão forte na sua orelha que seus olhos vão virar para dentro da sua cabeça
para sempre.
Egg pareceu arrependido.
– Eu nunca pretendi...
– Não importa o que pretendeu. Só me diga quem ele é.
– Gormon Peake, Lorde de Pontestrelada.
– Isso é para baixo, na Campina, não é? Ele realmente tem três castelos?
– Só no escudo, sor. A Casa Peake já teve três castelos no passado, mas dois deles foram
perdidos.
– Como alguém perde dois castelos?
– Lutando do lado do dragão negro, sor.
– Ah. – Dunk se sentiu estúpido. Isso de novo.
Há duzentos anos, o reino vinha sendo governado pelos descendentes de Aegon, o
Conquistador, e seus irmãs, que tinham unificado os Sete Reinos e forjado o Trono de Ferro. O
estandarte real ostentava o dragão de três cabeças da Casa Targaryen, vermelho sobre fundo
negro. Há dezesseis anos, um filho bastardo do Rei Aegon IV, chamado Daemon Blackfyre, se
erguera em revolta contra seu irmão legítimo. Daemon usava o dragão de três cabeças em seu
estandarte também, mas inverteu as cores, como muitos bastardos faziam. Sua revolta terminou
no Campo do Capim-Vermelho, onde Daemon e seus filhos gêmeos morreram sob a chuva de
flechas de Lorde Corvo de Sangue. Os rebeldes que sobreviveram e dobraram os joelhos
foram perdoados, mas alguns perderam terras, títulos e ouro. Todos deram reféns para garantir
a lealdade futura.
Três castelos, negro sobre laranja.
– Eu me lembro agora. Sor Arlan nunca gostou de falar do Campo do Capim-Vermelho, mas
uma vez, em suas bebedeiras, ele me contou como o filho de sua irmã tinha morrido. – Ele
quase podia ouvir a voz do velho outra vez, sentir o cheiro do vinho em seu hálito. – Roger de
Centarbor, era o nome dele. Sua cabeça foi esmagada por uma maça empunhada por um lorde
com três castelos em seu escudo. – Lorde Gormon Peake. O velho nunca soube o nome dele.
Ou nunca quis saber. Àquela altura, Lorde Peake, John, o Violinista, e o grupo deles não eram
mais do que uma mancha de pó vermelho ao longe. Foi há dezesseis anos. O Pretendente
morreu, e aqueles que o seguiram foram exilados ou perdoados. De qualquer modo, não tem
nada a ver comigo.
Por algum tempo, cavalgaram sem falar, escutando os gritos lamentosos das aves. Três
quilômetros depois, Dunk limpou a garganta e disse.
– Ele falou Butterwell. As terras dele estão perto?
– Do outro lado do lago, sor. Lorde Butterwell era o mestre da moeda quando o Rei Aegon
se sentava no Trono de Ferro. O Rei Daeron o fez sua Mão, mas não por muito tempo. Seu
brasão de armas tem ondas verdes, brancas e amarelas, sor. – Egg adorava exibir seus
conhecimentos em heráldica.
– É amigo do seu pai?
Egg fez uma careta.
– Meu pai nunca gostou dele. Na Rebelião, o segundo filho de Lorde Butterwell lutou pelo
Pretendente e o mais velho, pelo rei. Assim ele tinha certeza de estar do lado vencedor. Lorde
Butterwall não lutou por ninguém.
– Alguns chamariam isso de prudência.
– Meu pai chama de covardia.
Sim, ele faria isso. O Príncipe Maekar era um homem duro, orgulhoso e cheio de desprezo.
– Temos que ir por Alvasparedes para chegar à estrada do rei. Por que não encher a
barriga? – Só o pensamento era o bastante para que suas entranhas fizessem barulho. – Pode
ser que um dos convidados do casamento precise de escolta para voltar para casa.
– Você disse que estávamos indo para o Norte.
– A Muralha está em pé há oito mil anos, e ainda vai durar um bom tempo. São mais de
cinco mil quilômetros daqui até lá, que poderíamos percorrer com mais prata na nossa bolsa.
– Dunk estava se imaginando em cima de Trovão, enfrentando aquele velho senhor de rosto
azedo com os três castelos no escudo. Seria bom. “Foi o escudeiro do velho Sor Arlan quem
o derrotou”, eu poderia dizer para ele quando viesse pagar o resgate por suas armas e
armadura. “O menino que substituiu o menino que você matou.” O velho teria gostado
disso.
– Não está pensando em entrar nas listas, está, sor?
– Talvez seja hora.
– Não é, sor.
– Talvez seja hora de lhe dar um bom tapão na orelha. – Eu só precisaria ganhar duas
disputas. Se eu conseguisse dois resgates e pagasse só um, poderíamos comer como reis
durante um ano. – Se tiver um corpo a corpo, posso entrar nele. – O tamanho e a força de
Dunk seriam mais úteis em um corpo a corpo do que nas listas.
– Não é costume fazer um corpo a corpo em um casamento, sor.
– Mas é costume ter um banquete. Temos um longo caminho a percorrer. Por que não partir
com nossas barrigas cheias pelo menos uma vez?
O sol estava baixo no oeste quando viram o lago, as águas reluzindo avermelhadas e douradas,
brilhantes como uma folha de cobre polido. Quando vislumbraram as pequenas torres da
estalagem acima de alguns salgueiros, Dunk vestiu a túnica suada novamente e parou para
jogar um pouco de água no rosto. Limpou a poeira da estrada o melhor que pôde, depois
passou os dedos molhados no emaranhado grosso de cabelos raiados pelo sol. Não havia o
que fazer a respeito de seu tamanho ou da cicatriz que marcava sua bochecha, mas queria, de
algum modo, aparentar menos um cavaleiro ladrão selvagem.
A estalagem era maior do que esperava, um lugar cinzento, grande e espaçoso, de madeira e
com torres, metade construída em palafitas sobre a água. Um caminho de tábuas cortadas
grosseiramente fora feito sobre a margem lodosa do lago para o desembarque da balsa, mas
nem a balsa nem o balseiro estavam à vista. Do outro lado do caminho havia um estábulo com
telhado de palha. Um muro de pedra seca separava o pátio, mas o portão estava aberto. Lá
dentro, encontraram um poço e um bebedouro.
– Cuide dos animais – Dunk disse a Egg. – Mas assegure-se de que não bebam muito. Vou
pedir um pouco de comida.
Encontrou a estalajadeira varrendo os degraus.
– Vieram pegar a balsa? – a mulher perguntou. – Chegaram tarde demais. O sol está se
pondo, e Ned não gosta de atravessar à noite, a menos que a lua esteja cheia. Ele estará de
volta no primeiro horário da manhã.
– Sabe quanto ele cobra?
– Três moedas para cada um de vocês e dez para cada cavalo.
– Temos dois cavalos e uma mula.
– São dez moedas para a mula também.
Dunk fez as contas de cabeça e chegou a trinta e seis, mais do que esperava gastar.
– Da última vez que fiz esse caminho eram só duas moedas, e seis para os cavalos.
– Veja com Ned, não tenho nada a ver com isso. Se está procurando uma cama, não tenho
para oferecer. Lorde Shawney e Lorde Costayne trouxeram seus séquitos. Estou lotada até a
tampa.
– Lorde Peake está aqui também? – Ele matou o escudeiro de Sor Arlan. – Ele estava com
Lorde Cockshaw e John, o Violinista.
– Ned os levou para o outro lado na última viagem. – Ela olhou Dunk de cima a baixo. –
Você fazia parte do grupo dele?
– Nós nos encontramos na estrada, só isso. – Um cheiro bom que vinha das janelas da
estalagem fez a boca de Dunk se encher de água. – Gostaríamos de um pouco do que está
assando, se não for muito caro.
– É javali – a mulher falou. – Bem temperado e servido com cebolas, cogumelos e purê de
nabos.
– Podemos passar sem o purê. Algumas fatias do javali e uma caneca da sua boa cerveja
escura seria o bastante para nós. Quanto pediria por isso? E talvez pudéssemos conseguir um
lugar no chão do estábulo para dormir à noite?
Aquilo foi um erro.
– Os estábulos são para os cavalos. É por isso que chamamos de estábulos. Você é tão
grande quanto um cavalo, posso garantir, mas só vejo duas pernas. – Ela varreu na direção
dele, para mandá-lo embora. – Não podem esperar que eu alimente todos os Sete Reinos. O
javali é para meus convidados. Assim como minha cerveja. Não quero ter senhores dizendo
que fiquei sem comida ou bebida antes que ficassem satisfeitos. O lago está cheio de peixes, e
você vai encontrar outros velhacos acampando perto dos troncos. Cavaleiros andantes, se
acredita neles. – Seu tom de voz deixava claro que ela não acreditava. – Talvez tenham
comida para dividir. Não é da minha conta. Vá embora agora, tenho trabalho a fazer. – A porta
se fechou com um baque sólido atrás dela antes que Dunk sequer pensasse em perguntar onde
podia achar esses troncos.
Encontrou Egg sentado no bebedouro, molhando os pés na água e abanando o rosto com o
grande chapéu mole.
– Estão assando porco, sor? Sinto cheiro de porco.
– Javali – Dunk respondeu em um tom de voz triste. – Mas quem quer javali quando temos
uma boa carne seca?
Egg fez uma careta.
– Posso, por favor, comer minhas botas em vez disso, sor? Farei um par novo com a carne
seca. É mais dura.
– Não – Dunk falou, tentando não sorrir. – Não pode comer suas botas. Mais uma palavra e
vai comer meu punho. Tire os pés desse bebedouro. – Encontrou o elmo na mula e o jogou
para Egg. – Tire um pouco de água do poço e encharque a carne. – Se a carne seca não fosse
mergulhada em água por um bom tempo, era provável que quebrasse o dente de alguém. O
gosto ficava melhor quando era embebida em cerveja, mas água também servia. – Mas não use
o bebedouro, não quero que fique com gosto do seu pé.
– Meu pé só melhoraria o sabor, sor – Egg disse, remexendo os dedos na água. Mas fez
como lhe fora pedido.
Não foi difícil encontrar os cavaleiros andantes. Egg espiou a fogueira deles tremeluzindo na
mata ao longo da margem do lado, então foram até lá, levando os animais. O menino carregava
o elmo de Dunk embaixo do braço, derramando água a cada passo que dava. A essa altura, o
sol era uma lembrança vermelha no oeste. Não demorou muito para que as árvores se
abrissem e eles se encontraram no que devia antigamente ter sido um bosque de represeiros.
Só um anel de troncos brancos e um emaranhado de raízes claras como ossos permaneciam
para mostrar onde as árvores haviam estado, quando os Filhos da Floresta governavam
Westeros.
Entre os troncos de represeiros, encontraram dois homens agachados perto de uma fogueira,
passando um odre de vinho de mão em mão. Seus cavalos estavam pastando na relva além do
bosque, e eles tinham arrumado suas armas e armaduras em pilhas organizadas. Um homem
muito mais jovem estava sentado separado dos outros dois, as costas apoiadas em uma
castanheira.
– Prazer em conhecê-los, sores – Dunk falou com voz alegre. Não era prudente pegar
homens armados desprevenidos. – Chamam-me Sor Duncan, o Alto. O garoto é Egg. Podemos
compartilhar a fogueira de vocês?
Um homem corpulento de meia-idade se levantou para recebê-los, vestido com elegância
esfarrapada. Um extravagante bigode ruivo emoldurava seu rosto.
– Prazer em conhecê-lo, Sor Duncan. Você é bem grande... e muito bem-vindo, certamente,
assim como seu rapaz. Egg, é isso? Que tipo de nome é esse, por favor?
– Um apelido, sor. – O garoto sabia que não devia admitir que Egg era apelido de Aegon.
Não para homens que não conhecia.
– De fato. O que aconteceu com seu cabelo?
Vermes, Dunk pensou. Diga que foram vermes, garoto.
Era a história mais segura, a história que contavam com mais frequência... embora algumas
vezes Egg resolvesse fazer alguma brincadeira infantil.
– Eu o raspei, sor. Pretendo ficar careca até ganhar minhas esporas.
– Um voto nobre. Sou Sor Kyle, o Gato do Pântano Nebuloso. Ali na castanheira está Sor
Glendon, ah, Ball. E aqui você tem o bom Sor Maynard Plumm.
Egg apurou os ouvidos ao som desse nome.
– Plumm... você é parente de Lorde Viserys Plumm, sor?
– Distante – confessou Sor Maynard, um homem alto, magro, de ombros inclinados e longos
cabelos louros lisos. – Embora eu duvide que sua senhoria admita isso. Pode-se dizer que ele
é dos Plumm que se deram bem, enquanto eu não sou. – O manto de Plumm era púrpura,
embora desbotado e desgastado nas pontas. Um broche de pedra da lua do tamanho de um ovo
de galinha prendia o manto em seu ombro. Além disso, ele vestia um traje de tecido grosso de
cor parda e couro marrom manchado.
– Temos carne seca – Dunk ofereceu.
– Sor Maynard tem um saco de maçãs – disse Kyle, o Gato. – E eu tenho ovos em conserva
e cebolas. Ora, juntos temos os ingredientes para um banquete! Sente-se, sor. Temos uma bela
variedade de troncos para seu conforto. Ficaremos aqui até metade da manhã, a menos que eu
erre meu palpite. Há apenas uma balsa, e não é grande o bastante para todos nós. Os senhores
e suas comitivas devem cruzar primeiro.
– Ajude-me com os cavalos – Dunk disse para Egg. Juntos tiraram as selas de Trovão,
Chuva e Meistre.
Só quando os animais estavam alimentados, beberam água e foram amarrados para a noite
que Dunk aceitou o odre de vinho que Sor Maynard lhe ofereceu.
– Até vinho azedo é melhor do que nenhum – disse Kyle, o Gato. – Beberemos safras
melhores em Alvasparedes. Dizem que Lorde Butterwell tem as melhores vinhas ao norte da
Árvore. Antigamente ele era Mão do Rei, assim como seu pai antes dele, e, além disso, dizem
que é um homem devoto e muito rico.
– Sua riqueza vem toda das vacas – Maynard Plumm comentou. – Ele devia ter um úbere
inchado no lugar dos braços. Esses Butterwell têm leite correndo nas veias, e os Frey não são
melhores. Este será um casamento de ladrões de gado e coletores de pedágio, um monte de
bolsos cheios juntando-se uns aos outros. Quando o Dragão Negro se ergueu, esse senhor das
vacas mandou um filho para Daemon e um para Daeron, para ter certeza de que haveria um
Butterwell no lado vencedor. Ambos pereceram no Campo do Capim-Vermelho e o caçula
morreu na primavera. É por isso que ele está celebrando esse novo casamento. A menos que
sua nova esposa lhe dê um filho, o nome Butterwell morrerá com ele.
– Como devia – Sor Glendon Ball deu outro golpe em sua espada com a pedra de amolar. –
O Guerreiro odeia covardes.
O desdém em sua voz fez Dunk dar uma boa olhada no jovem. As roupas de Sor Glendon
eram de tecido bom, mas bem gasto e descombinado, com a aparência de segunda mão. Tufos
de cabelo castanho-escuro saíam por baixo do meio elmo de ferro. O rapaz era baixo e
robusto, com olhos pequenos e juntos, ombros grossos e braços musculosos. Suas
sobrancelhas eram desgrenhadas como duas lagartas após uma primavera úmida; o nariz,
bulboso; o queixo, belicoso. E era jovem. Dezesseis anos, talvez. Não mais do que dezoito.
Dunk podia tê-lo tomado pelo escudeiro de Sor Kyle se não o tivessem chamado de “sor”. O
rapaz tinha espinhas no rosto no lugar de bigodes.
– Há quanto tempo é um cavaleiro? – Dunk lhe perguntou.
– Tempo suficiente. Seis meses, quando a lua virar. Fui armado por Sor Morgan Dunstable
da Cascata do Acrobata, duas dúzias de pessoas viram, mas venho treinando para ser
cavaleiro desde que nasci. Cavalguei antes de andar e arranquei um dente da boca de um
adulto antes de perder um dos meus. Pretendo fazer meu nome em Alvasparedes e reivindicar
o ovo do dragão.
– O ovo do dragão? É o prêmio do campeão? De verdade? – O último dragão havia
perecido há meio século. No entanto, Sor Arlan vira uma ninhada de ovos. Eram duros como
pedra, mas bonitos de se ver, o velho contara para Dunk.
– Como Lorde Butterwell conseguiu um ovo de dragão?
– O Rei Aegon presenteou o pai de seu pai com o ovo depois de ser hospedado no velho
castelo por uma noite – contou Sor Maynard Plumm.
– Foi uma recompensa por algum ato de valor? – Dunk perguntou.
Sor Kyle riu.
– Alguns podem chamar assim. Supostamente, o velho Lorde Butterwell tinha três jovens
filhas donzelas quando Sua Graça dormiu lá. Na manhã seguinte, todas as três tinham
bastardos reais em suas pequenas barrigas. Um trabalho noturno quente, isso é o que foi.
Dunk já ouvira essa história. Aegon, o Indigno, tinha deitado com metade das donzelas do
reino e gerado bastardos em várias delas, supostamente. Pior, o velho rei legitimara todos eles
em seu leito de morte; os ilegítimos nascidos das moças de tavernas, das putas e das pastoras,
e os Grandes Bastardos, cujas mães eram bem-nascidas.
– Todos seríamos filhos bastardos do velho Rei Aegon se metade dessas histórias fosse
verdade.
– E quem diz que não somos? – Sor Maynard brincou.
– Devia ir conosco para Alvasparedes, Sor Duncan – Sor Kyle incentivou. – Seu tamanho é
perfeito para chamar a atenção de algum nobre. Podia encontrar um bom trabalho ali. Sei que
vou. Joffrey Caswell estará no casamento, o Lorde de Ponteamarga. Quando ele tinha três
anos, eu lhe fiz sua primeira espada. Esculpi em pinho, para caber na mão dele. Quando eu era
mais jovem, minha espada era juramentada para o pai dele.
– Essa também era esculpida em pinho? – Sor Maynard perguntou.
Kyle, o Gato, teve a graça de rir.
– Aquela espada era de bom aço, eu lhe garanto. Eu ficaria feliz em oferecê-la mais uma vez
a serviço do centauro. Sor Duncan, mesmo se escolher não participar do torneio, junte-se a
nós para o banquete de casamento. Teremos cantores, músicos, malabaristas e acrobatas, e
uma trupe de anões cômicos.
Dunk franziu o cenho.
– Egg e eu temos uma longa jornada pela frente. Vamos para o norte, até Winterfell. Lorde
Beron Stark está reunindo espadas para espantar as lulas-gigantes de sua costa.
– Lá é frio demais para mim – disse Sor Maynard. – Se quer matar lulas-gigantes, vá para
oeste. Os Lannister estão construindo navios para contra-atacar os homens de ferro em suas
ilhas natais. É assim que se coloca um fim em Dagon Greyjoy. Lutar com ele em terra firme é
infrutífero, ele simplesmente escorrega de volta para o mar. Você tem que derrotá-lo na água.
Aquilo tinha um fundo de verdade, mas a perspectiva de lutar contra homens de ferro no mar
não era algo de que Dunk gostasse. Tivera uma amostra daquilo no Senhora Branca,
navegando de Dorne até Vilavelha, quando vestiu sua armadura para ajudar a tripulação a
repelir alguns corsários. A batalha havia sido desesperada e sangrenta, e uma vez ele quase
caiu na água. Aquilo teria sido seu fim.
– O trono devia aprender uma lição com os Stark e os Lannister – Sor Kyle, o Gato,
declarou. – Pelo menos eles lutam. O que os Targaryen fazem? O Rei Aerys se esconde entre
seus livros, o Príncipe Rhaegel se exibe nu nos salões da Fortaleza Vermelha e o Príncipe
Maekar medita em Solarestival.
Egg cutucava o fogo com uma varinha, fazendo faíscas voarem pela noite. Dunk estava feliz
em vê-lo ignorar a menção ao nome de seu pai. Talvez ele tenha finalmente aprendido a
controlar a língua.
– Eu culpo Corvo de Sangue – Sor Kyle prosseguiu. – Ele é a Mão do Rei e mesmo assim
não faz nada, enquanto as lulas-gigantes espalham fogo e terror de norte a sul no Mar do
Poente.
Sor Maynard deu de ombros.
– Os olhos deles estão fixos em Tyrosh, onde Açoamargo está exilado, tramando com os
filhos de Daemon Blackfyre. Assim ele mantém os navios do rei por perto, para que não
tentem cruzar o mar.
– Sim, pode muito bem ser isso – Sor Kyle disse. – Mas muitos celebrariam o retorno de
Açoamargo. Corvo de Sangue é a raiz de todos os nossos males, um verme branco roendo o
coração do reino.
Dunk franziu o cenho, lembrando do septão corcunda de Septo de Pedra.
– Palavras como essas podem custar a cabeça de um homem. Alguns podem achar que o que
você está falando é traição.
– Como a verdade pode ser traição? – Kyle, o Gato, perguntou. – Na época do Rei Daeron,
um homem não tinha que temer falar o que estava em sua mente, mas e agora? – Fez um ruído
rude. – Corvo de Sangue colocou o Rei Aerys no Trono de Ferro, mas por quanto tempo?
Aerys é fraco e, quando ele morrer, vai ter uma guerra sangrenta entre Lorde Rivers e o
Príncipe Maekar pela coroa, a Mão contra o herdeiro.
– Você se esqueceu do Príncipe Rhaegel, meu amigo – Sor Maynard objetou, em um tom de
voz brando. – Ele é o próximo na linha de sucessão de Aerys, não Maekar, e seus filhos
depois dele.
– Rhaegel é fraco de espírito. Ora, não acho que tenha má vontade, mas o homem é bom
morto, assim como aqueles gêmeos dele. Agora, se vão morrer pela maça de Maekar ou pelos
feitiços de Corvo de Sangue...
Que os Sete nos salvem, Dunk pensou quando Egg falou em alto e bom tom.
– O Príncipe Maekar é irmão do Príncipe Rhaegel. Ele o ama. Nunca faria mal a ele ou aos
filhos dele.
– Quieto, garoto – Dunk rosnou para ele. – Esses cavaleiros não querem sua opinião.
– Posso falar se eu quiser.
– Não – Dunk respondeu. – Não pode. – Essa boca vai matá-lo um dia desses. E a mim
também, provavelmente. – Esta carne seca está na água por tempo suficiente, acho. Uma tira
para todos os nossos amigos, e rápido com isso.
Egg corou, e por meio segundo Dunk teve medo de que o menino retrucasse. Em vez disso,
ele se contentou com um olhar mal-humorado, irritado como só um garoto de onze anos
consegue se irritar.
– Sim, sor – disse, pegando a carne no fundo do elmo de Dunk. Sua cabeça raspada tinha um
brilho avermelhado pela fogueira enquanto ele distribuía a carne seca.
Dunk pegou seu pedaço e ficou preocupado. A água tinha transformado a carne de madeira
em couro, mas era tudo. Ele chupou uma tira no canto, provando o sal e tentando não pensar no
javali assado na estalagem, estalando na grelha e escorrendo gordura.
Enquanto o anoitecer se aprofundava, moscas e pernilongos vieram zumbindo do lago. As
moscas preferiam amolar os cavalos, mas os pernilongos gostavam mais de carne humana. O
único modo de não ser picado era sentar perto do fogo, respirando fumaça. Ser cozido ou ser
devorado, Dunk pensou sombrio, não há muita escolha. Coçou o braço e se aproximou do
fogo.
O odre de vinho logo deu a volta novamente. O vinho era azedo e forte. Dunk deu um bom
gole e passou o odre adiante, enquanto o Gato do Pântano Nebuloso começou a contar como
salvara a vida de Lorde de Ponteamarga durante a Rebelião Blackfyre.
– Quando o porta-estandarte de Lorde Armond caiu, saltei do meu cavalo, com traidores por
todos os lados...
– Sor – Glendon Ball o interrompeu. – Quem eram esses traidores?
– Os homens de Blackfyre, quero dizer.
A luz do fogo reluzia no aço que estava na mão de Sor Glendon. As marcas de varíola em
seu rosto ardiam vermelhas como feridas abertas, e cada um de seus tendões estava repuxado
como a corda de uma besta.
– Meu pai lutou pelo dragão negro.
Isso de novo, Dunk bufou. “Vermelho ou negro?” não era uma coisa que se perguntava a um
homem. Sempre causava problemas.
– Tenho certeza de que Sor Kyle não pretendeu insultar seu pai.
– Não mesmo – Sor Kyle concordou. – Essa é uma história antiga, a do dragão vermelho e
do negro. Não faz sentido brigar por causa disso agora, rapaz. Somos todos irmãos das
andanças aqui.
Sor Glendon pareceu pesar as palavras do Gato, para ver se estava sendo ridicularizado.
– Daemon Blackfyre não era um traidor. O velho rei deu a espada para ele. Viu
merecimento em Daemon, mesmo tendo nascido bastardo. Por que mais colocaria Blackfyre
em sua mão em vez de na de Daeron? O rei queria que Daemon tivesse o reino também.
Daemon era o melhor.
Um silêncio caiu sobre eles. Dunk podia ouvir o crepitar suave do fogo. Sentia pernilongos
rastejando na nuca. Deu um tapa neles, observando Egg, desejando que ele ficasse quieto.
– Eu era apenas um menino quando lutaram no Campo do Capim-Vermelho – disse, quando
parecia que ninguém mais falaria –, mas fui escudeiro de um cavaleiro que lutou pelo dragão
vermelho, e mais tarde servi outro que lutou pelo negro. Havia homens corajosos nos dois
lados.
– Homens corajosos – repetiu Kyle, o Gato, de um jeito um pouco débil.
– Heróis. – Glendon Ball virou o escudo para eles, para que todos pudessem ver o símbolo
pintado ali: uma bola de fogo vermelha e amarela ardendo em um fundo negro como a noite. –
Venho do sangue do herói.
– Você é filho do Bola de Fogo – Egg falou.
Era a primeira vez que viam Sor Glendon sorrir.
Sor Kyle, o Gato, estudou o garoto com mais atenção.
– Como pode ser? Quantos anos você tem? Quentyn Ball morreu...
– ... antes que eu nascesse – Sor Glendon completou –, mas em mim ele vive novamente. –
Colocou a espada na bainha. – Mostrarei para todos vocês em Alvasparedes, quando eu
reivindicar o ovo do dragão.
