A lei do porrete e das presas
O primeiro dia de Buck na praia de Dyea[1] foi como um pesadelo. Cada
hora era cheia de choques e de surpresas. Tinha sido arrancado subitamente do
seio da civilização e lançado no coração das coisas primordiais. Não era
nenhuma vida preguiçosa e beijada pelo sol, sem nada mais a fazer do que
passear e se entediar. Aqui não havia nem paz, nem descanso, nem sequer um
momento de segurança. Tudo era ação e confusão; a cada instante, a sua vida e
os membros do seu corpo corriam perigo. Havia uma necessidade imperiosa de
permanecer constantemente em alerta; porque estes cães e estes homens eram
muito diferentes dos da cidade. Eram selvagens, todos eles, e não conheciam
outra lei senão a do porrete e das presas.
Ele nunca tinha visto cães lutarem como lutavam estas criaturas lupinas, e
sua primeira experiência ensinou-lhe uma lição inesquecível. É verdade que foi
uma experiência de espectador, caso contrário ele não teria vivido para
aproveitá-la. Curly foi a vítima. Estavam acampando junto ao armazém
construído de toras de madeira, quando ela, com seu jeito amigável, procurou
aproximar-se de um cão husky do tamanho de um lobo adulto[2], embora não
chegasse nem à metade do tamanho dela. Não houve aviso, somente um pulo
rápido, uma batida súbita de dentes afiados, um salto para trás igualmente veloz e
o rosto de Curly ficou aberto do olho até a mandíbula.
Era a maneira como os lobos lutavam: atacavam e pulavam para longe;
mas a coisa não ficou nisso. Trinta ou quarenta huskies correram para o local e
cercaram os combatentes em um círculo atento e silencioso. Buck não
compreendeu aquele interesse silencioso, nem a maneira gulosa com que
lambiam os lábios estreitos. Curly atirou-se em direção ao antagonista, que
atacou de novo e novamente pulou para um lado. Ele enfrentou seu próximo
ataque diretamente com o peito, de uma maneira peculiar que a fez perder o pé
e cair no solo. Ela nunca recuperou o equilíbrio. Era por esse momento que o
círculo dos huskies aguardava. Eles lançaram-se sobre ela no mesmo instante,
como um só corpo, rosnando e ladrando, e ela ficou soterrada, berrando de
agonia, sob a massa de corpos eriçados.
O episódio foi tão rápido e tão inesperado que Buck ficou desconcertado. Ele
percebeu Spitz sacudindo a língua escarlate, como se estivesse rindo; e então
François, brandindo um machado, saltou entre a massa de cães. Três homens
com porretes o ajudaram a espalhá-los. Não levou muito tempo. Dois minutos
depois que Curly havia tombado, o último de seus atacantes havia sido expulso a
pauladas. Mas ela jazia imóvel e sem vida na neve pisoteada e sangrenta, quase
literalmente rasgada em pedaços, enquanto o mestiço moreno se inclinava sobre
ela e praguejava horrivelmente. Esta cena frequentemente voltou à memória de
Buck, perturbando seu sono. Então era assim que funcionava. Nada de jogo
limpo, simplesmente não havia regras. No momento em que você caísse, estava
acabado. Bem, ele daria um jeito de nunca ser derrubado. Spitz balançou a língua
e riu de novo; a partir deste momento, Buck o odiou com um rancor amargo e
imortal.
Antes de se recobrar do abalo causado pela trágica morte de Curly, recebeu
um novo choque. François amarrou em torno dele um arranjo de correias e
fivelas. Era um arreio, parecido com aqueles que ele tinha visto os estribeiros
colocarem nos cavalos em seu antigo lar. E do mesmo jeito que ele tinha visto os
cavalos trabalharem, foi posto a trabalhar, puxando François em um trenó até a
floresta que cercava o vale e retornando com uma carga de lenha. Embora sua
dignidade tivesse sido duramente afetada por ser transformado em um animal de
carga, era esperto demais para se rebelar. Ele se forçou à submissão e fez o
melhor que pôde, embora tudo lhe parecesse novo e estranho. François era
severo e exigia obediência instantânea, que recebia de imediato em virtude de
seu chicote; além disso, Dave, que era um puxador de trenó experiente e
ocupava o lugar de “tirador”, logo à frente do trenó, mordiscava o traseiro de
Buck cada vez que este cometia um erro. Spitz era o líder, igualmente
experimentado, e uma vez que não podia castigar Buck sempre que quisesse,
porque estava à sua frente, rosnava algumas vezes em sinal de aguda
reprovação, ou habilmente jogava seu peso sobre uma das correias laterais a fim
de fazer com que Buck fosse arrastado para a trilha que deveria seguir. Mas Buck
aprendia facilmente e sob a orientação combinada de seus dois companheiros e a
chibata de François realizou progressos notáveis. Antes que retornassem para o
acampamento, ele sabia o suficiente para parar à voz de – “Eia!” – e para
prosseguir cada vez que escutava– “Avante!”; aprendeu também a dar uma volta
ampla para o lado oposto a cada curva da estrada e a evitar ser atingido pela
parte dianteira do trenó cada vez que o veículo carregado descia rapidamente
uma ladeira. – São três cão bastante bom – disse François a Perrault. – Aquele
Buck, ele puxa como o inferno. Eu ensino ele rápido como um rilampo.