O dia seguinte provou que a profecia de Sor Kyle era verdadeira. A balsa de Ned de modo
algum era grande o bastante para acomodar todos aqueles que desejavam cruzar, então os
lordes Costayne e Shawney deviam ir primeiro, com seus séquitos. Isso exigiu várias viagens,
cada uma levando mais do que uma hora. Havia o lamaçal para enfrentar, cavalos e carroças
para descer as tábuas, serem carregados no barco e depois descarregados do outro lado do
lago. Os dois senhores atrasaram ainda mais o processo quando começaram uma discussão
aos gritos sobre quem tinha preferência. Shawney era mais velho, mas Costayne afirmava ser
o mais bem-nascido.
Não havia nada para Dunk fazer além de esperar e sufocar-se com o calor.
– Podíamos ir na frente se você me deixasse usar minha bota – Egg sugeriu.
– Podíamos – Dunk respondeu –, mas não vamos. Lorde Costayne e Lorde Shawney
chegaram aqui antes de nós. Além disso, são senhores.
Egg fez uma careta.
– Senhores rebeldes.
Dunk franziu o cenho para ele.
– O que quer dizer?
– Eles estavam do lado do dragão negro. Bem, Lorde Shawney estava, assim como o pai de
Lorde Costayne. Aemon e eu costumávamos lutar a batalha na mesa verde do Meistre
Melaquin, com soldadinhos pintados e pequenos estandartes. O brasão de armas de Costayne é
dividido em quatro, duas partes com um cálice prateado em fundo negro e duas com uma rosa
negra em dourado. Este estandarte estava à esquerda do exército de Daemon. Shawney estava
com Açoamargo à direita, mas morreu.
– História velha e enterrada. Estão aqui agora, não estão? Então dobraram o joelho e o Rei
Daeron lhes deu seu perdão.
– Sim, mas...
Dunk apertou os lábios do menino para calá-lo.
– Controle sua língua.
Egg controlou a língua.
Nem bem o último carregamento de homens de Shawney deixara a margem e o senhor e a
senhora Smallwood apareceram no embarcadouro com seu séquito, então precisaram esperar
de novo.
A camaradagem dos cavaleiros andantes não sobrevivera à noite, era claro de se ver. Sor
Glendon ficou sozinho, irritadiço e mal-humorado. Kyle, o Gato, julgou que seria meio-dia
antes que tivessem permissão para subir na balsa, então se separou dos outros e tentou cair nas
boas graças de Lorde Smallwood, a quem conhecia por cima. Sor Maynard passou o tempo
fofocando com a estalajadeira.
– Fique bem longe daquele ali – Dunk avisou Egg. Havia algo em Plumm que o incomodava.
– Ele pode ser um cavaleiro ladrão, pelo que sabemos.
O aviso só pareceu tornar Sor Maynard mais interessante para Egg.
– Nunca conheci um cavaleiro ladrão. Acha que ele pretende roubar o ovo de dragão?
– Lorde Butterwell deve manter o ovo bem guardado, tenho certeza. – Dunk coçou as
picadas de pernilongo no pescoço. – Acha que vai mostrá-lo no banquete? Gostaria de dar
uma olhada em um.
– Eu lhe mostraria o meu, sor, mas está em Solarestival.
– O seu? Seu ovo de dragão? – Dunk franziu o cenho para o garoto, se perguntando se
aquilo era algum tipo de brincadeira. – De onde veio?
– De um dragão, sor. Colocaram em meu berço.
– Quer um tapão na orelha? Não há dragões.
– Não, mas há ovos. O último dragão deixou uma ninhada de cinco, e existem mais em Pedra
do Dragão, mais antigos, de antes da Dança. Todos os meus irmãos também têm um. O de
Aerion parece ter sido feito de ouro e prata, com veios de fogo correndo por ele. O meu é
branco e verde, todo misturado.
– Seu ovo de dragão. – Colocaram no berço dele. Dunk estava tão acostumado com Egg que
algumas vezes esquecia que Aegon era um príncipe. É claro que colocaram um ovo de dragão
em seu berço. – Bem, assegure-se de não mencionar este ovo em nenhum lugar que alguém
possa ouvir.
– Não sou idiota, sor. – Egg abaixou a voz. – Algum dia os dragões vão voltar, meu irmão
Daeron sonhou com isso, e o Rei Aerys leu na profecia. Talvez seja meu ovo que vai eclodir.
Isso seria esplêndido.
– Seria? – Dunk tinha suas dúvidas.
Egg não tinha.
– Aemon e eu costumávamos fingir que nossos ovos seriam os escolhidos para eclodir. Se
isso acontecesse, poderíamos voar pelo céu no dorso de um dragão, como o primeiro Aegon e
suas irmãs.
– Sim, e se todos os outros cavaleiros do reino morressem, eu seria o Senhor Comandante
da Guarda Real. Se esses ovos são tão preciosos, por que Lorde Butterwell vai dar o dele?
– Para mostrar ao reino o quanto é rico?
– Suponho que sim. – Dunk coçou o pescoço novamente e olhou de relance para Sor
Glendon Ball, que estava apertando as presilhas de sua sela enquanto esperava a balsa.
Aquele cavalo nunca servirá. A montaria de Sor Glendon era um castrado de costas
arqueadas, demasiado pequeno e velho. – O que sabe sobre o pai dele? Por que o chamam de
Bola de Fogo?
– Pela cabeça quente e cabelo vermelho. Sor Quentyn Ball era o mestre de armas da
Fortaleza Vermelha. Ele ensinou meu pai e meus tios a lutar. Os Grandes Bastardos também. O
Rei Aegon prometeu promovê-lo à Guarda Real, então Bola de Fogo fez sua esposa juntar-se
às irmãs silenciosas, mas na época em que uma vaga se abriu, o Rei Aegon estava morto e o
Rei Daeron nomeou Sor Willam Wylde em vez dele. Meu pai diz que foi tanto Bola de Fogo
quanto Açoamargo que convenceram Daemon Blackfyre a reivindicar a coroa, e Bola de Fogo
resgatou o dragão negro quando Daeron mandou a Guarda Real prendê-lo. Mais tarde, Bola de
Fogo matou Lorde Lefford nos portões de Lannisporto e fez o Leão Grisalho voltar correndo
para se esconder dentro do Rochedo. Ao cruzar o Vago, matou os filhos da Senhora Penrose
um a um. Dizem que poupou a vida do mais jovem como uma gentileza à mãe dele.
– Isso foi cavalheiresco da parte dele – Dunk teve que admitir. – Sor Quentyn morreu no
Campo do Capim-Vermelho?
– Antes, sor – Egg respondeu. – Um arqueiro colocou uma flecha na garganta dele enquanto
ele desmontava perto de um córrego para tomar água. Um homem comum qualquer, ninguém
sabe quem foi.
– Esses homens comuns podem ser perigosos quando colocam na cabeça que devem
começar a matar senhores e heróis. – Dunk viu a balsa se arrastando lentamente pelo lago. –
Lá vem ela.
– É lenta. Vamos para Alvasparedes, sor?
– Por que não? Quero ver esse ovo de dragão – Dunk sorriu. – Se eu vencer o torneio, nós
dois teremos ovos de dragão.
Egg lançou-lhe um olhar de dúvida.
– O que é? Por que está me olhando desse jeito?
– Eu poderia dizer, sor – o menino disse de modo solene. – Mas preciso aprender a
controlar minha língua.
Acomodaram os cavaleiros andantes bem abaixo do sal4, mais perto da porta do que do
estrado.
Alvasparedes era quase novo para os padrões de um castelo, erguido havia meros quarenta
anos pelo avô do senhor atual. Os plebeus das redondezas chamavam o lugar de Casa do
Leite, pois suas muralhas, fortalezas e torres eram elegantemente revestidas de pedra branca,
extraída do Vale e trazida pelas montanhas a altos custos. Do lado de dentro, os pisos e os
pilares eram de mármore branco leitoso com veios de ouro; as vigas no teto eram esculpidas
em troncos de represeiros, claros como ossos. Dunk não podia sequer imaginar quanto tudo
aquilo custara.
O salão não era tão grande quanto outros que conhecera, no entanto. Pelo menos tivemos
permissão para ficar embaixo do mesmo teto, Dunk pensou, enquanto tomava seu lugar no
banco entre Sor Maynard Plumm e Kyle, o Gato. Ainda que não tivessem sido convidados, os
três foram bem recebidos no banquete com bastante rapidez; dava azar recusar hospitalidade a
um cavaleiro no dia do casamento.
O jovem Sor Glendon, entretanto, passou por momentos mais difíceis.
– Bola de Fogo nunca teve um filho – Dunk ouviu o intendente de Lorde Butterwell dizer em
voz alta.
O rapaz respondeu com veemência, e o nome de Sor Morgan Dunstable foi mencionado
várias vezes, mas o intendente permaneceu inflexível. Quando Sor Glendon tocou o punho da
espada, uma dúzia de homens de armas apareceu com lanças em punho e, por um momento,
pareceu que poderia haver derramamento de sangue. Só a intervenção de um grande cavaleiro
louro chamado Kirby Pimm salvou a situação. Dunk estava longe demais para escutar, mas viu
Pimm passar o braço ao redor do ombro do intendente e murmurar algo em seu ouvido, rindo.
O intendente franziu o cenho e disse algo para Sor Glendon que fez o rosto do rapaz ficar
roxo. Ele parece prestes a chorar, Dunk pensou, observando. Prestes a chorar ou a matar
alguém. Depois de tudo isso, o jovem cavaleiro finalmente foi admitido no salão do castelo.
O pobre Egg não teve tanta sorte.
– O grande salão é para senhores e cavaleiros – um subintendente informou com arrogância
quando Dunk tentou levar o menino para dentro. – Montamos mesas no pátio interno para
escudeiros, cavalariços e homens de armas.
Se tivesse ideia de quem ele é, você o colocaria sentado no estrado em um trono
almofadado. Dunk não gostara muito da aparência dos outros escudeiros. Alguns eram
meninos da idade de Egg, mas a maior parte era mais velho, lutadores experientes que havia
muito escolheram servir um cavaleiro em vez de se tornar um. Será que tiveram escolha? O
título de cavaleiro exigia mais do que cavalheirismo e habilidades nas armas; exigia cavalo,
espada e armadura também, e tudo isso era caro.
– Controle sua língua – disse para Egg antes de deixá-lo na companhia dos outros. –
Aqueles são homens crescidos, não vão ser gentis com suas insolências. Sente, coma e escute,
pode ser que aprenda algumas coisas.
De sua parte, Dunk estava feliz em estar fora do sol quente, com uma taça de vinho diante de
si e a chance de encher a barriga. Até mesmo um cavaleiro andante ficava cansado de mastigar
cada pedaço de comida por meia hora. Ali, abaixo do sal, a comida seria mais simples do que
elegante, mas não haveria escassez. Abaixo do sal era bom o bastante para Dunk.
Mas o orgulho do mendigo é a vergonha do nobre, o velho costumava dizer.
– Esse não pode ser o lugar adequado para mim – Sor Glendon Ball disse com veemência
para o subintendente. Ele vestira um gibão limpo para o banquete, uma roupa antiga e bonita,
com renda dourada nos punhos e no colarinho, e o V invertido vermelho com círculos brancos
da Casa Ball costurados no peito. – Sabe quem era meu pai?
– Um cavaleiro nobre e senhor poderoso, não tenho dúvidas – disse o subintendente –, mas
o mesmo é verdade para muitos aqui. Por favor, tome seu assento ou vá embora, sor. Dá no
mesmo para mim.
No fim, o rapaz aceitou seu lugar abaixo do sal com o restante deles, mal-humorado. O
longo salão branco estava enchendo, conforme mais cavaleiros lotavam os bancos. A multidão
era maior do que Dunk previra e, pela aparência, dava para dizer que alguns convidados
tinham percorrido um longo caminho. Dunk e Egg não tinham estado ao redor de tantos
senhores e cavaleiros desde o campo de Vaufreixo, e não dava para adivinhar quem mais
apareceria a seguir. Devíamos ter ficado lá fora, nas sebes, dormindo embaixo das árvores.
Se eu for reconhecido...
Quando um criado colocou pão preto na toalha de mesa diante de cada um deles, Dunk ficou
grato pela distração. Cortou o pão no sentido do comprimento, usou a metade de baixo para
fazer uma tigela e comeu a de cima. Estava velho, mas comparado com a carne seca era um
manjar. Pelo menos não tinha que ser embebido em cerveja, leite ou água para ficar macio o
bastante para mastigar.
– Sor Duncan parece estar atraindo bastante atenção – Sor Maynard Plumm observou,
enquanto Lorde Vyrwel e seu grupo passaram por eles na direção dos lugares de honra no alto
do salão.
– Aquelas garotas no estrado não conseguem tirar os olhos de você. Aposto que nunca viram
um homem tão grande. Mesmo sentado, você é meia cabeça mais alto do que qualquer homem
no salão.
Dunk encolheu os ombros. Estava acostumado a ser encarado, mas isso não significava que
gostasse.
– Deixe que olhem.
– Ali está o Boi Velho, embaixo do estrado – Sor Maynard comentou. – Todos falam que é
um homem imenso, mas para mim parece que a barriga é a maior coisa nele. Você é um
maldito gigante perto dele.
– De fato, sor – disse um dos companheiros do banco, um homem pálido, sombrio, vestido
de cinza e verde. Seus olhos eram pequenos e astutos, sob sobrancelhas finas e arqueadas.
Uma barba bem-feita emoldurava sua boca, para compensar o cabelo que retrocedia. – Em um
campo como este, só seu tamanho pode fazer de você um dos competidores mais formidáveis.
– Ouvi dizer que talvez o Bracken, o Bruto, venha – disse outro homem, um pouco mais
além no banco.
– Acho que não – respondeu o homem de verde e cinza. – Isso são só algumas justas para
celebrar as núpcias de sua senhoria. Um golpe de lança no pátio para marcar o golpe de lança
entre os lençóis. Dificilmente vale o incômodo para aqueles como Otho Bracken.
Sor Kyle, o Gato, tomou um gole de vinho.
– Aposto que tampouco meu senhor de Butterwell vai para o campo. Vai celebrar seus
campeões de seu camarote de senhor, nas sombras.
– Então ele verá seus campeões caírem – gabou-se Sor Glendon Ball – e, no fim, vai dar o
ovo para mim.
– Sor Glendon é filho do Bola de Fogo – Sor Kyle explicou para o homem novo. – Podemos
ter a honra de saber seu nome, sor?
– Sor Uthor Underleaf. Filho de ninguém importante. – As roupas de Underleaf eram de
tecido bom, limpas e bem cuidadas, mas de corte simples. Um broche de prata com o formato
de um caracol prendia seu manto. – Se sua lança for igual sua língua, Sor Glendon, você
poderá dar uma boa disputa até para esse camarada grandão aqui.
Sor Glendon olhou para Dunk enquanto o vinho era servido.
– Se nos encontrarmos, ele vai cair. Não me importa o quão grande seja.
Dunk observou enquanto um criado enchia sua taça de vinho.
– Sou melhor com uma espada do que com uma lança – admitiu –, e até mesmo melhor com
um machado de batalha. Vai haver um corpo a corpo aqui? – Seu tamanho e força lhe dariam
uma boa vantagem em um corpo a corpo, e ele sabia que poderia dar o máximo de si. Justas
eram outra questão.
– Um corpo a corpo? Em um casamento? – Sor Kyle pareceu surpreso. – Isso seria
incoveniente.
Sor Maynard deu uma risada.
– Um casamento é um corpo a corpo, como qualquer homem casado pode lhe dizer.
Sor Uthor riu.
– Serão apenas justas, creio, mas além do ovo de dragão, Lorde Butterwell prometeu trinta
dragões de ouro para o perdedor da disputa final e dez para cada cavaleiro derrotado na
rodada anterior.
Dez dragões não é nada mal. Dez dragões poderiam comprar um palafrém, então Dunk não
teria que cavalgar Trovão, exceto em batalha. Dez dragões comprariam uma vestimenta de
placa de metal para Egg e um pavilhão adequado para um cavaleiro, costurado com a árvore e
a estrela cadente de Dunk. Dez dragões significariam ganso assado, presunto e torta de
pombo.
– Haverá resgates a serem coletados também, para aqueles que vencerem as disputas – Sor
Uthor disse enquanto esvaziava o miolo do seu pão para fazer uma tigela –, e ouvi rumores de
que alguns homens apostam nas disputas. Lorde Butterwell não gosta de correr riscos, mas
entre seus convidados há alguns que apostam pesado.
Nem bem tinha terminado de falar e Ambrose Butterwell fez sua entrada com uma fanfarra
de trombetas na galeria do menestrel. Dunk ficou em pé com os demais, enquanto Butterwell
levava sua nova noiva de braços dados por um tapete com padrões de Myr até o estrado. A
garota tinha quinze anos, recém-florescida, o senhor seu marido tinha cinquenta e era recémviúvo.
Ela era rosada e ele era cinza. Seu manto de noiva se arrastava atrás dela em ondas
verdes, brancas e amarelas. Parecia tão quente e pesado que Dunk se perguntou como ela
conseguia vestir aquilo. Lorde Butterwell parecia quente e pesado também, com suas papadas
caídas e o cabelo louro fino.
O pai da noiva seguia logo atrás, de mãos dadas com seu jovem filho. Lorde Frey da
Travessia era um homem magro e elegante em azul e cinza; seu herdeiro, um menino sem
queixo de quatro anos, de cujo nariz escorria ranho. Os lordes Costayne e Risley vinham na
sequência, com suas senhoras, filhas de Lorde Butterwell com sua primeira mulher. As filhas
de Frey seguiam com os maridos. Então veio Lorde Gormon Peake; lordes Smallwood,
Vyrwel e Shawney; vários senhores menores e cavaleiros com terras. Entre eles, Dunk
vislumbrou John, o Violinista, e Alyn Cockshaw. Lorde Alyn parecia ter exagerado na bebida,
embora o banquete propriamente dito ainda não tivesse começado.
Quando todos chegaram ao estrado, as mesas principais estavam tão lotadas quanto os
bancos. Lorde Butterwell e sua esposa sentaram-se em grandes almofadas felpudas em um
trono duplo de carvalho dourado. Os demais se acomodaram em cadeiras de espaldar alto
com braços caprichosamente esculpidos. Na parede atrás deles, dois estandartes enormes
estavam pendurados nas vigas: as torres gêmeas dos Frey, azul sobre cinza, e as ondas verdes,
brancas e amarelas dos Butterwell.
Coube a Lorde Frey comandar os brindes.
– Ao rei! – ele começou, simplesmente. Sor Glendon ergueu sua taça de vinho. Dunk bateu
sua taça na dele, na de Sor Uthor e nas dos demais. Todos beberam.
– A Lorde Butterwell, nosso bondoso anfitrião – Frey proclamou na sequência. – Que o Pai
lhe garanta vida longa e muitos filhos.
Beberam novamente.
– À Senhora Butterwell, a bela noiva, minha querida filha. Que a Mãe a faça fértil. – Frey
deu um sorrisinho para a garota. – Vou querer um neto antes do final do ano. Gêmeos seriam
ainda melhores, então faça um bom trabalho esta noite, querida.
Risadas soaram contra as vigas e os convidados beberam mais uma vez. O vinho era
saboroso, tinto e doce.
Então Lorde Frey disse:
– Um brinde à Mão de Rei, Brynden Rivers. Que a lanterna da Velha ilumine seu caminho
com sabedoria. – Ergueu o cálice bem alto e bebeu, com Lorde Butterwell e sua noiva e os
demais no estrado. Abaixo do sal, Sor Glendon virou sua taça para derramar o conteúdo no
chão.
– Um triste desperdício de vinho bom – disse Maynard Plumm.
– Não brindo a regicidas – disse Sor Glendon. – Lorde Corvo de Sangue é um feiticeiro e
um bastardo.
– Nasceu bastardo – Sor Uthor concordou moderadamente. – Mas seu real pai o legitimou
em seu leito de morte. – Deu um grande gole, assim como Sor Maynard e muitos outros no
salão. Quase a mesma quantidade de pessoas abaixou a taça ou a virou de cabeça para baixo,
como Ball fizera. A taça de Dunk estava pesada em suas mãos. Quantos olhos Lorde Corvo de
Sangue tem?, a charada dizia. Mil olhos e mais um.
Brindes se seguiram a brindes, alguns propostos por Lorde Frey e alguns por outras pessoas.
Beberam ao jovem Lorde Tully, suserano de Lorde Butterwell, que se desculpara por não ter
ido ao casamento. Beberam à saúde de Leo Espinholongo, Senhor de Jardim de Cima, sobre
quem havia rumores de estar doente. Beberam à memória de seus mortos valentes. Sim, Dunk
pensou, lembrando. Bebo alegremente por eles.
Sor John, o Violinista, propôs o brinde final.
– Aos meus corajosos irmãos! Sei que estão sorrindo esta noite!
Dunk não tinha a intenção de beber tanto, com as justas na manhã seguinte, mas as taças
eram enchidas novamente após cada brinde, e ele descobriu estar com sede.
“Nunca recuse uma taça de vinho ou um corno de cerveja”, Sor Arlan lhe dissera uma vez.
“Pode levar um ano até que veja outra.”
Teria sido uma descortesia não brindar à noiva e ao noivo, disse para si mesmo, e
perigoso não beber ao rei e à sua Mão, com estranhos por todos os lados.
Felizmente, o brinde do Violinista foi o último. Lorde Butterwell se levantou pesadamente
para agradecer a todos e prometer boas justas pela manhã.
– Que o banquete comece!
Um leitão foi servido na mesa principal; um pavão assado em sua plumagem; um grande
lúcio com crosta de amêndoas moídas. Nem um pedaço daquilo chegou abaixo do sal. Em vez
do leitão, tinham carne de porco salgada, embebida em leite de amêndoas e agradavelmente
apimentada. No lugar do pavão, tinham capões, bem crocantes e dourados, recheados com
cebolas, ervas, cogumelos e castanhas assadas. No lugar do lúcio, comeram lascas de
bacalhau branco em um empadão, com algum tipo de molho marrom saboroso que Dunk não
conseguiu identificar. Além disso, havia purê de ervilhas, nabos amanteigados, cenouras
regadas com mel e um queijo branco maduro que cheirava tão forte quanto Bennis do Escudo
Marrom. Dunk comeu bem, mas todo o tempo se perguntava o que Egg estaria comendo no
pátio. Só para garantir, escondeu meio capão no bolso de seu manto, com um pedaço de pão e
um pouco de queijo fedorento.
Enquanto comiam, flautas e violinos enchiam o ar com melodias alegres, e a conversa se
voltou para as justas da manhã seguinte.
– Sor Franklyn Frey é bem-visto ao longo do Ramo Verde – disse Sor Uthor Underleaf, que
parecia conhecer bem os heróis locais. – É aquele no estrado, o tio da noiva. Lucas Nayland é
do Atoleiro da Bruxa, não deve ser desconsiderado. Nem Sor Mortimer Boggs, de Ponta da
Garra Rachada. Fora isso, esse deve ser um torneio de cavaleiros da casa e heróis da vila.
Kirby Pimm e Galtry, o Verde, são os melhores da casa, embora nenhum deles seja páreo para
o genro de Lorde Butterwell, Negro Tom Heddle. Um serzinho desagradável, aquele lá.
Ganhou a mão da filha mais velha de sua senhoria matando os outros três pretendentes dela,
dizem, e certa vez desmontou o Senhor de Rochedo Casterly.
– O quê? O jovem Lorde Tybolt? – Sor Maynard perguntou.
– Não, o velho Leão Grisalho, aquele que morreu na primavera. – Era como os homens
falavam daqueles que pereceram durante a Grande Praga da Primavera. Ele morreu na
primavera. Dezenas de milhares haviam morrido na primavera, entre eles um rei e dois jovens
príncipes.
– Não subestime Sor Buford Bulwer – disse Kyle, o Gato. – O Boi Velho matou quarenta
homens no Campo do Capim-Vermelho.
– E a cada ano a conta dele fica maior – comentou Sor Maynard. – Os dias de Bulwer se
foram. Olhe para ele. Passou dos sessenta, está lento e gordo, o olho direito está praticamente
cego.
– Não se incomodem em vasculhar o salão em busca de campeões – uma voz atrás de Dunk
falou. – Aqui estou, sores. Um banquete para seus olhos.
Dunk virou-se para encontrar Sor John, o Violinista, em pé atrás dele, com um meio sorriso
nos lábios. Seu gibão de seda branca tinha mangas longas e caídas forradas com cetim
vermelho, tão compridas que as pontas passavam dos joelhos. Uma pesada corrente de prata
envolvia seu peito, cravejada com imensas ametistas escuras cuja cor combinava com seus
olhos. Essa corrente vale praticamente tudo o que possuo, Dunk pensou.
O vinho tinha colorido as bochechas de Sor Glendon e inflamado suas espinhas.
– Quem é você para se gabar desse jeito?
– Chamam-me de John, o Violinista.
– É um músico ou um guerreiro?
– Posso fazer belas músicas tanto com a lança quanto com o arco resinado, tanto faz. Todo
casamento precisa de um cantor e todo torneio precisa de um cavaleiro misterioso. Posso me
juntar a vocês? Butterwell foi bom o bastante para me colocar no estrado, mas prefiro a
companhia dos meus companheiros cavaleiros andantes à de senhoras gordas e rosadas e de
homens velhos. – O Violinista deu uma batidinha no ombro de Dunk. – Seja um bom camarada
e abra espaço, Sor Duncan. – Dunk abriu espaço.
– Está atrasado para comer, sor.
– Não importa. Sei onde é a cozinha de Butterwell. Ainda tem um pouco de vinho, imagino?
– O Violinista cheirava a laranjas e limas, com um toque de algum estranho tempero oriental
por baixo. Noz-moscada, talvez. Dunk não saberia dizer. O que sabia sobre noz-moscada?
– O jeito como se gaba é impróprio – Sor Glendon disse para o Violinista.
– Sério? Então devo implorar seu perdão, sor. Nunca ofenderia um filho de Bola de Fogo.
Aquilo pegou o jovem de surpresa.
– Sabe quem sou?
– Filho de seu pai, espero.
– Olhem – disse Sor Kyle, o Gato –, a torta de casamento.
Seis ajudantes de cozinha empurravam a torta pela porta, em cima de um carrinho amplo. A
torta era marrom, crocante e imensa, e havia ruídos vindo de dentro dela, guinchos, grasnidos
e pancadas. O senhor e a senhora Butterwell desceram do estrado para ir até a torta, de espada
na mão. Quando a cortaram, meia centena de pássaros irromperam, voando pelo salão. Nos
outros banquetes de casamento em que Dunk estivera, as tortas eram recheadas com pombos
ou passarinhos, mas dentro desta havia gaios-azuis, cotovias, pombos, sabiás e rouxinóis,
pequenos pardais marrons e uma grande arara-vermelha.
– Vinte e um tipos de pássaros – comentou Sor Kyle.
– Vinte e um tipos de cocôs de pássaros – complementou Sor Maynard.
– Você não tem poesia no coração, sor.
– Você tem merda sobre os ombros.
– Esse é o jeito correto de rechear uma torta – Sor Kyle fungou, limpando sua túnica. – Essa
torta representa o casamento, e um casamento de verdade tem muitos tipos de coisas... alegrias
e tristezas, dor e prazer, amor, luxúria e lealdade. Então é adequado que haja vários tipos de
pássaros. Nenhum homem sabe de verdade o que uma nova esposa lhe trará.
– A boceta – Plumm falou –, ou qual seria o ponto?
Dunk se afastou da mesa.
– Preciso de um pouco de ar. – Queria mijar, verdade seja dita, mas em uma companhia
elegante como esta era mais cortês falar do ar. – Por favor, me deem licença.
– Volte logo, sor – disse o Violinista. – Os malabaristas ainda vão se apresentar, e você não
vai querer perder as núpcias.
Lá fora, o vento da noite lambia Dunk como a língua de algum grande animal. A terra
endurecida do pátio parecia se mover embaixo de seus pés... ou talvez ele que estivesse
balançando.
As listas haviam sido erguidas no meio do pátio exterior. Uma arquibancada de madeira de
três níveis fora levantada junto às muralhas, então Lorde Butterwell e seus convidados bemnascidos
ficariam à sombra em seus assentos acolchoados. Havia tendas nos dois lados das
listas, onde os cavaleiros podiam vestir as armaduras, com cavaletes de lanças prontas para
uso. Quando o vento ergueu os estandartes por um instante, Dunk pôde sentir o cheiro da
caiação sobre a barreira das justas. Saiu em busca do pátio interno. Tinha que encontrar Egg e
mandar o menino até o mestre dos jogos para inscrevê-lo nas listas. Aquele era o dever de um
escudeiro.
Mas Dunk não conhecia Alvasparedes e, de algum modo, voltou ao ponto de partida.
Encontrou-se do lado de fora dos canis, onde os cães de caça sentiram o seu cheiro e
começaram a latir e uivar. Querem rasgar minha garganta, pensou, ou então querem o capão
no bolso do meu manto. Voltou pelo mesmo caminho por onde viera, passando pelo septo. Um
mulher passou correndo por ele, sem fôlego de tanto rir, um cavaleiro careca correndo atrás
dela. O homem ficava caindo, até que finalmente a mulher teve que voltar para ajudá-lo a se
levantar. Eu devia entrar no septo e pedir aos Sete que façam daquele cavaleiro meu
primeiro oponente, Dunk pensou, mas aquilo teria sido herético. O que eu preciso realmente
é de uma latrina, não de uma oração. Havia alguns arbustos ali perto, embaixo de uma
escadaria de pedra clara. Aquilo vai servir. Tateou o caminho até lá e soltou o calção. Sua
bexiga estava prestes a explodir. O mijo saía sem parar.
Em algum lugar acima dele, uma porta se abriu. Dunk ouviu passos na escada, o roçar de
botas nas pedras.
– ... banquete de mendigo, você colocou diante de nós. Sem Açoamargo...
– Açoamargo que se foda – insistiu uma voz familiar. – Nenhum bastardo é de confiança,
nem mesmo ele. Algumas poucas vitórias vão fazê-lo atravessar o mar bem rápido.
Lorde Peake. Dunk segurou a respiração... e o mijo.
– É mais fácil falar de vitórias do que conquistá-las. – Este que falava tinha uma voz mais
profunda do que a de Peake, um estrondo baixo com uma ponta de raiva. – O velho Sangue de
Leite espera que o garoto consiga, assim como o resto de nós. Palavras levianas e charme não
podem compensar isso.
– Um dragão poderia. O príncipe insiste que o ovo vai eclodir. Sonhou com isso, assim
como certa vez sonhou com a morte dos irmãos. Um dragão vivo ganharia todas as espadas de
que precisamos.
– Um dragão é uma coisa, um sonho é outra. Garanto a você que Corvo de Sangue não se
importa com sonhos. Precisamos de um guerreiro, não de um sonhador. O menino é filho de
seu pai?
– Apenas faça sua parte como combinado e deixe que eu me preocupo com isso. Assim que
tivermos o ouro de Butterwell e as espadas da Casa Frey, Harrenhal nos seguirá, e depois os
Bracken. Otho sabe que não pode ter esperança de se manter...
As vozes desapareciam conforme os dois homens se afastavam. O mijo de Dunk começou a
fluir novamente. Sacudiu o pau e amarrou o calção.
– Filho de seu pai – murmurou. De quem estavam falando? Filho de Bola de Fogo?
Quando saiu de debaixo da escada, os dois senhores estavam bem do outro lado do pátio.
Quase gritou por eles, para fazê-los mostrar os rostos, mas pensou melhor. Estava sozinho e
desarmado e, além disso, meio bêbado. Talvez mais do que meio. Ficou parado ali, franzindo
o cenho por um momento, então voltou para o salão.
Lá dentro, o último prato fora servido e as brincadeiras começaram. Uma das filhas de
Lorde Frey tocou Dois corações que batem como um em uma harpa, muito mal. Alguns
malabaristas jogaram tochas de fogo um para o outro por algum tempo e alguns acrobatas
fizeram piruetas no ar. O sobrinho de Lorde Frey começou a cantar “O urso e a bela donzela”,
enquanto Sor Kirby Pimm batia com uma colher de pau na mesa, marcando o ritmo. Outros se
juntaram a eles, até que todo o salão estava gritando “Um urso! Um urso! Preto e castanho e
coberto de pelos!”. Lorde Caswell desmaiou na mesa, com o rosto em uma poça de vinho, e a
Senhora Vyrwel começou a chorar, embora ninguém tivesse muita certeza da causa de sua
aflição.
Enquanto isso, o vinho continuava a fluir. Os ricos tintos da Árvore deram lugar às safras
locais, ou pelo menos foi o que o Violinista disse; verdade seja dita, Dunk não conseguia ver
diferença. Havia hipocraz também, e ele teve que provar uma taça. Pode levar um ano até que
eu consiga tomar outra. Os outros cavaleiros andantes, todos camaradas elegantes, tinham
começado a falar das mulheres que conheciam. Dunk se pegou pensando onde Tanselle estaria
naquela noite. Sabia onde estava a Senhora Rohanne – na cama no Castelo de Fosso Gelado,
com o velho Sor Eustace ao lado dela, roncando através do bigode –, então, tentou não pensar
nela. Será que eles pensam em mim?, perguntou-se.
Suas ponderações melancólicas foram rudemente interrompidas quando uma trupe de anões
pintados irrompeu da barriga de um porco de madeira com rodas para perseguir o bobo da
corte de Lorde Butterwell ao redor das mesas, batendo nele com bexigas de porco infladas
que faziam ruídos grosseiros cada vez que acertavam um golpe. Era a coisa mais engraçada
que Dunk vira em anos, e ele gargalhou com os demais. O filho de Lorde Frey ficou tão
empolgado com as travessuras deles que se juntou à brincadeira, batendo nos convidados do
casamento com uma bexiga que tomou de um anão. A criança tinha a risada mais irritante que
Dunk já ouvira, mais um soluço alto e estridente do que uma gargalhada, que lhe dava vontade
de colocar o menino em seus joelhos para dar-lhe uma surra ou então jogá-lo em um poço. Se
ele me acertar com aquela bexiga, eu posso fazer isso.
– Lá está o garoto que garantiu esse casamento – Sor Maynard disse, enquanto o moleque
sem queixo passava gritando.
– Como assim? – O Violinista levantou a taça de vinho vazia e um criado que passava a
encheu novamente.
Sor Maynard olhou na direção do estrado, onde a noiva colocava cerejas na boca do
marido.
– Sua senhoria não será o primeiro a passar manteiga naquele biscoito. Dizem que a noiva
foi deflorada por um ajudante de cozinha nas Gêmeas. Ela se esgueirava até a cozinha para se
encontrar com ele. Infelizmente, uma noite o irmãozinho se esgueirou atrás dela. Quando o
menino viu os dois fazendo o animal de duas cabeças, deu um berro, e as cozinheiras e os
guardas vieram correndo e encontraram a senhora e o criado copulando no balcão de mármore
onde a cozinheira abre a massa, os dois nus como no dia de seu nome e enfarinhados da
cabeça aos pés.
Isso não pode ser verdade, Dunk pensou. Lorde Butterwell tinha muitas terras e potes de
ouro. Por que se casaria com uma garota que fora manchada por um ajudante de cozinha e
daria seu ovo de dragão para marcar a união? Os Frey da Travessia não eram mais nobres do
que os Butterwell. Eram donos de uma ponte, em vez de vacas, era a única diferença.
Senhores. Quem consegue entendê-los? Dunk comeu algumas nozes e ponderou sobre o que
escutara enquanto mijava. Dunk, o bêbado, o que acha que ouviu? Pegou outra taça de
hipocraz, já que a primeira tinha um gosto bom. Então deitou a cabeça sobre os braços
dobrados e fechou os olhos só por um instante, para descansá-los da fumaça.
Quando abriu os olhos novamente, metade dos convidados do casamento estava em pé,
gritando “Para a cama! Para a cama!”. Estavam fazendo tamanho alvoroço que despertaram
Dunk de um sonho agradável envolvendo Tanselle Alta Demais e a Viúva Vermelha. “Para a
cama! Para a cama!”, os gritos soavam. Dunk se sentou e esfregou os olhos.
Sor Franklyn Frey estava com a noiva nos braços e a carregava pelo corredor, com homens
e meninos rodeando-os. As senhoras na mesa principal haviam cercado Lorde Butterwell. A
Senhora Vyrwel se recuperara de seu pesar e tentava tirar sua senhoria da cadeira, enquanto
uma de suas filhas desamarrava suas botas e uma das Frey tirava sua túnica. Butterwell
tentava impedi-las, sem sucesso, gargalhando. Estava bêbado, Dunk percebeu, e Sor Franklyn
mais ainda... estava tão embriagado que quase derrubou a noiva. Antes que Dunk percebesse o
que estava acontecendo, John, o Violinista, o puxara para que ficasse em pé.
– Aqui! – gritou. – Deixe que o gigante a carregue!
A próxima coisa de que se deu conta foi que estava subindo a escada da torre com a noiva
se contorcendo em seus braços. Como conseguiu se manter em pé era um mistério até para ele.
A garota não ficava quieta, e os homens estavam por todos os lados, fazendo piadas
irreverentes sobre deflorá-la e amassá-la bem enquanto tiravam as roupas dela. Os anões se
juntaram a eles também. Amontoaram-se ao redor das pernas de Dunk, gritando, gargalhando e
batendo nas panturrilhas dele com as bexigas. Tudo o que podia fazer era não tropeçar neles.
Dunk não tinha ideia de onde encontrar o quarto de dormir de Lorde Butterwell, mas os
outros homens o empurraram e o cutucaram até que chegou lá. A essa altura, a noiva estava
com o rosto vermelho, dando risadas, e quase nua, exceto por uma meia na perna esquerda
que, de alguma forma, sobrevivera à subida. Dunk estava enrubescido também, e não pelo
esforço. Sua ereção seria óbvia para qualquer um que olhasse, mas, felizmente, todas as
atenções estavam voltadas para a noiva. A Senhora Butterwell não se parecia em nada com
Tanselle, mas ter uma mulher seminua se contorcendo em seus braços fez Dunk pensar na
outra. Tanselle Alta Demais, aquele era o seu nome, mas ela não era alta demais para mim.
Ele se perguntava se algum dia a veria novamente. Havia noites em que pensava que devia ter
sonhado com ela. Não, pateta, você só sonhou que ela gostava de você.
O quarto de Lorde Butterwell era grande e luxuoso, uma vez que o encontrou. Tapetes de
Myr cobriam o chão, uma centena de velas perfumadas queimavam em recantos e fendas, e um
traje de placas de ouro e pedras preciosas estava parado ao lado da porta. O quarto tinha até
uma latrina privativa em uma pequena alcova de pedra na parede externa.
Quando Dunk finalmente deixou a noiva em seu leito conjugal, um anão saltou ao lado dela e
segurou um de seus seios para acariciá-lo um pouco. A garota deu um grito, os homens
urraram de tanto rir, e Dunk segurou o anão pelo colarinho e o arrastou para longe da senhora.
Estava carregando o homenzinho pelo quarto para jogá-lo porta afora quando viu o ovo do
dragão.
Lorde Butterwell o colocara em uma almofada de veludo negro no alto de um pedestal de
mármore. Era muito maior do que um ovo de galinha, embora não tão grande quanto Dunk
imaginava. Finas escamas vermelhas cobriam a superfície, reluzindo como joias sob a luz das
lamparinas e velas. Dunk largou o anão e pegou o ovo, só para senti-lo por um momento. Era
mais pesado do que esperava. Dá para esmagar a cabeça de um homem com isso sem rachar
a casca. As escamas eram suaves sob seus dedos, e o vermelho rico e profundo parecia
tremeluzir enquanto ele girava o ovo nas mãos. Sangue e chama, pensou, mas também havia
manchas douradas e espirais escuras como a meia-noite.
– Ei, você! O que acha que está fazendo, sor? – Um cavaleiro que Dunk não conhecia o
flagrara, um homem grande com uma barba negra como carvão e furúnculos, mas foi a voz que
o fez pestanejar; uma voz profunda, grossa de raiva. É ele, o homem com Peake, Dunk
percebeu, enquanto o homem dizia: – Coloque isso de volta. Ficarei grato se mantiver seus
dedos gordurosos longe dos tesouros de sua senhoria ou, pelos Sete, você vai desejar ter feito
isso.
O outro cavaleiro não estava nem de perto tão bêbado quanto Dunk, então pareceu prudente
fazer o que ele dizia. Dunk colocou o ovo de volta no travesseiro, muito cuidadosamente, e
esfregou os dedos na manga.
– Não pretendi causar danos, sor – Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de
castelo. Então passou esbarrando no homem de barba negra e saiu pela porta.
Havia barulhos na escadaria, gritos alegres e risadas femininas. As mulheres estavam
trazendo Lorde Butterwell para sua noiva. Dunk não queria encontrá-los, então subiu em vez
de descer e se encontrou no telhado da torre sob as estrelas, com o pálido castelo cintilando à
luz da lua ao redor dele.
Estava se sentindo tonto pelo vinho, então se inclinou contra um parapeito. Será que vou
vomitar? Por que tocara no ovo de dragão? Recordou-se do espetáculo de títeres de Tanselle
e do dragão de madeira que começara todos os problemas em Vaufreixo. A lembrança fez
Dunk se sentir culpado, como sempre acontecia. Três bons homens mortos para salvar o pé
de um cavaleiro andante. Não fazia sentido e nunca fizera. Aprenda a lição, pateta. Não é
para gente como você se meter com dragões e seus ovos.
– Quase parece que é feito de neve.
Dunk se virou. John, o Violinista, estava parado ao lado dele, sorrindo em seda e samito.
– O que é feito de neve?
– O castelo. Toda essa pedra branca sob a luz da lua. Já esteve a norte do Gargalo, Sor
Duncan? Disseram-me que neva até no verão. Já viu a Muralha?
– Não, senhor. – Por que ele está falando da Muralha? – Era para onde estávamos indo,
Egg e eu. Para o Norte, para Winterfell.
– Será que eu poderia acompanhá-los? Você poderia me mostrar o caminho.
– O caminho? – Dunk franziu o cenho. – Está no fim da estrada do rei. Se permanecer na
estrada e seguir para o norte, não tem como errar.
O Violinista deu uma gargalhada.
– Suponho que não... embora ficaria surpreso com o que alguns homens conseguem perder. –
Foi até o parapeito e olhou para fora, para o castelo. – Dizem que esses nortenhos são um
povo selvagem, e que suas florestas são cheias de lobos.
– Senhor, por que veio aqui em cima?
– Alyn estava procurando por mim e eu não queria ser encontrado. Ele fica cansativo
quando bebe, esse Alyn. Vi você se esgueirar para fora daquele quarto dos horrores e me
esgueirei atrás de você. Bebi demais, garanto, mas não o suficiente para encarar um
Butterwell nu. – Deu um sorriso enigmático para Dunk. – Sonhei com você, Sor Duncan. Antes
mesmo de conhecê-lo. Quando o vi na estrada, reconheci seu rosto imediatamente. Era como
se fôssemos velhos amigos.
Dunk teve a sensação mais estranha, como se já tivesse vivido tudo aquilo antes. Sonhei
com você, ele disse. Meus sonhos não são como os seus, Sor Duncan. Os meus são de
verdade.
– Sonhou comigo? – disse com a voz grossa pelo vinho. – Que tipo de sonho?
– Ora – o Violinista falou –, sonhei que você estava todo de branco, da cabeça aos pés, com
um longo manto pálido fluindo desses ombros largos. Você era uma Espada Branca, sor, um
Irmão Juramentado da Guarda Real, o maior cavaleiro de todos os Sete Reinos, e vivia com o
único propósito de guardar, servir e agradar a seu rei. – Colocou a mão no ombro de Dunk. –
Você teve o mesmo sonho, sei que teve.
Ele tivera, era verdade. Na primeira vez que o velho me deixou segurar sua espada.
– Todo garoto sonha em servir a Guarda Real.
– No entanto, só sete garotos crescem para usar o manto branco. Gostaria de ser um deles?
– Eu? – Dunk sacudiu os ombros para se livrar da mão do fidalgo, que tinha começado a
massageá-lo. – Gostaria. Ou não. – Os cavaleiros da Guarda Real serviam por toda a vida e
juravam não ter esposa nem terras. Posso encontrar Tanselle algum dia. Por que eu não
poderia ter esposa e filhos? – Não importa o que sonho. Só um rei pode armar um cavaleiro
da Guarda Real.
– Suponho que isso significa que terei que tomar o trono, então. Eu preferiria ensiná-lo a
tocar violino.
– Você está bêbado. – E o puído falou do esfarrapado.
– Maravilhosamente bêbado. O vinho torna tudo possível, Sor Duncan. Você pareceria um
deus de branco, acho, mas se a cor não lhe cair bem, talvez preferisse ser um lorde?
Dunk gargalhou na sua cara.
– Não, eu preferiria que grandes asas azuis brotassem nas minhas costas e eu voasse. Uma
coisa é tão provável quanto a outra.
– Agora você zomba de mim. Um verdadeiro cavaleiro nunca deve zombar de seu rei. – O
Violinista pareceu magoado. – Espero que coloque mais fé no que eu lhe digo quando o ovo de
dragão eclodir.
– Um ovo de dragão vai eclodir? Um dragão vivo? O quê? Aqui?
– Sonhei com isso. Com esse castelo pálido, você, um dragão irrompendo de um ovo, sonhei
com tudo isso, assim como um dia sonhei com meus irmãos morrendo. Eles tinham doze anos,
e eu só tinha sete, então riram de mim e morreram. Tenho vinte e dois agora, e acredito nos
meus sonhos.
Dunk estava se lembrando de outro torneio, lembrando como caminhara pela chuva suave de
primavera com outro principezinho. Sonhei com você e um dragão morto, o irmão de Egg,
Daeron, lhe dissera. Um animal grande, imenso, com asas tão grandes que podiam cobrir
esta campina. Tinha caído em cima de você, mas você estava vivo e o dragão estava morto.
E assim fora, pobre Baelor. Sonhos eram um terreno traiçoeiro para se construir sobre ele.
– Como queira, meu senhor – disse para o Violinista. – Por favor, me dê licença.
– Onde está indo, sor?
– Para minha cama, dormir. Estou bêbado como um cão.
– Seja meu cão, sor. A noite está viva com a promessa. Podemos uivar juntos e acordar os
próprios deuses.
– O que quer de mim?
– Sua espada. Gostaria de torná-lo meu homem e erguê-lo bem alto. Meus sonhos não
mentem, Sor Duncan. Você terá aquele manto branco, e eu devo ter o ovo de dragão. É preciso,
meus sonhos tornaram isso claro. Talvez o ovo ecloda, ou então...
Atrás deles, uma porta se abriu com violência.
– Aqui está ele, meu senhor. – Um par de homens de armas entrou no telhado. Lorde
Gormon Peake estava bem atrás deles.
– Gormy – o Violinista falou pausadamente. – Ora, o que está fazendo em meus aposentos,
meu senhor?
– Isso é um telhado, sor, e você tomou vinho demais. – Lorde Gormon fez um gesto cortante
e os guardas avançaram. – Permita que o ajudem a ir para a cama. Vai disputar as justas
amanhã, devo lembrá-lo. Kirby Pimm pode se mostrar um adversário perigoso.
– Eu esperava disputar uma justa com o bom Sor Duncan, aqui.
Peake deu a Dunk um olhar antipático.
– Talvez mais tarde. Para sua primeira disputa, vai enfrentar Sor Kirby Pimm.
– Então Pimm deve cair! Assim como todos os outros! O cavaleiro misterioso prevalecerá
contra todos os desafiantes e dançará em seu despertar. – Um guarda pegou o Violinista pelo
braço. – Sor Duncan, parece que precisamos nos separar – gritou, enquanto o ajudavam a
descer os degraus.
Só Lorde Gormon permaneceu no telhado com Dunk.
– Cavaleiro andante – grunhiu –, sua mãe nunca o ensinou a não colocar a mão na boca do
dragão?
– Nunca conheci minha mãe, meu senhor.
– Isso explica tudo. O que ele lhe prometeu?
– Um título de nobreza. Um manto branco. Grandes asas azuis.
– Aqui está minha promessa: um metro de aço frio atravessando sua barriga se disser uma
palavra do que acaba de acontecer.
Dunk balançou a cabeça para clarear o juízo. Aquilo não pareceu ajudar. Dobrou o corpo e
vomitou.
Um pouco do vômito respingou nas botas de Peake. O lorde o amaldiçoou.
– Cavaleiros andantes – exclamou, desgostoso. – Não tem lugar aqui para você. Nenhum
cavaleiro de verdade seria tão descortês para aparecer sem ser convidado, mas vocês,
criaturas das andanças...
– Não somos desejados em lugar algum e aparecemos em todos os lugares, senhor. – O
vinho deixara Dunk audacioso, caso contrário teria controlado a língua. Limpou a boca com as
costas da mão.
– Tente se lembrar do que lhe disse, sor. Será pior para você se não fizer isso. – Lorde
Peake sacudiu o vômito da bota, então se foi. Dunk se inclinou contra o parapeito mais uma
vez. Perguntou-se quem era mais louco, se Lorde Gormon ou o Violinista.
Quando encontrou o caminho de volta ao salão, de seus companheiros, só Maynard Plumm
permanecia lá.
– Havia farinha nas tetas dela quando você tirou suas roupas íntimas? – ele quis saber.
Dunk negou com a cabeça, serviu-se de outra taça de vinho, provou-a e decidiu que tinha
bebido o suficiente.
Os intendentes de Butterwell haviam arrumado quartos na fortaleza para os senhores e
senhoras, e camas nas barracas para seus séquitos. O restante dos convidados podia escolher
entre um colchão de palha no porão ou um pedaço de chão junto à muralha ocidental para
erguer seu pavilhão. A modesta tenda de lona que Dunk adquirira em Septo de Pedra não era
um pavilhão, mas mantinha a chuva e o sol afastados. Alguns de seus vizinhos ainda estavam
acordados; as paredes de seda de seus pavilhões brilhavam como lanternas coloridas na noite.
Gargalhadas vinham de dentro de um pavilhão azul coberto de girassóis, e os sons do amor, de
um listrado de branco e púrpura. Egg montara a tenda deles um pouco afastada das demais.
Meistre e os dois cavalos estavam amarrados ali perto, e as armas e armadura de Dunk
estavam cuidadosamente empilhadas contra a muralha do castelo. Quando se arrastou para
dentro da tenda, encontrou o escudeiro sentado de pernas cruzadas com uma vela, a cabeça
brilhando enquanto espiava por sobre um livro.
– Ler livros à luz de velas vai deixá-lo cego – A leitura permanecia um mistério para Dunk,
embora o menino tivesse tentado ensiná-lo.
– Preciso da luz da vela para ver as palavras, sor.
– Quer um tapão na orelha? Que livro é esse? – Dunk viu as cores vivas na página,
pequenos escudos pintados escondidos no meio das letras.
– Uma relação de brasão de armas, sor.
– Procurando pelo Violinista? Não vai encontrá-lo. Não colocam cavaleiros andantes nessas
relações, só senhores e campeões.
– Não estava procurando por ele. Vi alguns outros símbolos no pátio... Lorde Sunderland
está aqui, sor. Ele usa as cabeças de três senhoras pálidas, sob um fundo ondulado verde e
azul.
– Um homem das Irmãs? De verdade? – As Três Irmãs eram ilhas na Dentada. Dunk ouvira
septões dizerem que as ilhas eram sumidouros do pecado e da avareza. Vilirmã era o mais
notório esconderijo de contrabandistas em toda Westeros. – Ele vem de bem longe. Deve ser
parente da nova esposa de Butterwell.
– Não é, sor.
– Então está aqui pelo banquete. Comem peixe nas Três Irmãs, não comem? Um homem fica
enjoado de peixe. Você conseguiu o suficiente para comer? Eu lhe trouxe meio capão e um
pouco de queijo. – Dunk remexeu no bolso de seu manto.
– Eles nos serviram costelas, sor. – O nariz de Egg estava enfiado no livro. – Lorde
Sunderland lutou pelo dragão negro, sor.
– Como o velho Sor Eustace? Ele não era tão mal, era?
– Não, sor – Egg concordou. – Mas...
– Vi o ovo do dragão. – Dunk guardou a comida com o pão velho e a carne seca. – Era
vermelho, em grande parte. Lorde Corvo de Sangue tem um ovo de dragão também?
Egg abaixou o livro.
– Por que teria? Ele é de baixo nascimento.
– De nascimento bastardo, não baixo. – Corvo de Sangue nascera do lado errado dos
lençois, mas era nobre de ambos os lados. Dunk estava prestes a contar para Egg o que
escutara os homens falando quando notou seu rosto. – O que aconteceu com sua boca?
– Uma briga, sor.
– Deixe-me ver isso.
– Só sangrou um pouco. Coloquei um pouco de vinho.
– Com quem esteve brigando?
– Com outros escudeiros. Disseram que...
– Não importa o que disseram. O que eu lhe disse?
– Para controlar minha língua e não me meter em encrencas. – O menino tocou o lábio
machucado. – Mas chamaram meu pai de regicida.
E ele é, garoto, embora eu não ache que tivesse a intenção. Dunk dissera a Egg meia
centena de vezes para não levar essas palavras a sério. Você sabe a verdade. Deixe que isso
seja o bastante. Já tinham ouvido essa conversa antes, em casas de vinho e tavernas, e ao
redor de fogueiras nos bosques. Todo o reino sabia que a maça do príncipe Maekar derrubara
seu irmão, Baelor Quebra-Lança, em Campina de Vaufreixo. Era de esperar que falassem de
conspirações.
– Se soubessem que o Príncipe Maekar é seu pai, nunca diriam essas coisas. – Pelas suas
costas, sim, mas nunca na sua cara. – E o que você falou para esses outros escudeiros em vez
de controlar a língua?
Egg pareceu envergonhado.
– Que a morte do Príncipe Baelor foi apenas um acidente. Só que quando eu disse que o
Príncipe Maekar amava seu irmão Baelor, o escudeiro de Sor Addam disse que o amava até a
morte, e o escudeiro de Sor Mallor disse que ele pretendia amar seu irmão Aerys do mesmo
jeito. Foi quando bati nele. Acertei ele com força.
– Eu devia acertar você com força. Uma orelha inchada ia combinar com a boca inchada.
Seu pai faria o mesmo se estivesse aqui. Acha que o Príncipe Maekar precisa que um
garotinho o defenda? O que ele lhe disse quando mandou você vir comigo?
– Para servi-lo fielmente como seu escudeiro e não recuar diante de nenhuma tarefa ou
dificuldade.
– E o que mais?
– Para obedecer as leis do rei, as regras da cavalaria e a você.
– E o que mais?
– Para manter meu cabelo cortado ou tingido – o menino disse, com óbvia relutância. – E
não contar para ninguém meu nome verdadeiro.
Dunk assentiu.
– Quanto vinho esse menino bebeu?
– Ele estava bebendo cerveja de cevada.
– Vê? A cerveja de cevada estava falando. As palavras são vento, Egg. Deixe-as passar
soprando por você.
– Algumas palavras são vento. – O menino não era nada senão teimoso. – Algumas palavras
são traição. Este é um torneio de traidores, sor.
– O quê? Todos eles? – Dunk negou com a cabeça. – Se isso fosse verdade, seria há muito
tempo. O dragão negro está morto, e aqueles que lutaram com ele fugiram ou foram perdoados.
E isso não é verdade. Os filhos de Lorde Butterwell lutaram em ambos os lados.
– O que o torna meio traidor, sor.
– Isso foi há dezesseis anos. – A suave neblina de vinho que cercava Dunk se fora. Estava
zangado, e quase sóbrio. – O intendente de Lorde Butterwell é o mestre dos jogos, um homem
chamado Cosgrove. Encontre-o e coloque meu nome nas listas. Não, espere... esconda meu
nome. – Com tantos lordes por perto, um deles poderia se lembrar de Sor Duncan, o Alto, de
Campina de Vaufreixo. – Inscreva-me como o Cavaleiro da Forca. – Os plebeus adoravam
quando um cavaleiro misterioso aparecia em um torneio.
Egg passou o dedo no lábio inchado.
– O Cavaleiro da Forca, sor?
– Por causa do escudo.
– Sim, mas...
– Vá e faça como eu disse. Já leu o bastante por uma noite. – Dunk apagou a vela com os
dedos.
O sol nasceu quente e duro, implacável.
Ondas de calor se erguiam, brilhando nas paredes de pedra branca do castelo. O ar cheirava
a terra cozida e relva cortada, e nenhum sopro de vento agitava os estandartes verde, branco e
amarelo pendurados no alto da fortaleza e nos portões.
Trovão estava inquieto, de um jeito que Dunk raramente tinha visto antes. O garanhão jogava
a cabeça de um lado para o outro enquanto Egg apertava a cilha da sela. O animal até mostrou
os grandes dentes quadrados para o menino. Está quente demais, Dunk pensou, quente demais
para um homem ou para a montaria. Um cavalo de guerra não tem um temperamento plácido
nem mesmo em seus melhores momentos. A própria Mãe ficaria mal-humorada com esse
calor.
No centro do pátio, os participantes das justas começaram outra disputa. Sor Harbert
cavalgava um corcel dourado com arreios negros e decorado com as serpentes vermelha e
branca da Casa Paege, e Sor Franklyn estava em um alazão cujos enfeites de seda cinza
ostentavam as torres gêmeas dos Frey. Quando se encontraram, a lança vermelha e branca se
quebrou em duas partes, e a azul explodiu em lascas, mas nenhum dos homens perdeu o
assento. Aplausos vieram das arquibancadas e dos guardas nas muralhas do castelo, mas
foram curtos, baixos e ocos. Está quente demais para aplaudir. Dunk secou o suor da testa.
Está quente demais para disputar uma justa. Sua cabeça latejava como um tambor. Deixe-me
ganhar esta disputa e mais uma, e ficarei contente.
Os cavaleiros levaram os cavalos até a extremidade das listas e jogaram os restos de suas
lanças, o quarto par que quebravam. Três é demais. Dunk tinha postergado o momento de
vestir sua armadura o máximo possível, mesmo assim já conseguia sentir por baixo do aço
suas roupas grudando na pele. Há coisas piores do que ficar empapado de suor, disse para si
mesmo, lembrando da luta no Senhora Branca, quando os homens de ferro chegaram
fervilhando pela lateral da galé. Quando aquele dia acabou, ele estava empapado de sangue.
Com lanças novas em mãos, Paege e Frey apertaram as esporas nas montarias mais uma vez.
Torrões de terra seca rachada se espalhavam embaixo dos cascos dos cavalos a cada passo. O
barulho das lanças se quebrando fez Dunk estremecer. Vinho demais na noite passada, e
comida demais. Tinha uma vaga lembrança de ter carregado a noiva pela escada, e de
encontrar John, o Violinista, e Lorde Peake no telhado. O que eu estava fazendo no telhado?
Tinha falado sobre dragões, ele se lembrava, ou de ovos de dragões, ou algo assim, mas...
Um ruído interrompeu seu devaneio, parte rugido, parte gemido. Dunk viu o cavalo dourado
trotar até o final das listas, enquanto Sor Harbert Paege rolava debilmente no chão. Mais dois
antes da minha vez. Quanto mais cedo derrubasse Sor Uthor, mais cedo pegaria a armadura
dele, poderia tomar uma bebida gelada e descansar. Ele teria pelo menos uma hora antes que o
chamassem novamente.
O corpulento arauto de Lorde Butterwell subiu no alto da arquibancada para chamar o
próximo par de adversários.
– Sor Argrave, o Desafiante – gritou –, um cavaleiro de Nunny, a serviço de Lorde
Butterwell de Alvasparedes. Sor Glendon Flowers, o Cavaleiro do Salgueiro. Venham
adiante e provem seu valor. – Uma explosão de gargalhadas atravessou as arquibancadas.
Sor Argrave era um homem esguio e curtido, um experiente cavaleiro da casa em uma
armadura cinza amassada, cavalgando um cavalo sem arreios. Dunk conhecera tipos assim
antes; esses homens eram durões como raízes velhas, e conheciam seu ofício. Seu adversário
era o jovem Sor Glendon, montado em seu palafrém miserável e armado com uma pesada cota
de malha e meio elmo de ferro com o rosto aberto. No braço, o escudo mostrava o símbolo
ardente de seu pai. Ele precisa de uma placa peitoral e de um elmo adequado, Dunk pensou.
Um golpe na cabeça ou no peito pode matá-lo, vestido daquele jeito.
Sor Glendon ficou claramente furioso com sua apresentação. Com raiva, fez sua montaria
dar um círculo e gritou:
– Sou Glendon Ball, não Glendon Flowers. Arrisque-se a zombar de mim, arauto. Aviso que
tenho sangue de herói. – O arauto não se dignou a responder, mas mais gargalhadas saudaram
o protesto do cavaleiro.
– Por que estão rindo dele? – Dunk se perguntou em voz alta. – Qual o problema se é um
bastardo? – Flowers era o sobrenome dado aos bastardos nascidos de pais nobres na
Campina. – E que foi aquilo de Salgueiro?
– Posso descobrir, sor – Egg sugeriu.
– Não. Não é da nossa conta. Está com meu elmo? – Sor Argrave e Sor Glendon abaixaram
suas lanças diante do senhor e da senhora Butterwell. Dunk viu Butterwell se inclinar e
sussurrar algo no ouvido da noiva. A garota começou a rir.
– Sim, sor. – Egg estava usando seu chapéu mole para fazer sombra nos olhos e manter o sol
longe da cabeça raspada. Dunk gostava de provocar o garoto com aquele chapéu, mas agora só
desejava ter um igual. Embaixo daquele sol, melhor um chapéu de palha do que um de ferro.
Dunk afastou o cabelo dos olhos, ajudou a colocar o grande elmo no lugar com as duas mãos e
prendeu o gorjal. O revestimento tinha um fedor velho, e ele podia sentir o peso de todo
aquele ferro no pescoço e nos ombros. Sua cabeça latejava por causa do vinho da noite
anterior.
– Sor – Egg falou –, não é tarde demais para se retirar. Se perder Trovão e sua armadura...
Eu estaria acabado como cavaleiro.
– Por que eu perderia? – Dunk exigiu saber. Sor Argrave e Sor Glendon tinham cavalgado
para os extremos opostos das listas. – Não é como se eu fosse encarar o Tempestade Risonha.
Há algum cavaleiro aqui que poderia me causar problemas?
– Quase todos eles, sor.
– Eu devia lhe dar um tapão na orelha por isso. Sor Uthor é dez anos mais velho do que eu e
tem a metade do meu tamanho. – Sor Argrave abaixou a viseira. Sor Glendon não tinha nem
viseira para abaixar.
– Você não participa de uma justa desde Campina de Vaufreixo, sor.
Garoto insolente.
– Tenho treinado. – Não tão fielmente quando deveria, é verdade. Quando podia, investia
contra estafermos e anéis, quando algum deles estava disponível. E algumas vezes mandava
que Egg subisse em uma árvore e pendurasse um escudo ou barril sobre um apoio bem
colocado, para que pudesse investir contra ele.
– Você é melhor com uma espada do que com uma lança – Egg comentou. – Com um
machado ou uma maça, poucos são páreos para sua força.
Havia verdade suficiente naquilo para incomodar Dunk ainda mais.
– Não há competição para espadas ou maças – apontou, enquanto o filho de Bola de Fogo e
Sor Argrave, o Desafiante, começavam a investida. – Vá buscar meu escudo.
Egg fez uma careta, então foi buscar o escudo.
Do outro lado do pátio, a lança de Sor Argrave acertou o escudo de Sor Glendon e resvalou
para fora, deixando um sulco em todo o cometa. Mas a lança de Ball encontrou o centro da
placa peitoral do adversário com tamanha força que arrebentou a cilha da sela. Tanto
cavaleiro quanto sela despencaram no chão de terra. Dunk ficou impressionado mesmo sem
querer. O garoto luta quase tão bem quanto fala. Perguntou-se se isso faria com que
parassem de rir dele.
Uma trombeta tocou, alto o bastante para fazer Dunk estremecer. Mais uma vez o arauto
subiu à plataforma.
– Sor Jof rey da Casa Caswell, Lorde de Ponteamarga e Defensor dos Vaus. Sor Kyle, o
Gato do Pântano Nebuloso. Venham adiante e provem seu valor.
A armadura de Sor Kyle era de boa qualidade, mas velha e usada, com muitos amassados e
arranhões.
– Que a Mãe seja misericordiosa comigo, Sor Duncan – Sor Kyle disse para Dunk e Egg
enquanto se dirigia para as listas. – Vou lutar contra Lorde Caswell, justamente o homem que
vim ver.
Se algum homem naquele campo se sentia pior do que Dunk naquela manhã, esse alguém era
Lorde Caswell, que bebera até cair no banquete.
– É incrível que ele consiga montar um cavalo depois da noite passada – Dunk comentou. –
A vitória é sua, sor.
– Ah, não – Sor Kyle deu um sorriso sedoso. – O gato que quer uma tigela de leite precisa
saber quando ronronar e quando mostrar as garras, Sor Duncan. Se a lança de sua senhoria
chegar a arranhar meu escudo, devo despencar na terra. Mais tarde, quando levar meu cavalo
e minha armadura para ele, cumprimentarei sua senhoria pelo tanto que seu talento cresceu
desde que lhe fiz sua primeira espada. Isso o fará se lembrar de mim e, antes que o dia acabe,
devo ser um homem de Caswell novamente, um cavaleiro de Ponteamarga.
Não há honra nisso, Dunk quase disse, mas segurou a língua. Sor Kyle não seria o primeiro
cavaleiro andante a trocar sua honra por um lugar quente ao fogo.
– Como queira – murmurou. – Boa sorte para você. Ou má, se preferir.
Lorde Joffrey Caswell era um jovem magricela de vinte anos, embora fosse necessário
admitir que parecia muito mais impressionante em sua armadura do que na noite passada,
quando estivera com a cara em uma poça de vinho. Um centauro amarelo estava pintado em
seu escudo, puxando a corda de um arco longo. O mesmo centauro adornava as peças de seda
branca de seu cavalo e brilhava em ouro amarelo sobre seu elmo. Um homem que tem um
centauro como símbolo deveria cavalgar melhor do que aquilo. Dunk não sabia o quão bem
Sor Kyle empunhava uma lança, mas do jeito que Lorde Caswell se sentou em seu cavalo,
parecia que uma tosse forte poderia derrubá-lo. Tudo o que o Gato precisa fazer é passar
cavalgando por ele bem rápido.
Egg segurou as rédeas de Trovão enquanto Dunk se ajeitava pesadamente na sela alta e
rígida. Sentado ali, podia sentir olhos sobre si. Estão se perguntando se o grande cavaleiro
andante é bom. Dunk se perguntava o mesmo. Descobriria em pouco tempo.
O Gato do Pântano Nebuloso disse a verdade. A lança de Lorde Caswell balançava de um
lado para o outro através do campo, e a de Sor Kyle estava mal apontada. Nenhum dos dois
fez o cavalo passar do trote. Mesmo assim, o Gato despencou quando a ponta da lança de
Lorde Caswell conseguiu golpear seu ombro. Achei que todos os gatos caíam graciosamente
em pé, Dunk pensou, enquanto o cavaleiro rolava na poeira. A lança de Lorde Caswell não
quebrou. Enquanto fazia o cavalo dar a volta, levantou-a bem alto no ar, repetidas vezes, como
se tivesse acabado de derrubar Leo Espinholongo ou Tempestade Risonha. O Gato tirou o
elmo e saiu correndo atrás de seu cavalo.
– Meu escudo – Dunk disse para Egg. O menino o entregou. Dunk passou o braço esquerdo
pela correia e fechou a mão ao redor do punho. O peso do escudo triangular era reconfortante,
embora seu tamanho o tornasse desajeitado para manejar, e ver o homem enforcado mais uma
vez lhe deu uma sensação inquietante. Esse é um brasão de armas de mau agouro. Resolveu
que iria pintar o escudo novamente assim que pudesse. Que o Guerreiro me garanta uma
investida suave e uma vitória rápida, rezou enquanto o arauto de Butterwell subia os degraus
mais uma vez.
– Sor Uthor Underleaf – sua voz soou. – O Cavaleiro da Forca. Venham adiante e provem
seu valor.
– Seja cuidadoso, sor – Egg advertiu enquanto entregava para Dunk uma lança de torneio:
uma haste de madeira de três metros e meio de comprimento que terminava em uma ponta de
ferro arredondada no formato de um punho fechado. – Os outros escudeiros dizem que Sor
Uthor cavalga bem. E é rápido.
– Rápido? – Dunk bufou. – Ele tem um caracol no escudo. Quão rápido pode ser? – Apertou
os calcanhares no flanco de Trovão e levou o cavalo lentamente adiante, a lança erguida. Uma
vitória, e não fico pior do que antes. Duas vão nos deixar bem. Duas vitórias não é esperar
demais nesta companhia. Tinha tido sorte no sorteio, pelo menos. Podia facilmente ter tirado
o Boi Velho ou Sor Kirby Pimm ou algum dos outros heróis locais. Dunk se perguntou se o
mestre dos jogos tinha deliberadamente combinado os cavaleiros andantes uns contra os
outros, para que nenhum nobre precisasse sofrer a desonra de perder para um deles na
primeira rodada. Não importa. Um adversário de cada vez, era o que o velho sempre dizia.
Sor Uthor é minha única preocupação agora.
Eles se encontraram sob a arquibancada onde o senhor e a senhora Butterwell se sentavam
em suas almofadas, à sombra das muralhas do castelo. Lorde Frey estava ao lado deles,
embalando no joelho o filho com o nariz cheio de ranho. Uma fileira de criadas os abanava,
mesmo assim a túnica adamascada de Lorde Butterwell estava manchada sob os braços, e o
cabelo de sua senhora estava frouxo pela transpiração. Ela parecia acalorada, entediada e
desconfortável mas, quando viu Dunk, ela arfou de um jeito que o deixou vermelho sob o
elmo. Ele abaixou a lança para ela e para o senhor seu marido. Sor Uthor fez o mesmo.
Butterwell lhes desejou uma boa justa. Sua esposa mostrou a língua.
Chegara a hora. Dunk trotou para a extremidade sul das listas. A menos de quarenta metros
dali, seu oponente também tomava posição. Seu garanhão cinzento era menor do que Trovão,
mas mais jovem e mais espirituoso. Sor Uthor usava metal verde esmaltado e cota de malha
prateada. Flâmulas de seda verde e cinza fluíam de seu elmo arredondado, e seu escudo verde
ostentava um caracol prateado. Uma boa armadura e um bom cavalo representam um bom
resgate, se eu o desmontar.
Uma trombeta soou.
Trovão começou a avançar a trote lento. Dunk balançou a lança para a esquerda e a abaixou,
inclinando-a por sobre a cabeça do cavalo e a barreira de madeira entre ele e seu adversário.
O escudo protegia o lado esquerdo de seu corpo. Agachou-se para a frente, apertando as
pernas, enquanto Trovão percorria as listas. Somos um. Homem, cavalo, lança; somos uma
besta de sangue, madeira e ferro.
Sor Uthor avançava rápido, nuvens de pó saindo dos cascos de seu cavalo cinzento. Com
vinte metros entre eles, Dunk esporou Trovão para que galopasse e mirou a ponta de sua lança
bem no caracol de prata. O sol mal-humorado, a poeira, o calor, o castelo, Lorde Butterwell e
sua noiva, o Violinista e Sor Maynard, os cavaleiros, escudeiros, cavalariços, plebeus, todos
desapareceram. Só o adversário permanecia. A espora novamente. Trovão começou a correr.
O caracol estava em disparada na sua direção; crescendo a cada passo das pernas compridas
do cavalo cinzento... mas na frente vinha a lança de Sor Uthor com seu punho de ferro. Meu
escudo é forte, meu escudo vai aguentar o golpe. Só o caracol importa. Acerto o caracol e a
disputa é minha.
Quando restavam cinco metros entre eles, Sor Uthor levantou a ponta de sua lança.
Um crack soou nos ouvidos de Dunk quando acertou a lança. Sentiu o impacto no braço e no
ombro, mas não chegou a ver onde tinha sido o golpe. O punho de ferro de Uthor o acertou
bem entre os olhos, com toda a força do homem e do cavalo atrás dele.
Dunk despertou de costas, encarando os arcos de um teto abobadado. Por um momento, não
sabia onde estava, ou como chegara ali. Vozes ecoavam em sua cabeça e rostos passavam por
ele; o velho Sor Arlan, Tanselle Alta Demais, Bennis do Escudo Marrom, a Viúva Vermelha,
Baelor Quebra-Lança, Aerion, o Príncipe Brilhante, a louca e triste Senhora Vaith. Então se
lembrou de toda a justa de uma vez: o calor, o caracol, o punho de ferro acertando seu rosto.
Gemeu e rolou para se apoiar em um cotovelo. O movimento fez seu crânio latejar como um
monstruoso tambor de guerra.
Seus olhos pareciam estar funcionando, pelo menos. Também não sentia nenhum buraco na
cabeça, o que só podia ser uma coisa boa. Estava em algum tipo de porão, com barris de
vinho e cerveja por todos os lados. Pelo menos está fresco aqui, pensou, e a bebida está à
mão. O gosto de sangue estava na boca. Dunk sentiu uma pontada de medo. Se tivesse mordido
a língua, estaria mudo, além de inchado.
– Bom dia – resmungou, só para ouvir sua voz. As palavras ecoaram no porão. Dunk tentou
ficar em pé, mas o esforço fez o aposento girar.
– Devagar, devagar – disse uma voz trêmula, ao alcance da mão. Um velho encurvado
apareceu ao lado de sua cama, vestido com uma túnica tão cinza quanto seu cabelo comprido.
Ao redor de seu pescoço estava uma corrente de meistre com muitos elos. Seu rosto era
envelhecido e enrugado, com vincos profundos em ambos os lados e um grande nariz pontudo.
– Fique quieto e me deixe ver seus olhos. – Espiou o olho esquerdo de Dunk, depois o direito,
mantendo-os abertos entre o polegar e o indicador.
– Minha cabeça dói.
O meistre bufou.
– Fique grato por ela ainda estar sobre seus ombros, sor. Aqui, isso vai ajudar de algum
jeito. Beba.
Dunk se obrigou a engolir cada gota da poção nauseabunda, procurando não cuspi-la.
– O torneio – disse, secando a boca com as costas da mão. – Diga-me, o que aconteceu?
– A mesma loucura que sempre acontece nesses alvoroços. Homens batendo uns nos outros
com cavalos e varas. O sobrinho de Lorde Smallwood quebrou o punho, e a perna de Sor
Eden Risley foi esmagada sob seu cavalo, mas ninguém foi morto ainda. Embora eu tema por
você, sor.
– Eu fui desmontado? – Sua cabeça ainda parecia estar cheia de névoa, ou ele jamais teria
feito uma pergunta tão estúpida. Dunk se arrependeu no instante em que as palavras saíram.
– Com um estrondo que sacudiu os baluartes mais altos. Aqueles que haviam apostado um
bom dinheiro em você eram os mais perturbados, e seu escudeiro estava fora de si. Ele ainda
estaria sentado aqui com você se eu não o tivesse mandado embora. Não preciso de uma
criança nos meus pés. Eu o lembrei de seu dever.
Dunk descobriu que ele também precisava ser lembrado.
– Que dever?
– Sua montaria, sor. Suas armas e armadura.
– Sim – Dunk falou, recordando. O garoto era um bom escudeiro; sabia o que era exigido
dele. Perdi a espada do velho e a armadura que Pate de Aço forjou para mim.
– Seu amigo violinista também perguntou por você. Ele me disse que você precisava ter os
melhores cuidados. Eu o mandei embora também.
– Há quanto tempo está cuidando de mim? – Dunk flexionou os dedos da mão da espada.
Todos pareciam funcionar. Só minha cabeça dói, e Sor Arlan costumava dizer que eu nunca a
usava mesmo.
– Há quatro horas, pelo relógio solar.
Quatro horas não era tão mal. Certa vez ouvira a história de um cavaleiro atingido com tanta
força que dormiu por quarenta anos, e depois despertou para se descobrir velho e sem vigor.
– Sabe se Sor Uthor venceu sua segunda disputa? – Talvez o Caracol tivesse vencido o
torneio. A derrota seria menos amarga se Dunk pudesse dizer a si mesmo que tinha perdido
para o melhor cavaleiro em campo.
– Aquele lá? De fato, venceu. Contra Sor Addam Frey, um primo da noiva, e um jovem
lanceiro promissor. Sua senhoria desmaiou quando Sor Addam caiu. Ela teve que ser levada
para seus aposentos.
Dunk se obrigou a ficar em pé, cambaleando enquanto se levantava, mas o meistre o ajudou
a recuperar o equilíbrio.
– Onde estão minhas roupas? Preciso ir. Tenho que... devo...
– Se não consegue se lembrar, não deve ser muito urgente. – O meistre fez um gesto irritado.
– Sugiro que evite comidas apimentadas, bebidas fortes e futuros golpes entre os olhos... mas
aprendi há muito tempo que cavaleiros são surdos quando lhes convêm. Vá, vá. Tenho outros
tolos para cuidar.
Do lado de fora, Dunk vislumbrou um falcão voando em círculos amplos no brilhante céu
azul. Ele o invejou. Algumas nuvens se juntavam no leste, escuras como o humor de Dunk.
Enquanto encontrava seu caminho de volta ao campo das justas, o sol batia em sua cabeça
como um martelo sobre uma bigorna. A terra parecia se mover sob seus pés... ou podia ser
simplesmente ele quem estava cambaleando. Quase caiu duas vezes enquanto subia a escada
do porão. Eu devia ter escutado Egg.
Caminhou lentamente através da ala externa, em torno das bordas da multidão. No campo, o
gordo Lorde Alyn Cockshaw mancava entre dois escudeiros, a última conquista do jovem
Glendon Ball. Um terceiro escudeiro levava seu elmo, as três orgulhosas penas quebradas.
– Sor John, o Violinista – o arauto gritou. – Sor Franklin da Casa Frey, um cavaleiro das
Gêmeas, jurado ao Senhor da Travessia. Venham adiante e provem seu valor.
Dunk só podia ficar parado, observando enquanto o grande cavalo negro do Violinista
trotava pelo campo em um redemoinho de seda azul e espadas e violinos dourados. Sua placa
peitoral era esmaltada de azul também, assim como as proteções de joelho e cotovelo, as
grevas e o gorjal. A cota de malha por baixo era dourada. Sor Franklyn montava um cinzento
malhado, com uma crina prateada fluida, para combinar com o cinza de suas sedas e o prata de
sua armadura. O escudo, o sobretudo e os adornos do cavalo ostentavam as torres gêmeas dos
Frey. Eles atacaram, e atacaram novamente. Dunk ficou assistindo, mas não viu nada daquilo.
Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo, repreendia a si mesmo. Ele
tinha um caracol no escudo. Como pode perder para um homem com um caracol no escudo?
Havia aplausos ao seu redor. Quando Dunk levantou o olhar, viu que Franklyn Frey estava
no chão. O Violinista tinha desmontado para ajudar seu adversário caído a ficar em pé. Ele
está um passo mais perto do ovo do dragão, Dunk pensou, e onde eu estou?
Enquanto se aproximava do portão de trás, Dunk encontrou a companhia de anões do
banquete da noite passada se preparando para partir. Estavam prendendo um pônei ao porco
de madeira com rodas, e um segundo a uma carroça de desenho mais convencional. Eram seis,
Dunk viu, um menor e mais malformado do que o outro. Alguns podiam ser crianças, mas eram
todos tão pequenos que era difícil dizer. À luz do dia, vestidos com calções de montar e
mantos com capuz de tecido grosso, pareciam menos engraçados do que quando estavam
vestidos com as roupas de retalhos.
– Bom dia para vocês – Dunk disse para ser cortês. – Vão pegar a estrada? Há nuvens a
leste, pode significar chuva.
A única resposta que conseguiu foi um olhar do anão mais feio. Foi ele quem colocou o seio
da Senhora Butterwell para fora noite passada? De perto, o homenzinho tinha cheiro de
latrina. Uma lufada foi o suficiente para fazer Dunk apressar o passo.
O caminho através da Casa de Leite parecia levar Dunk tão longe quanto aquele que certa
vez o levou, com Egg, através das areias de Dorne. Manteve a muralha ao seu lado e de
tempos em tempos se inclinava sobre ela. Cada vez que virava a cabeça, o mundo rodopiava.
Uma bebida, ele pensou. Preciso de um pouco de água, ou então vou despencar.
Um cavalariço de passagem lhe disse onde encontrar o poço mais próximo. Foi lá que
encontrou Kyle, o Gato, conversando em voz baixa com Maynard Plumm. Os ombros de Sor
Kyle estavam caídos de desânimo, mas ele levantou o olhar quando Dunk se aproximou.
– Sor Duncan? Tínhamos ouvido que estava morto, ou morrendo.
Dunk esfregou as têmporas.
– Gostaria de estar.
– Conheço bem essa sensação – Sor Kyle suspirou. – Lorde Caswell não me reconheceu.
Quando eu lhe disse que moldei sua primeira espada, ele me encarou como se eu tivesse
perdido o juízo. Disse que não havia lugar em Ponteamarga para cavaleiros tão fracos quanto
eu demonstrara ser. – O Gato deu uma risada amarga. – Mas pegou minhas armas e armadura.
Minha montaria também. O que vou fazer?
Dunk não tinha resposta para ele. Até mesmo um cavaleiro sem vínculos precisava de um
cavalo para cavalgar; mercenários tinham que ter espadas para vender.
– Você vai encontrar outro cavalo – Dunk disse, enquanto pegava o balde. – Os Sete Reinos
estão cheios de cavalos. Vai encontrar algum outro senhor para armá-lo. – Colocou as mãos
em forma de concha, encheu-as de água e bebeu.
– Algum outro senhor. Sim. Conhece algum? Não sou tão jovem ou forte quanto você. Nem
tão grande. Homens grandes são sempre necessários. Lorde Butterwell gosta de cavaleiros
grandes, por exemplo. Olhe para aquele Tom Heddle. Já o viu disputar uma justa? Derrotou
cada homem que encarou. O rapaz do Bola de Fogo tem feito o mesmo. O Violinista também.
Gostaria que tivesse sido ele a me desmontar. Ele se recusa a pegar resgates. Não quer nada
além do ovo de dragão, diz... isso e a amizade de seus adversários caídos. A flor da cavalaria,
aquele ali.
Maynard Plumm deu uma gargalhada.
– O violino da cavalaria, você quer dizer. O garoto está armando uma tempestade, e todos
nós devíamos ir antes que ela irrompa.
– Não pega resgates? – Dunk perguntou. – Um gesto galante.
– Gestos galantes são fáceis quando sua bolsa está cheia de ouro – Sor Maynard comentou.
– Há uma lição aqui, se tem o bom senso de percebê-la, Sor Duncan. Não é tarde demais para
ir embora.
– Ir? Ir para onde?
Sor Maynard deu de ombros.
– Para qualquer lugar. Winterfell, Solarestival, Asshai da Sombra. Não importa, desde que
não seja aqui. Pegue seu cavalo e armadura e escape pelo portão de trás. Ninguém sentirá sua
falta. O Caracol tem a próxima disputa na qual pensar, e o resto tem olhos apenas para as
justas.
Por meio segundo, Dunk ficou tentado. Enquanto estivesse armado e a cavalo, continuaria a
ser um cavaleiro de algum tipo. Sem isso, não era mais do que um pedinte. Um pedinte
grande, mas um pedinte do mesmo jeito. Mas suas armas e armadura pertenciam a Sor Uthor
agora. Assim como Trovão. Melhor um pedinte do que um ladrão. Ele fora as duas coisas na
Baixada das Pulgas, quando corria com Furão, Rafe e Pudim, mas o velho o salvara daquela
vida. Sabia o que Sor Arlan de Centarbor diria sobre a sugestão de Plumm. Como Sor Arlan
estava morto, Dunk disse por ele.
– “Até mesmo um cavaleiro andante tem sua honra.”
– Você prefere morrer com sua honra intacta ou viver com ela manchada? Não, poupe-me,
sei o que vai dizer. Pegue seu garoto e fuja, cavaleiro da forca, antes que seu brasão de armas
se torne seu destino.
Dunk se irritou.
– Como sabe do meu destino? Teve um sonho, como John, o Violinista? O que sabe sobre
Egg?
– Sei que ovos fazem bem em ficar longe de frigideiras – Plumm comentou. – Alvasparedes
não é um lugar saudável para o garoto.
– Como se saiu em sua disputa, sor? – Dunk lhe perguntou.
– Ah, eu não tinha chance nas listas. Os presságios não eram bons. Quem você imagina que
vai reivindicar o ovo do dragão, ora?
Não eu, Dunk pensou.
– Os Sete sabem. Não eu.
– Dê um palpite, sor. Você tem dois olhos.
Ele pensou por um momento.
– O Violinista?
– Muito bem. Você se importaria de explicar seu raciocínio?
– Eu só... tenho um pressentimento.
– E eu também – disse Maynard Plumm. – Um mau pressentimento, para qualquer homem ou
garoto imprudente o bastante para ficar no caminho do nosso Violinista.
Egg estava escovando os pelos de Trovão do lado de fora da tenda, mas seu olhar estava
distante. O garoto está sofrendo pela minha queda.
– Já chega – Dunk falou. – Se continuar, Trovão vai ficar tão careca quanto você.
– Sor? – Egg largou a escova. – Eu sabia que nenhum caracol estúpido podia matá-lo, sor. –
Atirou os braços ao redor dele.
Dunk pegou o chapéu de palha mole do menino e o colocou na cabeça.
– O meistre disse que você surrupiou minha armadura.
Egg pegou o chapéu de volta, indignado.
– Esfreguei sua cota de malha e poli suas grevas, gorjal e placa peitoral, sor, mas seu elmo
está rachado e amassado onde a lança de Sor Uthor acertou. Vai precisar que o armeiro o
desamasse com martelo.
– Deixe que Sor Uthor a desamasse. É dele agora. – Nenhum cavalo, nenhuma espada,
nenhuma armadura. Talvez aqueles anões deixem que me junte à trupe deles. Seria uma
visão engraçada, seis anões esmurrando um gigante com bexigas de porco. – Trovão é dele
também. Venha. Vamos levar tudo para ele e desejar-lhe que se saia bem no resto das disputas.
– Agora, sor? Não vai resgatar Trovão?
– Com o quê, garoto? Seixos e cocô de ovelha?
– Pensei sobre isso, sor. Se conseguisse emprestado...
Dunk o interrompeu.
– Ninguém vai me emprestar nem uma moeda, Egg. Por que fariam isso? O que sou além de
um grande simplório que se autointitulou cavaleiro até que um caracol qualquer com uma vara
quase lhe arrancou a cabeça?
– Bem – disse Egg –, você podia dar Chuva, sor. Eu posso voltar cavalgando Meistre.
Iremos para Solarestival. Você pode ficar a serviço da casa de meu pai. Os estábulos dele
estão cheios de cavalos. Você poderia ter um corcel de batalha e um palafrém também.
Egg tinha boas intenções, mas Dunk não queria voltar cabisbaixo para Solarestival. Não
daquele jeito, sem dinheiro e batido, buscando serviço sem nem mesmo uma espada para
oferecer.
– Rapaz – ele disse –, isso é bom para você, mas não quero migalhas da mesa do senhor seu
pai, tampouco de seus estábulos. Talvez seja hora de nos separarmos. – Dunk sempre poderia
escapulir para se juntar à Patrulha da Cidade em Lannisporto ou em Vilavelha, gostavam de
homens grandes para isso. Bati a cabeça em cada viga de toda pousada de Lannisporto a
Porto Real. Talvez seja hora do meu tamanho me dar um pouco de dinheiro, em vez de
simplesmente um galo na cabeça. Mas patrulheiros não tinham escudeiros. – Eu lhe ensinei o
que podia, e foi bem pouco. Você se sairá melhor com um verdadeiro mestre de armas
cuidando de seu treinamento, algum velho cavaleiro feroz que saiba qual ponta da lança
segurar.
– Não quero um verdadeiro mestre de armas – Egg disse. – Quero você. E se eu usasse
minha...
– Não. Nada disso, não vou ouvir isso. Vá pegar minhas armas. Vamos apresentá-las para
Sor Uthor com os meus cumprimentos. Coisas difíceis só se tornam ainda mais difíceis se
você as adia.
Egg chutou o chão, o rosto tão caído quanto o grande chapéu de palha.
– Sim, sor. Como queira.
Do lado de fora, a tenda de Sor Uthor era bem simples: uma grande caixa quadrada de lona
cor parda, presa ao chão com cordas de cânhamo. Um caracol prateado adornava o mastro
central, em cima de uma longa flâmula cinza, mas aquela era a única decoração.
– Espere aqui – Dunk disse para Egg. O garoto estava segurando as rédeas de Trovão. O
grande corcel castanho estava carregado com as armas e armadura de Dunk, até mesmo com
seu escudo novo. O Cavaleiro da Forca. Que lúgubre cavaleiro misterioso provei ser. – Não
vou demorar muito. – Abaixou a cabeça e encolheu os ombros para passar pela aba da porta.
O exterior da tenda não o preparou para os confortos que encontrou lá dentro. O chão sob
seus pés estava coberto com tapetes de tear de Myr muito coloridos. Uma mesa de cavalete
ornamentada estava cercada por cadeiras de acampamento. A cama de penas estava coberta
com almofadas macias, e um braseiro de ferro queimava incenso perfumado.
Sor Uthor estava sentado à mesa com uma pilha de ouro e prata diante de si e uma jarra de
vinho ao lado, contando moedas com seu escudeiro, um sujeito desajeitado, quase da idade de
Dunk. De tempos em tempos, o Caracol mordia uma moeda ou separava outra do resto.
– Vejo que ainda tenho muito o que lhe ensinar, Will – Dunk o ouviu dizer. – Essa moeda foi
cortada, a outra, raspada. E esta aqui? – Uma peça de ouro dançava entre seus dedos. – Olhe
para as moedas antes de pegá-las. Aqui, me diga o que vê. – O dragão rodopiou no ar.
Will tentou pegá-la, mas a moeda esbarrou em seus dedos e caiu no chão. Teve que ficar de
joelhos para procurá-la. Quando conseguiu achá-la, virou-a duas vezes antes de dizer:
– Esta aqui é boa, senhor. Tem um dragão de um lado e um rei do outro.
Underleaf olhou para Dunk.
– O Enforcado. É bom vê-lo se mexendo por aí, sor. Tive medo de tê-lo matado. Pode me
fazer uma gentileza e instruir meu escudeiro sobre a natureza dos dragões? Will, dê a moeda a
Sor Duncan.
Dunk não teve escolha senão aceitá-la. Ele me desmontou, precisa zombar de mim
também? Franzindo o cenho, ergueu a moeda na palma da mão, examinando os dois lados,
provando-a.
– Ouro. Não foi raspada nem cortada. O peso parece certo. Eu também a teria pego, senhor.
O que há de errado com ela?
– O rei.
Dunk olhou mais de perto. O rosto na moeda era jovem, sem barba, bonito. O Rei Aerys
estava com barba em suas moedas, assim como o velho Rei Aegon. O Rei Daeron, que viera
entre eles, não tinha barba, mas não era ele. A moeda não parecia usada o bastante para ser de
antes de Aegon, o Indigno. Dunk franziu o cenho ao olhar a palavra embaixo da cabeça. Seis
letras. Pareciam iguais às que tinha visto em outros dragões. Daeron, as letras diziam, mas
Dunk conhecia o rosto de Daeron, o Bom, e não era ele. Quando olhou novamente, notou algo
estranho na forma da quarta letra, não era...
– Daemon – deixou escapar. – Aqui diz Daemon. Mas nunca houve um rei Daemon, só...
– ... o Pretendente. Daemon Blackfyre cunhou suas próprias moedas durante sua rebelião.
– É ouro, no entanto – Will argumentou. – Se é ouro, deve ser tão bom quanto qualquer outro
dragão, meu senhor.
O Caracol lhe deu um tapão na lateral da cabeça.
– Cretino. Sim, é ouro. Ouro rebelde. Ouro de traidor. É traição ter uma moeda dessas, e
uma traição duas vezes maior passá-la adiante. Vou precisar derreter isso. – Bateu no homem
de novo. – Saia da minha vista. Este bom cavaleiro e eu temos assuntos a resolver.
Will não perdeu tempo em escapulir da tenda.
– Sente-se – Sor Uthor disse educadamente. – Aceita um vinho? – Aqui em sua própria
tenda, Underleaf parecia um homem diferente daquele do banquete.
Um caracol se esconde em sua concha, Dunk se lembrou.
– Não, obrigado. – Jogou a moeda de volta para Sor Uthor. Ouro de traidor. Ouro de
Blackfyre. Egg disse que aquele era um torneio de traidores, mas eu não escutei. Devia
desculpas ao garoto.
– Meia taça – Underleaf insistiu. – Parece que precisa de uma. – Encheu duas taças de vinho
e ofereceu uma a Dunk. Fora de sua armadura, ele parecia mais um comerciante do que um
cavaleiro. – Veio tratar do confisco, presumo.
– Sim. – Dunk tomou o vinho. Talvez ajudasse a fazer sua cabeça parar de latejar. – Trouxe
meu cavalo, minhas armas e armadura. Fique com tudo, e com os meus cumprimentos.
Sor Uthor sorriu.
– E é aí que digo que sua conduta é muito galante.
Dunk se perguntou se galante era um jeito cavalheiresco de dizer desajeitado.
– É gentil de sua parte dizer isso, mas...
– Acho que me entendeu mal, sor. Seria muito ousado da minha parte perguntar como chegou
a ser cavaleiro, sor?
– Sor Arlan de Centarbor me encontrou na Baixada das Pulgas, perseguindo porcos. Seu
antigo escudeiro havia sido assassinado no Campo do Capim-Vermelho, então ele precisava
de alguém para cuidar da sua montaria e limpar sua cota de malha. Ele prometeu que me
ensinaria a lutar com espada e lança, e como cavalgar um cavalo se eu o servisse, e eu o servi.
– Uma história encantadora... embora se eu fosse você deixaria de lado a parte dos porcos.
Ora, onde está esse seu Sor Arlan agora?
– Ele morreu. Eu o enterrei.
– Entendo. Você o levou de volta a Centarbor?
– Eu não sabia onde era. – Dunk nunca vira a Centarbor do velho. Sor Arlan raramente
falava sobre o lugar, não mais do que Dunk falava sobre a Baixada das Pulgas. – Eu o enterrei
em uma encosta voltada para oeste, para que ele pudesse ver o pôr do sol. – A cadeira de
acampamento estalou de forma alarmante com seu peso.
Sor Uthor retomou seu assento.
– Tenho minha própria armadura e um cavalo melhor que o seu. O que vou fazer com um
velho pangaré acabado, um saco de metal amassado e uma cota de malha enferrujada?
– Pate de Aço fez aquela armadura – Dunk falou, com uma ponta de raiva. – Egg cuida bem
dela. Não há nenhum ponto de ferrugem na minha cota de malha, e o aço é bom e forte.
– Forte e pesado – Sor Uthor reclamou –, e grande demais para qualquer homem de tamanho
normal. Você é grande como ninguém, Duncan, o Alto. Quanto ao seu cavalo, é velho demais
para cavalgar e fibroso demais para ser comido.
– Trovão não é mais tão jovem – Dunk admitiu – e minha armadura é grande, como diz. Você
pode vendê-la, no entanto. Em Lannisporto e em Porto Real há muitos ferreiros que podem
comprá-la de você.
– Por um décimo do que vale, talvez. – Sor Uthor admitiu. – E só para derreter o metal.
Não. É da doce prata que preciso, não do velho ferro. A moeda do reino. Agora, deseja
resgatar suas armas ou não?
Dunk virou a taça entre as mãos, franzindo o cenho. Era de prata sólida, com uma fileira de
caracóis dourados incrustrados ao redor da borda. O vinho era dourado também, e inebriante
ao paladar.
– Se querer fosse poder, sim, eu pagaria. E com pazer. Só que...
– ... você não tem nem dois veados para contar história.
– Se você pudesse... pudesse emprestar meu cavalo e minha armadura, eu pagaria o resgate
mais tarde. Assim que conseguisse as moedas.
O Caracol parecia achar graça.
– Onde você vai conseguir isso, ora?
– Eu poderia pegar serviço com algum senhor, ou... – Era difícil fazer as palavras saírem.
Elas o faziam parecer um mendigo. – Poderia levar alguns anos, mas eu o pagaria. Juro.
– Por sua honra de cavaleiro?
Dunk corou.
– Eu poderia fazer uma marca em um pergaminho.
– Um rabisco de um cavaleiro andante em um pedaço de papel? – Sor Uthor revirou os
olhos. – Só se for para limpar minha bunda. Não, obrigado.
– Você é um cavaleiro andante também.
– Agora você me insulta. Eu cavalgo por onde quero e não sirvo outro homem além de mim
mesmo, é verdade... mas já faz muitos anos desde que dormi sob uma sebe. Descobri que as
estalagens são muito mais confortáveis. Sou um cavaleiro de torneio, o melhor que já teve o
prazer de conhecer.
– O melhor? – A arrogância dele deixou Dunk zangado. – O Tempestade Risonha pode não
concordar, sor. Nem Leo Espinholongo, nem Bracken, o Bruto. Em Campina de Vaufreixo,
ninguém falava de caracóis. Por que isso, se você é um campeão de torneios tão famoso?
– Ouviu me chamar de campeão? É aí que se engana. Eu preferiria ter varíola. Obrigado,
mas não. Vou ganhar a próxima justa, sim, mas na final vou cair. Butterwell dará trinta dragões
para o cavaleiro que ficar em segundo lugar, isso será suficiente para mim... com alguns bons
resgates e os ganhos das minhas apostas. – Gesticulou na direção da pilha de veados de prata
e dragões de ouro na mesa. – Você parece um camarada saudável, e é muito grande. O tamanho
sempre impressiona os tolos, embora não signifique nada em uma justa. Will conseguiu que as
probabilidades fossem de três a um contra mim. Lorde Shawney apostou cinco contra um, o
tolo. – Pegou um veado de prata e o fez rodopiar com um estalar dos longos dedos. – O Boi
Velho será o próximo a cair. Depois o Cavaleiro do Salgueiro, se sobreviver até esse ponto.
Do jeito que as coisas vão, terei boas chanches contra ambos. O povo ama os heróis locais.
– Sor Glendon tem sangue de herói – Dunk deixou escapar.
– Ah, espero que sim. Sangue de herói deve ser bom para dois a um. Sangue de puta atrai
probabilidades piores. Sor Glendon fala sobre seu suposto pai em todas as oportunidades,
mas notou que ele nunca menciona a mãe? Por um bom motivo. Ele nasceu de uma seguidora
de acampamento. Jenny era o nome dela. Jenny Merreca, era como a chamavam até o Campo
do Capim-Vermelho. Na noite anterior à batalha, ela fodeu com tantos homens que depois
disso ficou conhecida como Jenny do Capim-Vermelho. Bola de Fogo a teve, não duvido,
assim como uma centena de outros homens. Nosso amigo Glendon presume demais, me parece.
Ele nem mesmo tem cabelo ruivo.
Sangue de herói, Dunk pensou.
– Ele diz que é um cavaleiro.
– Ah, essa parte é verdade. O menino e sua irmã cresceram em um bordel chamado
Salgueiro. Depois que Jenny Merreca morreu, as outras putas cuidaram deles e alimentaram a
história que a mãe do rapaz inventara, sobre ele ser da semente de Bola de Fogo. Um velho
escudeiro que vivia ali perto deu treinamento ao garoto em troca de cerveja e boceta. Mas,
por ser um escudeiro, não podia armar o pequeno bastardo cavaleiro. Seis meses depois, no
entanto, um grupo de cavaleiros chegou ao bordel e um certo Sor Morgan Dunstable pegou
uma afeição bêbada pela irmã de Sor Glendon. Só que ela ainda era virgem, e Dunstabel não
tinha como pagar o preço da sua virgindade. Então uma barganha foi acertada. Sor Morgan
declarou o seu irmão cavaleiro, ali mesmo no Salgueiro, na frente de vinte testemunhas, e
depois disso a irmãzinha foi com ele para o andar de cima e deixou-o colher sua flor. E aqui
estamos.
Qualquer cavaleiro podia armar um cavaleiro. Quando era escudeiro de Sor Arlan, Dunk
ouvira histórias sobre outros homens que haviam comprado seu título de cavaleiro com uma
gentileza, uma ameaça ou uma bolsa de moedas de prata, mas nunca com a virgindade da irmã.
– É só uma história – se ouviu dizendo. – Não pode ser verdade.
– Eu a ouvi de Kirby Pimm, que afirma que estava lá, uma testemunha da cavalaria. – Sor
Uthor deu de ombros. – Filho de herói, filho de puta, ou ambos, quando me encarar, o menino
vai cair.
– O sorteio pode lhe dar outro adversário.
Sor Uthor ergueu uma sobrancelha.
– Cosgrove gosta tanto de prata quanto qualquer outro homem. Eu prometo a você, vou
disputar com o Boi Velho e depois com o garoto. Você se importaria em apostar nisso?
– Não tenho nada para apostar. – Dunk não sabia o que o incomodava mais: saber que o
Caracol estava subornando o mestre dos jogos para conseguir os oponentes que desejava ou
perceber que o homem escolhera lutar com ele. Ficou em pé. – Já disse o que vim para dizer.
Meu cavalo e minha espada são seus, e toda a minha armadura.
O Caracol estalou os dedos.
– Talvez haja outra maneira. Você não é completamente desprovido de talentos. Cai de um
jeito esplêndido. – Os lábios de Sor Uthor brilharam quando ele sorriu. – Eu lhe emprestarei
seu cavalo e sua armadura... se ficar ao meu serviço.
– Serviço? – Dunk não entendeu. – Que tipo de serviço? Você tem um escudeiro. Precisa de
uma guarnição para algum castelo?
– Precisaria se tivesse um castelo. Verdade seja dita, prefiro uma boa estalagem. Castelos
são muito caros para se manter. Não, o serviço que preciso de você é que me enfrente mais
algumas vezes em torneios. Vinte vezes seriam suficientes. Pode fazer isso, certamente? Você
teria um décimo dos meus ganhos e, no futuro, prometo acertar nesse seu peito largo, não na
cabeça.
– Quer que eu viaje com você para ser desmontado?
Sor Uthor sorriu agradavelmente.
– Você é uma espécie impressionante. Ninguém jamais vai acreditar que um velho de
ombros encurvados e um caracol no escudo possa derrubá-lo. – Coçou o queixo. – Você
precisa de um símbolo novo, por falar nisso. Aquele homem enforcado é sombrio o bastante,
eu garanto, mas... bem, está enforcado, não está? Morto e derrotado. Precisamos de algo mais
feroz. Uma cabeça de urso, talvez. Uma caveira. Ou três caveiras, melhor ainda. Um bebê
empalado em uma lança. E você precisa deixar o cabelo e a barba crescerem; quanto mais
selvagem e desgrenhado, melhor. Há mais desses pequenos torneios do que você imagina.
Com as probabilidades que posso conseguir, ganharíamos o suficiente para comprar um ovo
de dragão antes...
– ... parece que estou desesperado? Perdi minha armadura, não minha honra. Você tem
Trovão e minhas armas, nada mais.
– O orgulho o transformará em um mendigo, sor. Poderia fazer coisas muito piores do que
cavalgar comigo. Pelo menos posso lhe ensinar uma ou duas coisas sobre justas, a respeito
das quais você é bem ignorante atualmente.
– Você me faria de tolo.
– Fiz isso antes. E até mesmo os tolos precisam comer.
Dunk queria arrancar aquele sorriso do rosto dele.
– Vejo por que tem um caracol no escudo. Não é um cavaleiro de verdade.
– Você fala como um verdadeiro pateta. É tão cego que não consegue ver o perigo? – Sor
Uthor colocou a taça de lado. – Sabe por que eu o acertei onde o fiz, sor? – Ficou em pé e
tocou Dunk de leve no meio do peito. – Uma ponta de lança colocada aqui o teria jogado no
chão com a mesma velocidade. A cabeça é um alvo menor, o golpe é mais difícil de acertar...
embora provavelmente seja mais mortal. Fui pago para acertá-lo aí.
– Pago? – Dunk se afastou dele. – O que quer dizer?
– Seis dragões pagos com antecedência, mais quatro prometidos depois que morresse. Uma
soma insignificante pela vida de um cavaleiro. Seja grato por isso. Se tivessem oferecido
mais, eu teria colocado a ponta da minha lança na abertura dos olhos.
Dunk se sentiu atordoado de novo. Por que alguém pagaria para me ver morto? Não fiz
mal a ninguém em Alvasparedes. Certamente, ninguém o odiava tanto quanto o irmão de Egg,
Aerion, mas o Príncipe Brilhante estava no exílio do outro lado do mar estreito.
– Quem o pagou?
– Um criado trouxe o ouro ao nascer do sol, não muito depois que o mestre dos jogos
acertou os pares. O rosto estava coberto com capuz, e ele não disse o nome de seu mestre.
– Mas por quê? – Dunk perguntou.
– Não perguntei. – Sor Uthor encheu sua taça novamente. – Acho que você tem mais
inimigos do que imagina, Sor Duncan. Como não? Há quem diga que é a causa de todos os
nossos problemas.
Dunk sentiu uma mão fria em seu coração.
– Explique o que quer dizer.
O Caracol deu de ombros.
– Posso não ter estado em Campina de Vaufreixo, mas as justas são meu pão e sal.
Acompanho torneios de longe tão fielmente quanto os meistres seguem estrelas. Sei como um
certo cavaleiro andante se tornou a causa de um Julgamento de Sete em Campina de Vaufreixo,
resultando na morte de Baelor Quebra-Lança pelas mãos de seu irmão Maekar. – Sor Uthor se
sentou e esticou as pernas. – O Príncipe Baelor era muito amado. O Príncipe Brilhante tinha
amigos também, amigos que não esqueceram a causa de seu exílio. Pense na minha oferta, sor.
O caracol pode deixar um rastro de gosma atrás dele, mas um pouco de gosma não faz mal a
ninguém... mas se dança com dragões, deve esperar se queimar.
O dia parecia mais sombrio quando Dunk saiu da tenda do Caracol. As nuvens a leste estavam
maiores e mais escuras, e o sol estava mergulhando no oeste, lançando uma sombra comprida
pelo pátio. Dunk encontrou o escudeiro Will inspecionando as patas de Trovão.
– Onde está Egg? – perguntou para ele.
– O menino careca? Como vou saber? Vagando por aí.
Ele não aguentou se despedir de Trovão, Dunk imaginou. Deve ter voltado para a tenda,
com seus livros.
No entanto, Egg não estava na tenda. Os livros estavam lá, arrumados ordenadamente em
uma pilha ao lado do saco de dormir, mas não havia sinal do garoto. Algo estava errado. Dunk
conseguia sentir. Egg não era de vagar por aí sem sua permissão.
Dois homens de armas grisalhos bebiam cerveja de cevada do lado de fora de um pavilhão
listrado, a alguns metros dali.
– ... bem, maldito seja, uma vez foi o bastante para mim – um deles murmurou. – A relva
estava verde quando o sol nasceu, sim... – Parou de falar quando o outro homem lhe deu um
cutucão, e só então notou a presença de Dunk. – Sor?
– Viram meu escudeiro? O nome dele é Egg.
O homem coçou a barba cinzenta por fazer, abaixo da orelha.
– Eu me lembro dele. Menos cabelo do que eu, e uma boca que era três vezes o seu tamanho.
Alguns rapazes deram uma coça nele, mas isso foi na noite passada. Não o vi depois disso,
sor.
– Deve ter se assustado – disse seu companheiro.
Dunk lhe deu um olhar duro.
– Se ele voltar, digam-lhe para esperar por mim aqui.
– Sim, sor. Faremos isso.
Talvez esteja apenas assistindo às justas. Dunk se dirigiu para o campo de disputas.
Enquanto passava pelos estábulos, encontrou Sor Glendon Ball escovando um bonito alazão
de batalha.
– Viu Egg? – perguntou para ele.
– Passou por aqui há algum tempo. – Sor Glendon puxou uma cenoura do bolso e alimentou
o alazão. – Gosta do meu novo cavalo? Lorde Costayne mandou seu escudeiro resgatá-lo, mas
eu lhe disse para guardar seu ouro. Pretendo ficar com ele.
– Sua senhoria não vai gostar disso.
– Sua senhoria disse que eu não tinha o direito de colocar uma bola de fogo no meu escudo.
Disse que meu símbolo devia ser um monte de salgueiros. Sua senhoria pode se foder.
Dunk não pôde deixar de sorrir. Tinha jantado na mesma mesa, engasgado com os mesmos
pratos amargos servidos a gente como o Príncipe Brilhante e Sor Steffon Fossoway. Sentiu
uma certa afinidade com o jovem e irritadiço cavaleiro. Pelo que sei, minha mãe foi uma
puta também.
– Quantos cavalos ganhou?
Sor Glendon deu de ombros.
– Perdi as contas. Mortimer Boggs ainda me deve um. Mas disse que prefere comer seu
cavalo do que ver o bastardo de uma puta qualquer cavalgando o animal. E atacou a própria
armadura com um martelo antes de mandá-la para mim. Está cheia de buracos. Imagino que
possa conseguir alguma coisa com o metal. – Parecia mais triste do que zangado. – Havia um
estábulo na... na estalagem onde fui criado. Trabalhei lá quando era garoto, e, quando podia,
escapulia com os cavalos enquanto os donos estavam ocupados. Sempre fui bom com cavalos.
Castrados, ronceiros, palafréns, cavalos de puxar carretas, de arados, de guerra, cavalguei
todos eles. Até um corcel de areia de Dorne. Tinha um velho que eu conhecia que me ensinou
como fazer minhas próprias lanças. Pensei que, se eu mostrasse para todos eles o quão bom eu
era, não teriam outra escolha senão admitir que eu era filho do meu pai. Mas não vão fazer
isso. Nem mesmo agora. Simplesmente não vão.
– Alguns nunca vão – Dunk lhe disse. – Não importa o que você faça. Outros, no entanto...
não são todos iguais. Conheci alguns que eram bons. – Pensou por um momento. – Quando o
torneio acabar, Egg e eu pretendemos ir para o Norte, pegar serviço em Winterfell e lutar
pelos Stark contra os homens de ferro. Você podia ir conosco. – O Norte era um mundo à
parte, Sor Arlan sempre dizia. Ninguém naqueles lados devia conhecer a história de Jenny
Merreca e o Cavaleiro do Salgueiro. Ninguém vai rir de você lá. Vão conhecê-lo pela sua
lâmina e julgá-lo pelo seu valor.
Sor Glendon lhe deu um olhar desconfiado.
– Por que eu faria isso? Está me dizendo que devo fugir e me esconder?
– Não, só pensei... duas espadas em vez de uma. As estradas não são tão seguras quanto
costumavam ser.
– Isso é verdade – o menino disse com tristeza. – Mas meu pai certa vez teve um lugar
prometido entre a Guarda Real. Pretendo reivindicar o manto branco que ele nunca conseguiu
usar.
Você tem tanta chance de usar um manto branco quanto eu, Dunk quase disse. Você
nasceu de uma seguidora de acampamento, e eu me arrastei para fora das entranhas da
Baixada das Pulgas. Reis não veem honra em tipos como você e eu. O rapaz não aceitaria a
verdade com amabilidade, no entanto. Em vez disso, Dunk disse:
– Força para seu braço, então.
Tinha se afastado apenas alguns metros quando Sor Glendon o chamou.
– Sor Duncan, espere. Eu... eu não devia ter sido tão ríspido. Um cavaleiro precisa ser
cortês, minha mãe costumava dizer. – O menino parecia lutar em busca das palavras. – Lorde
Peake veio me ver depois da minha última justa. Ofereceu-me um lugar em Pontestrelada. Ele
disse que uma tempestade estava chegando a Westeros, daquelas que não eram vistas há uma
geração, e que precisaria de espadas e homens a seu serviço. Homens leais, que sabiam
obedecer.
Durk achava difícil acreditar naquilo. Gormon Peake deixara bem claro seu desprezo pelos
cavaleiros andantes, tanto na estrada quanto no telhado, mas a oferta era bem generosa.
– Peake é um grande senhor – disse cauteloso. – Mas... mas não é um homem em quem eu
confiaria, acho.
– Não. – O menino corou. – Havia um preço. Ele me aceitaria em seu serviço, disse... mas
primeiro eu tinha que provar minha lealdade. Ele tinha visto que eu enfrentaria seu amigo, o
Violinista, na sequência, e queria que eu jurasse perder.
Dunk acreditou nele. Devia estar surpreso, sabia disso, mas, de algum modo, não estava.
– O que você disse?
– Disse que não seria capaz de perder para o Violinista nem se eu tentasse, que já tinha
derrubado homens muito melhores do que ele, que o ovo do dragão seria meu antes que o dia
acabasse. – Ball sorriu debilmente. – Não era a resposta que ele queria. Chamou-me de tolo e
disse que era melhor eu tomar cuidado. O Violinista tinha muitos amigos, disse, e eu não tinha
nenhum.
Dunk colocou a mão em seu ombro e apertou.
– Você tem um, sor. Dois, assim que eu encontrar Egg.
O rapaz o olhou nos olhos e assentiu.
– É bom saber que ainda há cavaleiros de verdade.
Dunk deu sua primeira boa olhada em Sor Tommard Heddle enquanto procurava Egg entre a
multidão que assistia às listas. De constituição pesada e corpulento, com um peito que parecia
um barril, o genro de Lorde Butterwell usava placa negra sobre couro cozido e um elmo
ornamentado, moldado na forma de algum demônio com escamas e babando. Seu cavalo era
três palmos mais alto do que Trovão e quinze quilos mais pesado, um animal monstruoso,
blindado com um manto de cota de malha. O peso de todo aquele ferro o tornava lento, então
Heddle nunca passava do trote enquanto atacava; mas isso não o impediu de acabar logo com
Sor Clarence Charlton. Enquanto Charlton era tirado do campo sobre uma maca, Heddle tirou
seu elmo demoníaco. Sua cabeça era grande e careca, a barba, negra e quadrada. Furúnculos
vermelhos inflamados ulceravam em suas bochechas e no pescoço.
Dunk conhecia aquele rosto. Heddle era o cavaleiro que grunhira com ele no quarto, quando
tocara no ovo de dragão, o homem com a voz profunda que ouvira falar com Lorde Peake.
Uma confusão de palavras voltou até ele. ... banquete de mendigo, você colocou diante de
nós... O menino é filho de seu pai?... Açoamargo... Precisamos de um guerreiro... Sangue de
Leite espera... O menino é filho de seu pai?... Garanto a você que Corvo de Sangue não se
importa com sonhos... O menino é filho de seu pai?
Olhou para a arquibancada, perguntando-se, de algum modo, Egg tinha planejado tomar seu
lugar de direito entre os nobres. Mas não havia sinal do garoto. Butterwell e Frey não estavam
lá, tampouco, embora a esposa de Butterwell estivesse rígida em seu assento, parecendo
entediada e impaciente. Isso é estranho, Dunk refletiu. Aquele era o castelo de Butterwell, seu
casamento, e Frey era o pai da noiva. Aquelas justas eram em honra ao casal. Onde teriam
ido?
– Sor Uthor Underleaf – o arauto ressoou. Uma sombra passou pelo rosto de Dunk enquanto
o sol era engolido por uma nuvem. – Sor Theomore da Casa Bulwer, o Boi Velho, um
cavaleiro de Coroanegra. Venham adiante e provem seu valor.
O Boi Velho era uma visão temível em sua armadura vermelho-sangue, com chifres negros
de touro se erguendo de seu elmo. No entanto, precisava da ajuda de um escudeiro forte para
subir no cavalo, e o jeito como sua cabeça se virava durante todo o tempo em que estava
cavalgando sugeria que Sor Maynard estava certo sobre seu olho. Mesmo assim, o homem
recebeu aplausos vigorosos quando entrou no campo.
O mesmo não aconteceu com o Caracol; sem dúvida, como ele preferia. Na primeira
investida, os dois cavaleiros bateram as lanças umas nas outras. Na segunda, o Boi Velho
acertou a lança no escudo de Sor Uthor, enquanto o Caracol errou o golpe completamente. A
mesma coisa aconteceu na terceira investida, e, desta vez, Sor Uthor balançou como se
estivesse prestes a cair. Está fingindo, Dunk percebeu. Está atraindo a disputa para
aumentar as probabilidades contra ele na próxima vez. Só tinha visto Will de relance,
fazendo apostas para seu mestre. Só então lhe ocorreu que poderia ter engordado a própria
bolsa apostando uma ou duas moedas no Caracol. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma
muralha de castelo.
O Boi Velho caiu na quinta investida, atingido na lateral do corpo por uma ponta de lança
que escorregou habilmente pelo escudo para atingi-lo no peito. Seu pé enroscou no estribo
quando caiu e ele foi arrastado quase quarenta metros antes que conseguissem controlar seu
cavalo. Novamente a maca entrou em cena para levá-lo ao meistre. Algumas gotas de chuva
começaram a cair enquanto Bulwer era levado embora, escurecendo seu sobretudo por onde
caíam. Dunk observou sem expressão. Estava pensando em Egg. E se esse meu inimigo
secreto colocou as mãos nele? Fazia tanto sentido quanto qualquer outra coisa. O garoto é
inocente. Se alguém tem algo contra mim, não deve ser ele a responder por isso.
Sor John, o Violinista, estava vestindo a armadura para a próxima disputa quando Dunk o
encontrou. Não menos do que três escudeiros o ajudavam, prendendo as fivelas de sua
armadura e cuidando dos arreios de seu cavalo, enquanto Lorde Alyn Cockshaw estava
sentado ali perto, bebendo vinho aguado e parecendo machucado e rabugento. Quando viu
Dunk, Lord Alyn cuspiu, derramando vinho sobre o peito.
– Como é que ainda está andando por aí? O Caracol afundou seu rosto.
– Pate de Aço fez um elmo bom e forte para mim, senhor. E minha cabeça é dura como
pedra, como Sor Arlan costumava dizer.
O Violinista riu.
– Não preste atenção em Alyn. O bastardo de Bola de Fogo o derrubou de seu cavalo com
aquele cavalinho gordo e arqueado dele, então ele decidiu que odeia todos os cavaleiros
andantes.
– Aquela criatura miserável cheia de espinhas não é filho de Quentyn Ball – Alyn Cockshaw
insistiu. – Ele nunca deveria ter tido permissão para competir. Se fosse meu casamento, eu o
teria açoitado pela presunção.
– Que donzela casaria com você? – Sor John perguntou. – E a presunção de Ball é algo
menos irritante do que esse seu beicinho. Sor Duncan, por acaso é amigo de Galtry, o Verde?
Em breve devo separá-lo de seu cavalo.
Dunk não duvidava daquilo.
– Não conheço o homem, meu senhor.
– Tomaria uma taça de vinho? Um pouco de pão e azeitonas?
– Só uma palavra, senhor.
– Pode ter todas as palavras que quiser. Vamos entrar no meu pavilhão. – O Violinista
segurou a aba da tenda para ele. – Você não, Alyn. Poderia ficar com um pouco menos de
azeitonas, verdade seja dita.
Lá dentro, o Violinista se voltou para Dunk.
– Eu sabia que Sor Uthor não tinha matado você. Meus sonhos nunca erram. E o Caracol terá
que me enfrentar em breve. Assim que eu o desmontar, exigirei suas armas e armadura de
volta. Seu cavalo também, embora mereça uma montaria melhor. Aceitaria um dos meus
cavalos como presente?
– Eu... não... não poderia fazer isso. – O pensamento deixou Dunk desconfortável. – Não
quero ser ingrato, mas...
– Se é a dívida que o incomoda, deixe esses pensamentos de lado. Não preciso de sua prata,
sor. Só de sua amizade. Como pode ser um dos meus cavaleiros sem um cavalo? – Sor John
vestiu as manoplas de aço articuladas e flexionou os dedos.
– Meu escudeiro está desaparecido.
– Fugiu com uma garota, talvez?
– Egg é jovem demais para garotas, senhor. Ele nunca me deixaria por vontade própria.
Mesmo se eu estivesse morrendo, ele ficaria comigo até que meu cadáver esfriasse. O cavalo
dele ainda está aqui. Assim como nossa mula.
– Se quiser, posso pedir para meus homens procurarem por ele.
Meus homens. Dunk não gostou de como aquilo soou. Um torneio de traidores, pensou.
– Você não é um cavaleiro andante.
– Não. – O sorriso do Violinista era cheio de charme de menino. – Mas você sabia disso
desde o início. Chama-me de meu senhor desde que nos encontramos na estrada, por que isso?
– O jeito como fala. Sua aparência. O jeito que age. – Dunk, o pateta, cabeça-dura como
uma muralha de castelo. – No telhado, noite passada, você disse algumas coisas...
– O vinho me fez falar demais, mas fui sincero em cada palavra. Pertencemos um ao outro,
você e eu. Meus sonhos não mentem.
– Seus sonhos não mentem – Dunk comentou –, mas você, sim. John não é seu nome
verdadeiro, é?
– Não. – O olhos do Violinista brilharam com malícia.
Ele tem os olhos de Egg.
– O nome verdadeiro dele será revelado em breve, para aqueles que precisam saber. –
Lorde Gormon Peake se esgueirara para dentro do pavilhão, carrancudo. – Cavaleiro andante,
eu estou avisando...
– Ah, pare com isso, Gormy – o Violinista disse. – Sor Duncan está conosco, ou estará em
breve. Eu lhe disse, sonhei com ele. – Do lado de fora, a trombeta do arauto tocou. O
Violinista virou a cabeça. – Estão me chamando para as listas. Por favor, me dê licença, Sor
Duncan. Podemos retomar nossa conversa depois que eu derrotar Sor Galtry, o Verde.
– Força em seu braço – Dunk falou. Era apenas cortesia.
Lorde Gormon permaneceu depois que Sor John saíra.
– Os sonhos dele serão a morte de todos nós.
– Quanto custou para comprar Sor Galtry? – Dunk se ouviu dizendo. – Prata foi suficiente,
ou ele exigiu ouro?
– Vejo que alguém falou demais. – Peake se sentou em uma cadeira de acampamento. –
Tenho uma dúzia de homens lá fora. Devia chamá-los e fazê-los cortar sua garganta, sor.
– Por que não faz isso?
– Sua Graça não gostaria.
Sua Graça. Dunk sentiu como se alguém o tivesse socado no estômago. Outro dragão
negro, pensou. Outra Rebelião Blackfyre. E logo outro Campo do Capim-Vermelho. O capim
não estava vermelho quando o sol nasceu.
– Por que este casamento?
– Lorde Butterwell queria uma esposa nova e jovem para aquecer sua cama, e Lorde Frey
tinha uma filha um pouco maculada. As núpcias proporcionaram um pretexto plausível para
que alguns senhores com as mesmas ideias se reunissem. A maior parte dos convidados lutou
pelo dragão negro no passado. O resto tem motivos para se ressentir do governo de Corvo de
Sangue, ou nutre reclamações e ambições próprias. Muitos de nós têm filhos e filhas em Porto
Real para garantir nossa lealdade futura, mas a maior parte dos reféns pereceu na Grande
Praga da Primavera. Nossas mãos não estão mais amarradas. Nossa vez chegou. Aerys é
fraco. Um homem estudioso, não um guerreiro. Os plebeus quase não o conhecem e não gostam
do que sabem. Seus senhores o amam menos ainda. O pai dele era fraco também, essa é a
verdade, mas quando o trono foi ameaçado ele tinha filhos para ir a campo por ele. Baelor e
Maekar, o martelo e a bigorna... mas Baelor Quebra-Lança já não existe, e o Príncipe Maekar
está enfiado em Solarestival, em desacordo com o rei e com a Mão.
Sim, Dunk pensou, e agora um cavaleiro andante estúpido entregou seu filho favorito nas
mãos de seus inimigos. Que forma melhor de garantir que o príncipe nunca saia de
Solarestival?
– Há Corvo de Sangue – disse. – Ele não é fraco.
– Não – Lorde Peake concordou. – Mas ninguém gosta de um feiticeiro, e regicidas são
amaldiçoados aos olhos dos deuses e dos homens. Ao primeiro sinal de fraqueza ou derrota,
os homens de Corvo de Sangue desaparecerão como neve no verão. E se o sonho que o
príncipe teve for verdade, e um dragão vivo aparecer aqui em Alvasparedes...
Dunk completou por ele:
– ... o trono é de vocês.
– Dele – Lorde Gormon Peake corrigiu. – Não sou mais do que um humilde servo. –
Levantou-se. – Não tente deixar o castelo, sor. Se fizer isso, considerarei prova de traição, e
você responderá com sua vida. Fomos longe demais para voltar atrás agora.
O céu cor de chumbo derramava uma chuva pesada enquanto John, o Violinista, e Sor Galtry, o
Verde, pegaram lanças novas nos extremos opostos da lista. Alguns dos convidados do
casamento fugiam na direção do grande salão, encolhidos sob os mantos.
Sor Galtry cavalgava um garanhão branco. Uma pluma caída, verde, adornava seu elmo e
uma pluma igual enfeitava a proteção de pescoço do cavalo. Seu manto era feito de retalhos
quadrados, cada um de um tom diferente de verde. Ouro incrustrado trazia brilho às suas
grevas e manoplas, e seu escudo mostrava nove jades vermelhas sobre um fundo verde-claro.
Até sua barba era tingida de verde, do jeito dos homens de Tyrosh, do outro lado do mar
estreito.
Nove vezes ele e o Violinista investiram com lanças niveladas, o cavaleiro dos retalhos
verdes e o jovem senhor das espadas e violinos dourados, e nove vezes suas lanças
quebraram. No oitavo ataque, o chão começou a amolecer, e os grandes cavalos de guerra
espalhavam água das poças de chuva. No nono, o Violinista quase perdeu o assento, mas se
recuperou antes de cair.
– Belo golpe – gritou, rindo. – Quase me derrubou, sor.
– Em breve – o cavaleiro verde gritou através da chuva.
– Não, acho que não. – O Violinista jogou a lança quebrada de lado, e um escudeiro lhe deu
uma nova.
A investida seguinte foi a última. A lança de Sor Galtry raspou no escudo do Violinista, sem
efeito, enquanto a de Sor John acertou o cavaleiro verde bem no meio do peito e o derrubou
de sua sela, para fazê-lo aterrissar em uma grande poça marrom. A leste, Dunk viu o clarão de
um relâmpago distante.
As arquibancadas se esvaziavam rapidamente, enquanto tanto plebeus quanto senhores se
esforçavam para sair do molhado.
– Veja como correm – murmurou Alyn Cockshaw enquanto se colocava ao lado de Dunk. –
Algumas gotas de chuva e todos os ousados senhores vão gritando para o abrigo. O que farão
quando a tempestade de verdade começar?, me pergunto.
A tempestade de verdade. Dunk sabia que Lorde Alyn não estava falando do tempo. O que
ele quer? Por que de repente resolveu ser meu amigo?
O arauto subiu em sua plataforma novamente.
– Sor Tommard Heddle, um cavaleiro de Alvasparedes, a serviço de Lorde Butterwell –
gritou enquanto um trovão retumbava a distância. – Sor Uthor Underleaf. Venham adiante e
provem seu valor.
Dunk olhou para Sor Uthor a tempo de ver o sorriso do Caracol azedar. Não foi por essa
disputa que ele pagou. O mestre dos jogos o enganara. Mas por quê? Alguém mais meteu a
mão, alguém mais da estima de Cosgrove do que Uthor Underleaf. Dunk remoeu aquilo por
um momento. Eles o veem como uma ameaça, então pretendem que o Negro Tom o tirem do
caminho do Violinista. O próprio Heddle era parte da conspiração de Peake; podia perder
quando fosse necessário. O que não deixava ninguém senão...
E, de repente, o próprio Lorde Peake saiu correndo pelo campo enlameado para subir os
degraus até a plataforma do arauto, o manto se agitando atrás dele.
– Fomos traídos! – gritou. – Corvo de Sangue tem um espião entre nós. O ovo do dragão foi
roubado!
Sor John, o Violinista, deu meia-volta com sua montaria.
– Meu ovo? Como isso é possível? Lorde Butterwell mantém guardas do lado de fora de seu
quarto dia e noite.
– Mortos – Lorde Peake declarou. – Mas um homem chamou o assassino antes de morrer.
Ele pretende me acusar?, Dunk se perguntou. Uma dúzia de homens o vira tocar no ovo de
dragão na noite anterior, quando levara a Senhora Butterwell até a cama do senhor seu marido.
O dedo de Lorde Gormon apontava para baixo, acusador.
– Lá está ele. O filho da prostituta. Prendam-no.
Na outra extremidade das listas, Sor Glendon Ball ergueu o olhar, confuso. Por um
momento, não pareceu compreender o que estava acontecendo, até que viu homens correndo
em sua direção, vindos de todos os lados. Então o garoto se moveu mais rápido do que Dunk
poderia imaginar. Tinha a espada meio desembainhada quando o primero homem passou o
braço ao redor de sua garganta. Ball lutou para se livrar daquele aperto, mas então outros dois
já estavam sobre ele. Bateram nele e o arrastaram pela lama. Outros homens pulavam em cima
dele, gritando e chutando. Podia ter sido eu, Dunk percebeu. Sentiu-se tão impotente quanto
em Vaufreixo, naquele dia em que lhe disseram que tinha que perder uma mão e um pé.
Alyn Cockshaw o puxou para trás.
– Fique fora disso se quiser encontrar seu escudeiro.
Dunk se virou para ele.
– O que quer dizer?
– Talvez eu saiba onde encontrar o garoto.
– Onde? – Dunk não estava a fim de jogos.
Na outra extremidade do campo, Sor Glendon foi colocado bruscamente de pé, amarrado
entre dois homens de armas em cota de malha e meio elmo. Estava sujo de lama da cintura aos
pés, e sangue e chuva escorriam por suas bochechas. Sangue de herói, pensou Dunk, enquanto
o Negro Tom desmontava diante do cativo.
– Onde está o ovo?
Sangue escorria da boca de Ball.
– Por que eu roubaria o ovo? Estava prestes a ganhá-lo.
Sim, Dunk pensou, e não podiam permitir isso.
Negro Tom bateu no rosto de Ball com a mão enluvada com cota de malha.
– Procurem nos alforjes dele – Lorde Peake ordenou. – Vamos encontrar o ovo de dragão
enrolado e escondido, aposto.
Lorde Alyn abaixou a voz.
– E lá vão eles. Venha comigo se quer encontrar seu escudeiro. Não há momento melhor do
que agora, enquanto estão todos ocupados. – Não esperou uma resposta. Dunk teve que seguilo.
Três passos grandes o colocaram ao lado do nobre.
– Se você causou qualquer dano a Egg...
– Não gosto de garotos. Por aqui. Vamos acelerar o passo.
Por uma arcada até um conjunto de degraus enlameados, virando uma esquina, Dunk seguiu
atrás dele, espalhando água das poças enquanto a chuva caía ao redor deles. Permaneceram
perto da muralha, escondidos nas sombras, e por fim pararam em um pátio fechado onde as
pedras do pavimento eram suaves e lisas. Havia construções por todos os lados. Sobre eles
havia janelas fechadas e lacradas. No centro do pátio estava um poço, cercado por um muro
baixo de pedras.
Um lugar solitário, Dunk pensou. Não gostava da sensação que tinha. Velhos instintos o
fizeram levar a mão para o punho da espada, até se lembrar de que o Caracol tinha ganhado a
arma. Ao tatear o quadril, onde a espada deveria estar pendurada, sentiu a ponta de um punhal
a cutucando a parte inferior de suas costas.
– Vire-se para mim e eu cortarei seus rins e os darei para as cozinheiras de Butterwell
prepararem para o banquete. – O punhal era empurrado na parte de trás do colete de Dunk,
insistente. – Sobre o poço. Sem movimentos súbitos, sor.
Se ele jogou Egg naquele poço, ia precisar mais do que uma faquinha de brinquedo para
salvá-lo. Dunk caminhou para a frente lentamente. Podia sentir a raiva crescendo em seu
interior.
A lâmina em suas costas desapareceu.
– Pode se virar e me encarar agora, cavaleiro andante.
Dunk se virou.
– Senhor. Isso é por causa do ovo do dragão?
– Não. Isso é por causa do dragão. Acha que vou ficar parado e deixá-lo que o roube? – Sor
Alyn fez uma careta. – Eu devia saber que não podia confiar naquele Caracol miserável para
matá-lo. Vou pegar meu ouro de volta, cada moeda.
Ele?, Dunk pensou. Este nobre gorducho, de rosto pálido e perfumado é meu inimigo
secreto? Não sabia se ria ou chorava.
– Sor Uthor mereceu o ouro. Só que eu tenho a cabeça dura.
– Parece que sim. Para trás. – Dunk deu um passo para trás. – De novo. De novo. Mais um.
Outro passo e ele encostou no poço. A parte de baixo de suas costas pressionava as pedras.
– Sente-se na borda. Não tem medo de um pequeno banho, tem? Não pode ficar mais
molhado do que está agora.
– Não sei nadar – Dunk apoiou a mão no poço. As pedras estavam molhadas. Uma se moveu
sob a pressão da palma de sua mão.
– Que pena. Vai pular ou terei que empurrá-lo?
Dunk olhou para baixo. Podia ver as gotas de chuva caindo na água, a uns bons seis metros
abaixo. As paredes estavam cobertas com uma camada de algas.
– Nunca lhe causei nenhum mal.
– E nunca causará. Daemon tem a mim. Eu comandarei sua Guarda Real. Você não é digno
de um manto branco.
– Nunca afirmei que fosse. – Daemon. O nome soou na cabeça de Dunk. Não é John. É
Daemon, como o pai. Dunk, o pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo. – Daemon
Blackfyre gerou sete filhos. Dois morreram no Campo do Capim-Vermelho, gêmeos...
– Aegon e Aemon. Miseráveis valentões sem juízo, como você. Quando éramos pequenos,
tinham prazer em atormentar Daemon e a mim. Chorei quando Açoamargo o levou para o
exílio, e de novo quando Lorde Peake me disse que ele estava vindo para casa. Mas então ele
o viu na estrada e esqueceu que eu existia. – Cockshaw balançou o punhal ameaçadoramente.
– Você pode ir para a água como está, ou pode ir sangrando. O que será?
Dunk fechou a mão ao redor da pedra solta. Estava muito menos solta do que esperava.
Antes que pudesse soltá-la, Sor Alyn avançou. Dunk girou de lado e a ponta do punhal cortou
a carne do seu braço que segurava o escudo. E então a pedra se soltou. Dunk bateu com ela na
boca de sua senhoria e sentiu o dente dele quebrar com o golpe.
– O poço, é? – Acertou o nobre na boca de novo, então soltou a pedra, agarrando Cockshaw
pelo pulso e torcendo-o até que um osso quebrou e o punhal caiu nas pedras.
– Depois de você, meu senhor. – Dando um passo para o lado, Dunk puxou o braço do nobre
e lhe deu um chute no traseiro. Lorde Alyn caiu de cabeça no poço. Foi possível ouvir o
barulho de água.
– Muito bem, sor.
Dunk deu meia-volta. Através da chuva, tudo o que conseguia ver era uma forma encapuzada
e um único olho branco pálido. Foi só quando o homem veio adiante que o rosto ensombreado
sob o capuz assumiu as feições familiares de Sor Maynard Plumm; o olho nada mais era do
que o broche de pedra da lua que prendia o manto no ombro.
Lá embaixo no poço, Lorde Alyn se debatia, espalhava água e gritava por socorro.
– Assassino! Alguém me ajude.
– Ele tentou me matar – Dunk falou.
– Isso explicaria todo esse sangue.
– Sangue? – Olhou para baixo. O braço esquerdo, do ombro até o cotovelo, a túnica
pegajosa na carne. – Ah.
Dunk não se lembrava de ter caído, mas de repente estava no chão, com gotas de chuva
escorrendo pelo rosto. Podia ouvir Lorde Alyn choramingando no poço, mas o barulho de
água tinha ficado mais fraco.
– Precisamos cuidar desse braço. – Sor Maynard passou o braço por baixo de Dunk. – Em
pé agora. Não consigo levantá-lo sozinho. Use suas pernas.
Dunk usou as pernas.
– Lorde Alyn. Vai se afogar.
– Ninguém vai sentir falta dele. Muito menos o Violinista.
– Ele não é – Dunk engasgou, pálido de dor – um violinista.
– Não. É Daemon da Casa Blackfyre, Segundo do Seu Nome. Ou então seria o primeiro, se
conseguisse chegar ao Trono de Ferro. Ficaria surpreso em saber quantos senhores preferem
que seus reis sejam corajosos e estúpidos. Daemon é jovem e arrojado, e fica bem em um
cavalo.
Os sons no poço estavam fracos demais para serem ouvidos.
– Não devíamos jogar uma corda para sua senhoria?
– Salvá-lo agora para executá-lo mais tarde? Acho que não. Deixe-o saborear a refeição
que pretendia servir a você. Venha, apoie-se em mim. – Plumm o guiou pelo pátio. De perto,
havia algo estranho nas feições de Sor Maynard. Quanto mais Dunk olhava, menos parecia ver.
– Eu o aconselhei a fugir, você se lembra, mas você estima mais sua honra do que sua vida.
Uma morte honrada é muito boa, mas e se a vida em risco não for a sua? Responderia o
mesmo, sor?
– A vida de quem? – Do poço veio o último barulho de água. – Egg? Quer dizer Egg? –
Dunk agarrou o braço de Plumm. – Onde ele está?
– Com os deuses. E você sabe o porquê, acho.
A dor que Dunk sentiu por dentro o fez esquecer seu braço. Gemeu.
– Ele tentou usar a bota.
– É o que suponho. Ele mostrou o anel para Meistre Lothar, que o entregou para Butterwell,
que sem dúvida mijou nos calções ao vê-lo e começou a se perguntar se tinha escolhido o lado
errado e o quanto Corvo de Sangue sabia sobre sua conspiração. A resposta para esta última
pergunta é “bastante”. – Plumm riu.
– Quem é você?
– Um amigo – respondeu Maynard Plumm. – Um que o esteve observando e se perguntando
sobre sua presença neste ninho de víboras. Agora fique quieto até que consertemos você.
Permanecendo nas sombras, os dois se dirigiram até a pequena tenda de Dunk. Uma vez lá
dentro, Sor Maynard acendeu o fogo, encheu uma tigela de vinho e a colocou nas chamas para
ferver. – Um corte limpo e, pelo menos, não é seu braço da espada – disse, cortando a manga
da túnica manchada de sangue de Dunk. – O corte parece ter errado o osso. Mesmo assim,
temos que lavá-lo, ou você pode perder o braço.
– Não importa. – A barriga de Dunk estava se agitando, e ele sentia que podia vomitar a
qualquer momento. – Se Egg está morto...
– ... a culpa é sua. Você devia tê-lo levado daqui. Embora eu nunca tenha dito que o garoto
estava morto. Disse que estava com os deuses. Você tem linho limpo? Seda?
– Minha túnica. A boa, que consegui em Dorne. O que quer dizer com “ele está com os
deuses”?
– A seu tempo. Primeiro, seu braço.
O vinho logo começou a fumegar. Sor Maynard encontrou a túnica boa de seda de Dunk,
cheirou-a desconfiado, então pegou um punhal e começou a cortá-la. Dunk engoliu seus
protestos.
– Ambrose Butterwell nunca foi o que se chamaria de decidido – Sor Maynard disse,
enquanto enrolava três tiras de seda e as deixava cair no vinho. – Tinha dúvidas a respeito
desta conspiração desde o início, dúvidas que se inflamaram quando descobriu que o garoto
não trazia espada. E, nesta manhã, o ovo de dragão desapareceu e, com ele, o resto de sua
coragem.
– Sor Glendon não roubou o ovo – Dunk afirmou. – Ele estava no pátio o dia todo,
disputando ou vendo as disputas dos outros.
– Peake encontrará o ovo no alforje dele do mesmo jeito. – O vinho estava fervendo. Plumm
colocou uma luva de couro e disse – Tente não gritar. – Então pegou uma tira de seda do vinho
fervente e começou a lavar o corte.
Dunk não gritou. Rangeu os dentes, mordeu a língua e bateu o punho contra a coxa com força
o bastante para deixar hematomas, mas não gritou. Sor Maynard usou o resto da túnica para
fazer uma bandagem, e amarrou-a apertado em volta do braço.
– Como se sente? – perguntou quando acabou.
– Bem mal. – Dunk estremeceu. – Onde está Egg?
– Com os deuses. Já lhe disse.
Dunk estendeu o braço e segurou o pescoço de Plumm com a mão boa.
– Fale claramente. Estou cansado de dicas e piscadelas. Me diga onde encontrar o menino,
ou vou quebrar seu maldito pescoço, seja você amigo ou não.
– No septo. Faria bem em ir armado. – Sor Maynard sorriu. – Está claro o bastante para
você, Dunk?
Sua primeira parada foi no pavilhão de Sor Uthor Underleaf.
Quando Dunk entrou, encontrou apenas o escudeiro Will inclinado sobre uma tina,
esfregando as roupas íntimas de seu mestre.
– Você de novo? Sor Uthor está no banquete. O que quer?
– Minha espada e meu escudo.
– Trouxe o resgate?
– Não.
– Então por que eu deixaria você levar suas armas?
– Preciso delas.
– Isso não é um bom motivo.
– Que tal: tente me impedir e eu mato você?
Will ficou boquiaberto.
– Estão bem ali.
Dunk parou do lado de fora do septo do castelo. Que os deuses permitam que eu não tenha
chegado tarde demais. Seu cinturão da espada estava de volta ao lugar costumeiro, preso com
firmeza à cintura. Colocou o escudo da forca no braço machucado, e o peso daquilo o fazia
latejar de dor a cada passo. Se alguém esbarrasse nele, temia que fosse gritar. Abriu as portas
com a mão boa.
Do lado de dentro, o septo estava escuro e silencioso, iluminado apenas pelas velas que
tremeluziam nos altares dos Sete. O Guerreiro tinha a maior parte das velas acesas, o que era
de se esperar em um torneio; muitos cavaleiros deviam ter ido ali para rezar por força e
coragem antes de enfrentarem as listas. O altar do Estranho estava envolto em sombras, com
uma única vela acesa. A Mãe e o Pai tinham uma dúzia de velas cada, o Ferreiro e a Donzela
um pouco menos. E, embaixo da lanterna brilhante da Velha, Lorde Butterwell estava
ajoelhado, de cabeça baixa, rezando silenciosamente por sabedoria.
Não estava sozinho. Nem bem Dunk olhara para ele e dois homens de armas se moveram
para interceptá-lo, os rostos severos sob meios elmos. Ambos usavam cota de malha embaixo
de sobretudo listrado com as ondas verdes, brancas e amarelas da Casa Butterwell.
– Pare, sor – um deles disse. – Não tem o que fazer aqui.
– Sim, ele tem. Eu avisei que ele me encontraria.
Era a voz de Egg.
Quando ele saiu das sombras embaixo do Pai, a cabeça raspada brilhando sob as luzes das
velas, Dunk quase correu até o menino para abraçá-lo com um grito de alegria e esmagá-lo
entre os braços. Mas algo no tom de voz de Egg o fez hesitar. Ele parece mais zangado do que
assustado, e nunca o vi tão severo. E Butterwell de joelhos. Algo está estranho aqui.
Lorde Butterwell ficou em pé. Mesmo sob a luz fraca das velas, sua carne parecia pálida e
pegajosa.
– Deixem-no passar – disse para seus guardas. Quando eles se afastaram, acenou para que
Dunk se aproximasse. – Não fiz mal ao menino. Conheci bem o pai dele quando fui Mão do
Rei. O Príncipe Maekar precisa saber que nada disso foi ideia minha.
– Ele saberá – Dunk prometeu. O que está acontecendo aqui?
– Peake. Isso tudo é coisa dele, juro pelos Sete. – Lorde Butterwell colocou a mão no altar.
– Que os deuses me golpeiem agora se eu estiver mentindo. Ele me disse quem eu devia
convidar e quem devia ser excluído, e trouxe esse garoto pretendente dele. Nunca quis fazer
parte de nenhuma traição, tem que acreditar em mim. Já Tom Heddle, ele me incentivou, não
vou negar. Meu genro, casado com minha filha mais velha, mas não vou mentir, ele é parte
disso.
– Ele é seu campeão – Egg falou. – Se ele está nisso, então você também está.
Fique quieto, Dunk queria urrar. Essa sua língua solta ainda vai nos matar. Mesmo assim,
Butterwell parecia intimidado.
– Meu senhor, você não entende. Heddle comanda minha guarnição.
– Você deve ter alguns guardas leais – Egg disse.
– Esses homens são – Butterwell assegurou. – E mais alguns. Tenho sido muito frouxo,
confesso, mas nunca fui um traidor. Frey e eu tínhamos dúvidas sobre o pretendente de Lorde
Peake desde o início. Ele não tem a espada! Se ele fosse filho de seu pai, Açoamargo o teria
armado com a Blackfyre. E toda essa conversa sobre o dragão... loucura, loucura e tolice. –
Sua senhoria limpou o suor da testa com a manga. – E agora eles pegaram o ovo, o ovo de
dragão que meu avô ganhou do próprio rei como recompensa por serviços leais. Estava lá esta
manhã quando eu acordei e meus guardas juram que ninguém entrou ou saiu do quarto. Pode
ser que Lorde Peake os tenha comprado, não posso dizer, mas o ovo se foi. Deve estar com
eles, ou então...
Ou então o dragão saiu do ovo, Dunk pensou. Se um dragão vivo aparecesse novamente em
Westeros, tanto senhores quanto plebeus se reuniriam em torno de qualquer príncipe que
reivindicasse essa façanha.
– Meu senhor – Dunk falou –, gostaria de uma palavra com meu... meu escudeiro, se me
permite.
– Como desejar, sor. – Lorde Butterwell se ajoelhou para rezar novamente.
Dunk puxou Egg de lado e se apoiou sobre o joelho para falar com ele face a face.
– Vou lhe dar um tapão tão forte que sua cabeça vai virar para trás, e você passará o resto
da vida olhando para onde esteve.
– Devia fazer isso, sor. – Egg teve a consideração de parecer envergonhado. – Sinto muito.
Só queria mandar um corvo para meu pai.
Para que eu pudesse continuar um cavaleiro. O menino tinha boas intenções. Dunk olhou
de relance para onde Butterwell estava rezando.
– O que fez com ele?
– Eu o assustei, sor.
– Sim, posso ver isso. Ele vai ter crostas de ferida nos joelhos antes que a noite acabe.
– Não sabia mais o que fazer, sor. O meistre me trouxe até eles assim que mostrei o anel do
meu pai.
– Eles?
– Lorde Butterwell e Lorde Frey, sor. Alguns guardas estavam lá também. Todo mundo
estava desconcertado. Alguém roubou o ovo do dragão.
– Não você, espero?
Egg negou com a cabeça.
– Não, sor. Eu sabia que estava encrencado quando o meistre mostrou meu anel para Lorde
Butterwell. Pensei em dizer que tinha roubado, mas não acho que acreditaria em mim. Então
lembrei da vez que ouvi meu pai falar sobre algo que Lorde Corvo de Sangue disse, sobre
como era melhor ser assustador do que assustado, então eu lhes disse que meu pai nos mandou
aqui para espionar, que ele estava a caminho com um exército, que era melhor sua senhoria me
libertar e desistir de sua traição, ou isso significaria sua cabeça. – Deu um sorriso
envergonhado. – Funcionou melhor do que eu imaginava, sor.
Dunk queria segurar o menino pelos ombros e sacudi-lo até que seus dentes rangessem. Isso
não é um jogo, devia ter urrado. Isso é vida ou morte.
– Lorde Frey ouviu tudo isso também?
– Sim. Desejou felicidade a Lorde Butterwell em seu casamento e anunciou que estava
voltando para as Gêmeas imediatamente. Foi quando sua senhoria nos trouxe para cá para
rezar.
Frey podia fugir, Dunk pensou, mas Butterwell não tem essa opção, e cedo ou tarde vai
começar a se perguntar por que o Príncipe Maekar e seu exército não apareceram.
– Se Lorde Peake soubesse que você está no castelo...
As portas externas do septo se abriram com um estrondo. Dunk se virou para ver Negro Tom
Heddle brilhando em cota de malha e placa, com água da chuva pingando de seu manto
ensopado até formar poças sob seus pés. Uma dúzia de homens de armas estava com ele,
armados com lanças e machados. Relâmpagos reluziam azuis e brancos no céu atrás deles,
lançando sombras súbitas no chão de pedra clara. Uma rajada de vento fez todas as velas do
septo dançarem.
Ah, sete infernos malditos, foi tudo o que Dunk teve tempo de pensar antes que Heddle
dissesse:
– Eis o garoto. Peguem-no.
Lorde Butterwell ficou em pé.
– Não. Alto. O garoto não deve ser molestado. Tommard, o que significa isso?
O rosto de Heddle se contorceu de desprezo.
– Nem todos nós temos leite correndo nas veias, vossa senhoria. Levarei o garoto.
– Você não entende – A voz de Butterwell se convertera em um tremor alto e fino. – Estamos
acabados. Lorde Frey se foi, e outros o seguirão. O Príncipe Maekar está vindo com um
exército.
– Mais razões para pegar o menino como refém.
– Não, não – Butterwell falou. – Não quero mais contato com Lorde Peake ou seu
pretendente. Não vou lutar.
Negro Tom olhou friamente para seu senhor.
– Covarde. – Cuspiu. – Diga o que quiser. Vai lutar ou morrer, meu senhor. – Apontou para
Egg. – Um veado para o primeiro homem a derramar sangue.
– Não, não. – Butterwell se virou para seus próprios guardas. – Detenham-nos, ouviram? Eu
ordeno. Detenham-nos. – Mas todos os guardas estavam parados, confusos, sem saber a quem
deviam obedecer.
– Devo fazer isso eu mesmo, então? – Negro Tom desembainhou sua espada longa.
Dunk fez o mesmo.
– Atrás de mim, Egg.
– Abaixem as armas, vocês dois! – Butterwell gritou. – Não quero banho de sangue no
septo! Sor Tommard, este homem é escudo juramentado do príncipe. Ele vai matá-lo!
– Só se cair em cima de mim. – Negro Tom mostrou os dentes em um sorriso duro. – Eu o vi
disputar uma justa.
– Sou melhor com uma espada – Dunk o advertiu.
Heddle respondeu com um grunhido e atacou.
Dunk empurrou Egg bruscamente para trás e se virou para encontrar a lâmina do adversário.
Bloqueou bem o primeiro golpe, mas o solavanco da espada de Negro Tom mordendo seu
escudo e o corte enfaixado atrás dele enviaram uma onda de dor através de seu braço. Tentou
golpear a cabeça de Heddle em resposta, mas Negro Tom desviou e o atacou de novo. Dunk
quase não conseguiu bloquear com o escudo. Lascas de pinho voaram, e Heddle deu uma
gargalhada, aumentando o ataque, embaixo e em cima, embaixo e em cima novamente. Dunk
segurou cada golpe com o escudo, mas cada um deles era uma agonia, e ele se pegou cedendo
terreno.
– Pegue ele, sor – ouviu Egg gritar. – Pegue ele, pegue ele, ele está bem ali.
A boca de Dunk tinha gosto de sangue e, pior, seu corte tinha aberto novamente. Uma onda
de tontura passou por ele. A lâmina de Negro Tom estava fazendo o grande escudo triangular
em pedaços. Carvalho e ferro, guardem-me bem, senão estou morto e no inferno também,
Dunk pensou, antes de se lembrar de que seu escudo era feito de pinho. Quando suas costas
bateram com força no altar, ele caiu sobre um joelho e percebeu que não tinha mais terreno
para ceder.
– Você não é um cavaleiro – Negro Tom falou. – São lágrimas em seus olhos, imbecil?
Lágrimas de dor. Dunk se esforçou para ficar em pé e acertou o escudo em seu inimigo.
Negro Tom tropeçou para trás, mas de algum modo manteve o equilíbrio. Dunk foi atrás
dele, acertando com o escudo uma vez e outra, usando seu tamanho e força para bater em
Heddle até metade do septo. Então virou o escudo de lado e golpeou com sua espada longa, e
Heddle gritou quando o aço atravessou profundamente a lã e o músculo de sua coxa. A espada
dele balançava loucamente, mas os golpes eram desesperados e desajeitados. Dunk deixou o
escudo bloquear mais uma vez e colocou todo o seu peso no contra-ataque.
Negro Tom deu um passo para trás e encarou horrorizado seu antebraço se debatendo no
chão, sob o altar do Estranho.
– Você – engasgou –, você, você...
– Eu lhe disse. – Dunk atravessou a espada em sua garganta. – Sou melhor com uma espada.
Dois dos homens de armas fugiram pela chuva enquanto uma poça de sangue se formava sob o
corpo de Negro Tom. Os outros agarraram suas lanças e hesitaram, dando olhares cautelosos
para Dunk enquanto esperavam que seu senhor dissesse alguma coisa.
– Isso... isso não devia ter acontecido – Butterwell finalmente conseguiu dizer. Voltou-se
para Dunk e Egg. – Devemos deixar Alvasparedes antes que aqueles dois contem o que
aconteceu para Gormon Peake. Ele tem mais amigos entre os convidados do que eu. O portão
traseiro, na muralha norte, vamos escapar por lá... vamos, precisamos nos apressar.
Dunk colocou a espada na bainha.
– Egg, vá com Lorde Butterwell. – Colocou o braço ao redor do menino e baixou o tom de
voz. – Não fique com ele mais tempo do que for necessário. Dê rédeas para Chuva e fuja antes
que sua senhoria mude de lado novamente. Vá para Lagoa da Donzela, é mais perto do que
Porto Real.
– E quanto a você, sor?
– Não se preocupe comigo.
– Sou seu escudeiro.
– Sim – Dunk falou –, e fará o que digo ou lhe darei um tapão na orelha.
Um grupo de homens deixava o grande salão, parando tempo suficiente para levantar os
capuzes antes de se aventurarem na chuva. O Boi Velho estava entre eles, assim como o
magricela Lorde Caswell, novamente bêbado. Ambos deram um amplo espaço para Dunk. Sor
Mortimer Boggs lhe deu um olhar curioso, mas achou melhor não falar com ele. Uthor
Underleaf não era tão tímido:
– Chegou tarde para o banquete, sor – disse, enquanto vestia as luvas. – E vejo que está
usando uma espada novamente.
– Eu lhe darei o resgate por isso, se é tudo com o que se preocupa. – Dunk deixara seu
escudo destruído para trás e enrolara o manto no braço machucado para esconder o sangue. –
A menos que eu morra. Então tem permissão para saquear meu cadáver.
Sor Uthor deu uma gargalhada.
– Sinto cheiro de bravura ou é apenas estupidez? Os dois odores são muito parecidos, se
bem me lembro. Não é tarde demais para aceitar minha oferta, sor.
– É mais tarde do que pensa – Dunk o advertiu. Não esperou que Underleaf respondesse e
passou por ele, atravessando as portas duplas. O grande salão cheirava a cerveja, fumaça e lã
molhada. Na galeria acima, alguns músicos tocavam suavemente. Risadas ecoavam das mesas
principais, onde Sor Kirby Pimm e Sor Lucas Nayland jogavam um jogo de bebidas. Sobre o
estrado, Lorde Peake conversava seriamente com Lorde Costayne, enquanto a nova noiva de
Ambrose Butterwell estava sentada, abandonada, em seu assento de espaldar alto.
Abaixo do sal, Dunk encontrou Sor Kyle afogando seus infortúnios na cerveja de Lorde
Butterwell. Tinha um pedaço de pão sem miolo cheio de um guisado grosso feito com restos
de comida da noite anterior. “Uma tigela de castanho”, assim chamavam esse prato nas lojas
de sopa de Porto Real. Sor Kyle claramente não tinha estômago para aquilo. Intocado, o
guisado tinha esfriado e uma película de gordura brilhava em cima do caldo marrom.
Dunk sentou-se no banco ao lado dele.
– Sor Kyle.
O Gato assentiu.
– Sor Duncan. Quer um pouco de cerveja?
– Não. – Cerveja era a última coisa de que precisava.
– Está indisposto, sor? Perdoe-me, mas parece...
... melhor do que me sinto.
– O que aconteceu com Glendon Ball?
– Foi levado para o calabouço. – Sor Kyle negou com a cabeça. – Filho de prostituta ou
não, o menino nunca me pareceu um ladrão.
– Ele não é.
Sor Kyle apertou os olhos na direção dele.
– Seu braço... como...
– Um punhal. – Dunk virou o rosto para o estrado, franzindo o cenho. Escapara da morte
duas vezes naquele dia. Sabia que isso seria o bastante para a maioria dos homens. Dunk, o
pateta, cabeça-dura como uma muralha de castelo. Ficou em pé.
– Vossa Graça – chamou.
Alguns homens ali perto abaixaram suas colheres, interrompendo as conversas, e se viraram
para olhá-lo.
– Vossa Graça – Dunk disse novamente, mais alto. Atravessou o tapete de Myr, na direção
do estrado. – Daemon.
Agora, metade do salão estava em silêncio. Na mesa principal, o homem que chamava a si
mesmo de Violinista virara para sorrir para ele. Vestira uma túnica púrpura para o banquete,
Dunk viu. Púrpura, para destacar a cor de seus olhos.
– Sor Duncan, fico feliz que esteja conosco. O que quer comigo?
– Justiça – Dunk falou. – Para Glendon Ball.
O nome ecoou pelas paredes e, por meio segundo, todo homem, mulher e menino no salão
ficou paralisado. Então Lorde Costayne bateu com o punho na mesa e gritou:
– É a morte que esse aí merece, não justiça. – Uma dúzia de vozes ecoaram a dele, e Sor
Harbert Paege declarou:
– Ele é bastardo. Todos os bastardos são ladrões ou coisa pior. O sangue dirá.
Por um momento, Dunk se desesperou. Estou sozinho aqui. Mas então Sor Kyle, o Gato,
ficou em pé, oscilando de leve.
– O menino pode ser um bastardo, meus senhores, mas é bastardo de Bola de Fogo. É como
Sor Harbert disse. O sangue dirá.
Daemon franziu o cenho.
– Ninguém honra Bola de Fogo mais do que eu – disse. – Não acredito que esse falso
cavaleiro seja da semente dele. Ele roubou o ovo do dragão e assassinou três bons homens ao
fazer isso.
– Ele não roubou nada e não matou ninguém – Dunk insistiu. – Se três homens foram
assassinados, olhe para outro lugar em busca do assassino. Vossa Graça sabe tão bem quanto
eu que Sor Glendon estava no pátio o dia todo, disputando uma justa após a outra.
– Sim – Daemon admitiu. – Perguntei-me isso. Mas o ovo de dragão foi encontrado entre as
coisas dele.
– Foi? Onde está agora?
Lorde Gormon Peake se levantou, olhar frio e imperioso.
– Seguro e bem guardado. E por que isso é da sua conta, sor?
– Traga-o para cá – Dunk pediu. – Gostaria de dar outra olhada nele, senhor. Na outra noite,
só o vi por um momento.
Os olhos de Peake se estreitaram.
– Vossa Graça – disse para Daemon –, me ocorre que este cavaleiro chegou a Alvasparedes
com Sor Glendon, sem ser convidado. Ele pode fazer parte disso.
Dunk o ignorou.
– Vossa Graça, o ovo de dragão que Lorde Peake encontrou entre as coisas de Sor Glendon
foi o que ele colocou ali. Peça para que o traga até aqui, se puder. Examine você mesmo.
Aposto que não passa de uma pedra pintada.
O salão caiu no caos. Uma centena de vozes começou a falar ao mesmo tempo e uma dúzia
de cavaleiros ficou em pé. Daemon parecia quase tão jovem e tão perdido quanto Sor Glendon
quando fora acusado.
– Está bêbado, meu amigo?
Antes estivesse.
– Perdi um pouco de sangue – Dunk confessou –, mas não o juízo. Sor Glendon foi acusado
injustamente.
– Por quê? – Daemon quis saber, confuso. – Se Ball não fez nada errado, como você insiste,
por que sua senhoria diria que fez e tentaria provar com uma pedra pintada?
– Para tirá-lo do seu caminho. Sua senhoria comprou seus outros adversários com ouro e
promessas, mas Ball não estava à venda.
O Violinista corou.
– Isso não é verdade.
– É verdade. Mande buscar Sor Glendon e pergunte você mesmo.
– Farei exatamente isso. Lorde Peake, mande buscar o bastardo imediatamente. E traga o
ovo de dragão também. Quero dar uma olhada nele de perto.
Gormon Peake deu um olhar de ódio para Dunk.
– Vossa Graça, o menino bastardo está sendo interrogado. Mais algumas horas e teremos
uma confissão, não duvido.
– Por interrogado o senhor quer dizer torturado – Dunk comentou. – Mais algumas horas e
Sor Glendon confessará ter matado o pai de Vossa Graça, e seus dois irmãos também.
– Basta! – O rosto de Lorde Peake estava quase púrpura. – Mais uma palavra e arrancarei
sua língua pela raiz.
– Você mente – Dunk falou. – São duas palavras.
– E você vai lamentar as duas – Peake prometeu. – Acorrentem este homem no calabouço.
– Não. – A voz de Daemon era perigosamente baixa. – Quero a verdade. Sunderland,
Vyrwel, Smallwood, peguem seus homens e encontrem Sor Glendon nos calabouços. Tragamno
aqui imediatamente, e assegurem-se de que nada de mal aconteça a ele. Se alguém tentar
impedi-los, digam que estão cuidando de assuntos do rei.
– Ao seu comando – Lorde Vyrwel respondeu.
– Resolverei isso como meu pai faria – o Violinista disse. – Sor Glendon foi acusado de
crimes graves. Como cavaleiro, tem o direito de se defender pela força das armas. Eu o
enfrentarei nas listas, e deixaremos os deuses determinarem culpa e inocência.
Sangue de herói ou sangue de puta, Dunk pensou quando dois dos homens de Lorde Vyrwel
despejaram Sor Glendon nu aos seus pés, ele tem bem menos do que tinha antes.
O garoto fora brutalmente espancado. Seu rosto estava machucado e inchado, vários de seus
dentes estavam rachados ou perdidos, seu olho direito chorava sangue e de cima a baixo em
seu peito a carne estava vermelha e rachada, onde o queimaram com ferros quentes.
– Está em segurança, agora – Sor Kyle murmurou. – Não há ninguém aqui além de
cavaleiros andantes, e os deuses sabem que somos bem inofensivos. – Daemon dera para eles
os aposentos do meistre e ordenara que cuidassem de qualquer ferimento que Sor Glendon
tivesse sofrido e garantissem que estivesse pronto para a justa.
Três unhas haviam sido arrancadas da mão esquerda de Ball, Dunk viu enquanto lavava o
sangue do rosto e das mãos do menino. Isso o preocupou mais do que o resto.
– Consegue segurar uma lança?
– Uma lança? – Sangue e cuspe saltaram da boca de Sor Glendon quando ele tentou falar. –
Estou com todos os meus dedos?
– Dez – Dunk confirmou. – Mas só sete unhas.
Ball assentiu.
– Negro Tom estava prestes a cortar meus dedos, mas foi chamado. É com ele que vou lutar?
– Não. Eu o matei.
Aquilo o fez sorrir.
– Alguém tinha que fazer isso.
– Você vai lutar contra o Violinista, mas o nome verdadeiro dele...
– ... é Daemon, sim. Disseram-me. O Dragão Negro. – Sor Glendon deu uma gargalhada. –
Meu pai morreu pelo pai dele. Eu teria sido homem dele, e com prazer. Teria lutado por ele,
matado por ele, morrido por ele, mas não posso perder para ele. – Virou a cabeça e cuspiu um
dente quebrado. – Posso tomar uma taça de vinho?
– Sor Kyle, pegue o odre de vinho.
O garoto deu um longo gole, depois secou a boca.
– Olhe para mim. Estou tremendo como uma garota.
Dunk franziu o cenho.
– Ainda pode montar um cavalo?
– Ajude-me a me lavar e traga meu escudo, lança e sela – Sor Glendon disse –, e verá o que
consigo fazer.
Estava quase amanhecendo quando a chuva parou o suficiente para que o combate pudesse
acontecer. O pátio do castelo era um pântano de lama, brilhando molhado sob a luz de uma
centena de tochas. Além do campo, uma névoa cinzenta se erguia, enviando dedos
fantasmagóricos pelas pálidas muralhas de pedra até chegar às ameias do castelo. Muitos dos
convidados do casamento tinham desaparecido nas horas anteriores, mas aqueles que
permaneceram subiram na arquibancada novamente e se ajeitaram em tábuas de pinho
encharcadas pela chuva. Entre eles estava Sor Gormon Peake, cercado por um grupo de
senhores menores e cavaleiros de sua casa.
Havia apenas alguns anos que Dunk fora escudeiro de Sor Arlan. Não esquecera como fazer
isso. Apertou as fivelas da armadura mal ajustada em Sor Glendon, predeu o elmo no gorjal,
ajudou-o a montar e entregou-lhe seu escudo. Disputas anteriores haviam deixado sulcos
profundos na madeira, mas a bola de fogo ardente ainda podia ser vista. Ele parece tão jovem
quanto Egg, Dunk pensou. Um menino assustado e triste. A égua alazão não tinha arreios e
estava arisca. Ele devia ter ficado com sua própria montaria. O alazão pode ser mais bem
criado e mais rápido, mas um cavaleiro cavalga melhor em um cavalo que conhece bem, e
este aqui é um estranho para ele.
– Precisarei de uma lança – Sor Glendon disse. – Uma lança de guerra.
Dunk foi até o cavalete. As lanças de guerra eram mais curtas e mais pesadas do que as
lanças de torneio que foram usadas nas disputas anteriores; dois metros de freixo sólido, com
uma ponta de ferro. Dunk escolheu uma e tirou-a do cavalete, passando a mão pelo
comprimento para se assegurar de que não tinha rachaduras.
Na outra extremidade da lista, um dos escudeiros de Daemon oferecia uma lança parecida.
Ele não era mais um violinista. No lugar de espadas e violinos, o manto de seu cavalo de
guerra mostrava o dragão de três cabeças da Casa Blackfyre, negro em um fundo vermelho. O
príncipe lavara a tinta negra de seu cabelo também, que agora fluía até seu colarinho em uma
cascata de prata e ouro que brilhava como metal polido sob a luz das tochas. Egg teria um
cabelo como esse se o deixasse crescer, Dunk percebeu. Achou difícil imaginar seu escudeiro
assim, mas sabia que um dia teria que fazê-lo se ambos vivessem tempo bastante para isso.
O arauto subiu na plataforma mais uma vez.
– Sor Glendon, o Bastardo, é acusado de roubo e assassinato – proclamou –, e agora vem
provar sua inocência colocando seu corpo em risco. Daemon da Casa Blackfyre, o Segundo
de Seu Nome, Rei por direito de nascimento dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros
Homens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Reino, venha adiante e prove a verdade das
acusações contra o bastardo Glendon.
E de repente o último ano desapareceu e Dunk estava novamente em Campina de Vaufreixo,
ouvindo Baelor Quebra-Lança ao seu lado enquanto avançavam para lutar por sua vida.
Colocou a lança de guerra de volta no lugar, puxando uma lança de torneio do cavalete ao
lado; três metros e meio de comprimento, esguia, elegante.
– Use esta – disse para Sor Glendon. – Foi a que usei em Vaufreixo, no Julgamento de Sete.
– O Violinista escolheu uma lança de guerra. Ele pretende me matar.
– Primeiro ele tem que acertá-lo. Se sua mira for boa, a ponta da lança dele nunca o tocará.
– Não sei.
– Eu sei.
Sor Glendon aceitou a lança, girou-a e trotou na direção da lista.
– Que os Sete salvem a nós dois, então.
Em algum lugar a leste, um raio irrompeu pelo céu rosa-claro. Daemon acertou a lateral do
garanhão com esporas douradas e saltou adiante como um trovão, abaixando a lança de guerra
com a ponta de ferro mortal. Sor Glendon levantou o escudo e correu ao encontro do
adversário, balançando sua lança mais comprida por cima da cabeça de sua égua para mirar
no peito do jovem pretendente. Lama espalhava-se dos cascos dos cavalos, e as tochas
pareciam mais brilhantes enquanto os dois cavaleiros saíram em disparada.
Dunk fechou os olhos. Ouviu um estalo, um grito, um baque.
– Não – ouviu Lorde Peake gritar em angústia. – Nããããããããoooooo.
Por meio segundo, Dunk quase sentiu pena dele. Abriu os olhos novamente. Sem cavaleiro,
o grande garanhão negro reduzia sua velocidade até um trote. Dunk pulou e agarrou-o pelas
rédeas. Na outra extremidade da lista, Sor Glendon Ball virava sua égua e levantava sua lança
estilhaçada. Homens correram para o campo, até onde o Violinista estava caído, imóvel, o
rosto enfiado na lama. Quando o ajudaram a ficar em pé, estava enlameado da cabeça aos pés.
– O Dragão Marrom – alguém gritou. As gargalhadas irromperam no pátio, enquanto o
amanhecer tomava Alvasparedes.
Foi só alguns segundos depois, enquanto Dunk e Sor Kyle estavam ajudando Glendon Ball a
descer do cavalo, que a primeira trombeta soou e os sentinelas nas muralhas deram o alarme.
Um exército aparecera do lado de fora do castelo, saindo das brumas da manhã.
– Egg não estava mentindo, no final das contas – Dunk disse para Sor Kyle, atônito.
De Lagoa da Donzela viera Lorde Mooton; de Corvarbor, Lorde Blackwood, e de Valdocaso,
Lorde Darklyn. As terras reais nas cercanias de Porto Real haviam mandado senhores das
casas Hayford, Rosby, Stokeworth, Massey e as próprias espadas juramentadas do rei,
liderados por três cavaleiros da Guarda Real e fortalecidos por trezentos Dentes de Corvo
com altos arcos brancos de represeiro. A Doida Danelle Lothston em pessoa cavalgava em
força desde suas torres assombradas em Harrenhal, vestida em uma armadura negra que lhe
caía como uma luva de ferro, o longo cabelo vermelho solto.
A luz do sol nascente brilhou nas pontas de quinhentas lanças e dez vezes mais arpões. Os
estandartes cinzentos da noite davam lugar a meia centena de cores espalhafatosas. E acima de
todos estavam dois dragões suntuosos sob fundo negro como a noite: a grande besta de três
cabeças do Rei Aerys I Targaryen, vermelho como fogo, e uma fúria branca alada, respirando
chama escarlate.
Não foi Maekar, no final das contas, Dunk percebeu quando viu os estandartes. O
estandarte do príncipe de Solarestival mostrava quatro dragões de três cabeças, dois e dois, o
brasão de armas do quarto filho do falecido Rei Daeron II Targaryen. Um único dragão branco
anunciava a presença da Mão do Rei, Lorde Brynden Rivers.
Corvo de Sangue em pessoa viera a Alvasparedes.
A Primeira Rebelião Blackfyre acabara no Campo do Capim-Vermelho em sangue e glória.
A Segunda Rebelião Blackfyre terminou com um gemido.
– Eles não podem nos intimidar – o Jovem Daemon proclamou das ameias do castelo depois
de ver o anel de ferro que os cercava –, pois nossa causa é justa. Vamos passar por eles e
cavalgar com determinação até Porto Real! Soem as trombetas!
Em vez disso, cavaleiros, senhores e homens de armas murmuravam baixinho uns para os
outros, e alguns começaram a escapulir, dirigindo-se para os estábulos, para um portão
traseiro ou para algum esconderijo no qual esperavam ficar em segurança. Quando Daemon
desembainhou sua espada e ergueu-a sobre a cabeça, todos os homens viram que não era
Blackfyre.
– Teremos outro Campo do Capim-Vermelho hoje – o pretendente prometeu.
– Cai fora, menino violinista – um escudeiro grisalho gritou de volta. – Prefiro viver.
No fim, o segundo Daemon Blackfyre saiu do castelo sozinho, cavalgando até parar diante
das tropas reais, e desafiou Lorde Corvo de Sangue para um combate singular.
– Lutarei com você, com o covarde do Aerys ou com qualquer campeão que escolher.
Entretanto, os homens de Lorde Corvo de Sangue o cercaram, arrancaram-no de seu cavalo
e o meteram em grilhões dourados. O estandarte que levava foi fincado no chão enlameado e
puseram fogo nele. Queimou por muito tempo, mandando para o ar uma nuvem de fumaça
retorcida que podia ser vista a quilômetros dali.
O único sangue que foi derramado naquele dia veio quando um homem a serviço de Lorde
Vyrwel começou a se gabar dizendo que era um dos olhos de Corvo de Sangue e que logo
seria recompensado.
– Quando a lua mudar, estarei fodendo putas e bebendo tinto dornês – ele supostamente
disse antes que um dos cavaleiros de Lorde Costayne cortasse sua garganta.
– Beba isso – ele respondeu, enquanto o homem de Vyrwel se afogava em seu próprio
sangue. – Não é dornês, mas é tinto.
Fora isso, uma coluna silenciosa e taciturna se arrastou pelos portões de Alvasparedes para
jogar suas armas em uma pilha brilhante, antes de serem amarrados e levados para aguardar
pelo julgamento de Lorde Corvo de Sangue. Dunk saiu com o restante deles, acompanhado por
Sor Kyle, o Gato, e Glendon Ball. Haviam procurado por Sor Maynard para que se juntasse a
eles, mas Plumm desaparecera em algum momento durante a noite.
Já era tarde quando Sor Roland Crakehall da Guarda Real encontrou Dunk entre os outros
prisioneiros.
– Sor Duncan, onde, pelos sete infernos, você se escondeu? Lorde Rivers está perguntando
por você há horas. Venha comigo, por favor.
Dunk saiu ao lado dele. O longo manto de Crakehall se agitava a cada rajada de vento, tão
branco quanto o luar na neve. Ao ver aquilo, Dunk se lembrou das palavras que o Violinista
dissera no telhado. Sonhei que você estava todo de branco, da cabeça aos pés, com um longo
manto pálido fluindo desses ombros largos. Dunk bufou. Sim, e sonhou também com dragões
eclodindo de ovos de pedra. Uma coisa é tão provável quanto a outra.
O pavilhão da Mão estava a um quilômetro do castelo, sob a sombra de um grande olmo.
Uma dúzia de vacas pastava na relva ali perto. Reis se erguem e caem, Dunk pensou, e as
vacas e os plebeus cuidam de suas vidas. Era algo que o velho costumava dizer.
– O que vai ser de todos eles? – perguntou a Sor Roland enquanto passavam por um grupo
de cativos sentados na relva.
– Serão mandados para Porto Real, para julgamento. Os cavaleiros e homens de armas
devem se livrar. Só estavam seguindo seus suseranos.
– E os senhores?
– Alguns serão perdoados, desde que digam a verdade sobre o que sabem e entreguem um
filho ou filha para garantir sua lealdade futura. Vai ser mais difícil para aqueles que
conseguiram perdão depois do Campo do Capim-Vermelho. Serão presos ou desonrados. Os
piores perderão a cabeça.
Corvo de Sangue já dera início a essa última pena, Dunk viu quando chegaram ao seu
pavilhão. De cada lado da entrada, as cabeças cortadas de Gormon Peake e Negro Tom
Heddle estavam empaladas em lanças, com os escudos colocados embaixo. Três castelos,
negro em fundo laranja. O homem que assassinou Roger de Centarbor.
Mesmo na morte, os olhos de Lorde Gormon eram duros e insensíveis. Dunk fechou-os com
os dedos.
– Para que fez isso? – perguntou um dos guardas. – Logo os corvos darão um jeito neles.
– Eu lhe devia isso. – Se Roger não tivesse morrido naquele dia, o velho nunca teria olhado
duas vezes para Dunk quando o viu perseguindo aquele porco pelos becos de Porto Real.
Algum antigo rei deu uma espada para um filho em vez de para o outro, esse foi o início de
tudo. E agora estou parado aqui, e o pobre Roger está em seu túmulo.
– A Mão o aguarda – ordenou Roland Crakehall.
Dunk passou por ele, chegando na presença de Lorde Brynden Rivers, bastardo, feiticeiro e
Mão do Rei.
Egg estava ao lado dele, recém-banhado e vestido com roupas de príncipe, como convinha
ao sobrinho do rei. Ali perto, Lorde Frey estava sentado em uma cadeira de acampamento com
uma taça de vinho na mão e seu pequeno herdeiro medonho se contorcendo em seu colo. Lorde
Butterwell estava ali também... de joelhos, com o rosto pálido e tremendo.
– A traição não é menos vil porque o traidor prova ser um covarde – Lorde Rivers estava
dizendo. – Ouvi seus balidos, Lorde Ambrose, e acredito em uma palavra em dez. Por essa
conta, permitirei que mantenha a décima parte de sua fortuna. Pode manter sua esposa também.
Desejo que tenha alegrias com ela.
– E Alvasparedes? – Butterwell perguntou, a voz trêmula.
– Confiscada pelo Trono de Ferro. Pretendo colocá-la abaixo pedra por pedra e semear
aquela terra com sal. Em vinte anos, ninguém se lembrará de que existiu. Velhos tolos e jovens
descontentes ainda fazem peregrinações até o Campo do Capim-Vermelho, para plantar flores
no local em que Daemon Blackfyre caiu. Não deixarei que Alvasparedes se torne outro
monumento ao dragão negro. – Acenou com a mão pálida. – Agora, corra para longe, barata.
– A Mão é gentil. – Butterwell tropeçou, tão cego de tristeza que nem mesmo reconheceu
Dunk quando passou por ele.
– Você também pode se retirar, Lorde Frey – Rivers ordenou. – Conversaremos novamente
mais tarde.
– Como meu senhor ordena – Frey levou seu filho para fora do pavilhão.
Só então a Mão do Rei se virou para Dunk.
Estava mais velho do que Dunk se lembrava, com um rosto duro marcado, mas a pele ainda
era clara como osso, e a bochecha e o pescoço ainda tinham a feia marca de nascença cor de
vinho que algumas pessoas achavam parecida com um corvo. Suas botas eram negras, a túnica,
escarlate. Sobre ela, usava um manto cor de fumaça, preso com um broche no formato de uma
mão de ferro. O cabelo caía até os ombros, longo, branco e liso, escovado para a frente para
disfarçar o olho que faltava, aquele que Açoamargo arrancara dele no Campo do CapimVermelho.
O olho que sobrara era muito vermelho. Quantos olhos tem Corvo de Sangue? Mil
olhos e mais um.
– Não duvido que o Príncipe Maekar tenha boas razões para permitir que seu filho seja
escudeiro de um cavaleiro andante – disse –, embora não possa imaginar que isso inclua
entregá-lo em um castelo cheio de traidores tramando uma rebelião. Como é que vim encontrar
meu primo neste ninho de víboras, sor? Lorde Butterwell queria que eu acreditasse que o
Príncipe Maekar o mandou aqui para farejar esta rebelião sob o disfarce de um cavaleiro
misterioso. Há verdade nisso?
Dunk se ajoelhou.
– Não, meu senhor. Quero dizer, sim, senhor. Foi o que Egg disse para ele. Aegon, quero
dizer. O Príncipe Aegon. Então esta parte é verdade. No entanto, não é o que você chamaria de
verdade verdadeira.
– Entendo. Então vocês dois descobriram essa conspiração contra a coroa e decidiram
acabar com ela por conta própria. Foi assim que aconteceu?
– Tampouco foi isso. Nós só meio que... tropeçamos nela, suponho que seria possível dizer
isso.
Egg cruzou os braços.
– E Sor Duncan e eu tínhamos o assunto sob controle antes que você aparecesse com seu
exército.
– Tivemos alguma ajuda, senhor – Dunk acrescentou.
– Cavaleiros andantes.
– Sim, senhor. Sor Kyle, o Gato, e Maynard Plumm. E Sor Glendon Ball. Foi ele quem
desmontou o Violi... o pretendente.
– Sim, já ouvi essa história de meia centena de lábios. O Bastardo do Salgueiro. Nascido de
uma prostituta e de um traidor.
– Nascido de heróis – Egg insistiu. – Se ele está entre os prisioneiros, quero que seja
encontrado e solto. E recompensado.
– E quem é você para dizer à Mão do Rei o que fazer?
Egg não hesitou.
– Sabe quem eu sou, primo.
– Seu escudeiro é insolente, sor – Lorde Rivers disse para Dunk. – Devia espancá-lo por
isso.
– Eu tentei, senhor. Mas ele é um príncipe.
– O que ele é – disse Corvo de Sangue –, é um dragão. Levante-se, sor.
Dunk se levantou.
– Sempre existiram Targaryen que sonhavam com coisas que iam acontecer, desde muito
antes da Conquista – Corvo de Sangue contou. – Então, não devemos ficar surpresos se, de
tempos em tempos, um Blackfyre mostrar este dom também. Daemon sonhou que um dragão
nasceria em Alvasparedes, e aí está. O tolo só errou a cor. – Dunk olhou para Egg. O anel, ele
viu. O anel de seu pai. Está no dedo dele, não enfiado dentro da bota.
– Pensei brevemente em levá-lo para Porto Real conosco – Lorde Rivers falou para Egg – e
mantê-lo na corte como meu... convidado.
– Meu pai não aceitaria isso de bom grado.
– Suponho que não. O Príncipe Maekar tem uma... natureza... irritadiça. Talvez eu devesse
mandá-lo de volta a Solarestival.
– Meu lugar é com Sor Duncan. Sou escudeiro dele.
– Que os Sete salvem vocês dois. Como queira. É livre para partir.
– Iremos – Egg prosseguiu –, mas antes precisamos de algum ouro. Sor Duncan precisa
pagar o resgate para o Caracol.
Corvo de Sangue deu uma gargalhada.
– O que aconteceu com o garoto modesto que conheci certa vez em Porto Real? Como
queira, meu príncipe. Instruirei meu tesoureiro a lhe dar tanto ouro quanto desejar. Dentro do
razoável.
– Só como empréstimo – Dunk insistiu. – Pagarei de volta.
– Quando aprender a disputar uma justa, não duvido. – Lorde Rivers dispensou-os com os
dedos, desenrolou um pergaminho e começou a assinalar nomes com uma pena.
Ele está marcando os homens que vão morrer, Dunk percebeu.
– Meu senhor – disse –, vimos as cabeças lá fora. Será que... o Violinista... Daemon... vai
cortar a cabeça dele também?
Lorde Corvo de Sangue levantou a cabeça do pergaminho.
– Isso é uma decisão do Rei Aerys... mas Daemon tem quatro irmãos mais jovens, além de
irmãs. Se eu for tolo o bastante para cortar sua bela cabeça, a mãe dele vai lamentar, os
amigos dele vão me amaldiçoar como regicida e Açoamargo vai coroar o irmão dele, Haegon.
Morto, o jovem Daemon seria um herói. Vivo, é um obstáculo no caminho do meu meio-irmão.
Ele dificilmente poderá gerar um terceiro rei Blackfyre enquanto o segundo continua
inconvenientemente vivo. Além disso, um cativo de tamanha nobreza é um ornamento para
nossa corte, e uma testemunha viva da misericórdia e benevolência de Sua Graça, o Rei
Aerys.
– Tenho uma pergunta também – Egg falou.
– Começo a entender por que seu pai estava tão desejoso de se ver livre de você. O que
mais quer de mim, primo?
– Quem pegou o ovo do dragão? Havia guardas na porta e mais guardas na escada, não era
possível que alguém entrasse no quarto de Lorde Butterwell sem ser visto.
Lorde Rivers sorriu.
– Se eu tivesse que adivinhar, diria que alguém deve ter escalado pela saída da latrina.
– A saída da latrina é pequena demais para alguém escalar.
– Para um homem. Uma criança poderia fazer.
– Ou um anão – Dunk deixou escapar. Mil olhos e mais um. Por que um deles não poderia
pertencer a uma trupe de anões cômicos?
4. N. do T.: No original “below the salt”. A expressão tem origem na Inglaterra medieval, época em que o sal era uma
especiaria cara. Nos banquetes realizados nesse período, o sal era colocado apenas no meio da mesa principal, ocupada pelo
anfitrião e convidados mais ilustres. Os menos favorecidos, posicionados nas mesas mais distantes, estavam “abaixo do sal”.
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