Naquela tarde, Perrault, que tinha pressa de tomar a trilha para levar suas
mensagens oficiais, retornou com outros dois cães. Disse que seus nomes eram
“Billee” e “Joe”, que eram irmãos e huskies puro-sangue. Embora filhos da
mesma mãe, eram tão diferentes como o dia e a noite. O único defeito de Billee
era sua cordialidade excessiva, enquanto Joe era justamente o oposto, amargo e
introspectivo, com um rosnado permanente e olhar maligno. Buck os recebeu
como novos camaradas, Dave os ignorou e Spitz tratou de dar uma sova primeiro
em um e depois no outro. Billee sacudiu o rabo apaziguadoramente, tentou fugir
quando percebeu que a proposta de paz não tinha servido de nada e latiu (ainda
procurando acalmar o outro) quando os dentes agudos de Spitz rasgaram-lhe o
flanco. Mas não importa quantos círculos Spitz fizesse, Joe girava nos calcanhares
para enfrentá-lo, o pelo eriçado, as orelhas jogadas para trás rentes à cabeça, os
lábios se retorcendo entre rosnados, as mandíbulas batendo uma contra a outra
tão rapidamente quanto ele dava mordidas no ar, e os olhos brilhando
diabolicamente – a própria encarnação do medo combativo. Tão terrível era sua
aparência que Spitz foi forçado a desistir de discipliná-lo; porém, para encobrir
seu vexame, ele se lançou novamente sobre o inofensivo Billee e expulsou-o aos
gemidos para os confins do acampamento.
Ao entardecer, Perrault conseguiu outro cão, um husky velho, comprido,
magro, esquelético, o focinho marcado pelas cicatrizes de muitas batalhas e um
único olho que lançou um aviso exigindo o respeito dos novos companheiros. Este
era chamado de Sol-leks, que na língua dos esquimós significava “Zangado”.
Como Dave, ele não pediu nem deu nada, tampouco esperava receber coisa
alguma, e quando marchou lenta e deliberadamente no meio deles, mesmo Spitz
o deixou em paz. Ele apresentava uma peculiaridade que Buck teve a pouca sorte
de descobrir. Ele não gostava que se aproximassem dele por seu lado cego. Buck
tornou-se involuntariamente culpado desta ofensa e o primeiro conhecimento que
teve de sua indiscrição foi quando Sol-leks virou-se subitamente contra ele e deulhe uma mordida que cortou o ombro até o osso em um talho de quase oito
centímetros de comprimento. A partir daí, Buck evitou permanentemente seu
lado cego e nunca mais teve qualquer problema com ele enquanto foram
camaradas. Sua única ambição aparente, como a de Dave, era a de ser deixado
em paz, embora, como Buck descobriria mais tarde, cada um deles possuísse
uma outra ambição ainda mais vital.
Nessa noite, Buck enfrentou o grave problema de dormir. A tenda, iluminada
por uma vela, brilhava calidamente no meio da planície branca; e quando ele
entrou nela com a maior naturalidade, tanto Perrault como François o
bombardearam com pragas e utensílios de cozinha, até que ele se recuperou de
sua consternação e fugiu ignominiosamente para o frio exterior. Soprava um
vento gélido que penetrava vergonhosamente em seu couro e mordia seu ombro
ferido como a picada de um animal venenoso. Deitou-se na neve e tentou
dormir, mas a geada se acumulava sobre ele e logo o fez erguer-se novamente
entre tremores de frio. Sentindo-se infeliz e desconsolado, ele vagueou sem rumo
por entre as numerosas tendas, somente para descobrir que cada lugar era mais
frio que o outro. Aqui e ali cães selvagens avançavam violentamente em sua
direção, mas ele eriçava os pelos do pescoço e rosnava (porque estava
aprendendo depressa) e os outros deixavam que prosseguisse em seu caminho
sem ser molestado.
Finalmente, surgiu-lhe uma ideia. Ele decidiu retornar e ver como seus
próprios companheiros estavam se saindo. Para seu completo espanto, todos
haviam desaparecido. Novamente perambulou pelo grande acampamento à
procura deles e retornou sem qualquer resultado. Será que eles estavam dentro
da tenda? Não, não poderiam estar, porque se não ele não teria sido expulso dela.
Mas então onde poderiam ter-se metido? Com o rabo se arrastando pelo chão e o
corpo trêmulo, sentindo-se totalmente abandonado, ele circulou a tenda sem
rumo certo. Subitamente, a neve cedeu sob suas patas dianteiras e ele afundou.
Alguma coisa se remexeu por baixo de seus pés. Saltou de volta, eriçado e
rosnando, temendo o invisível e o desconhecido. Mas um pequeno ganido amigo
tranquilizou-o e ele retornou para investigar. Uma lufada de ar quente subiu-lhe
até as narinas e lá, enroscado sob a neve em um novelo quente e confortável,
estava Billee. Ele gemeu de forma suplicante, retorceu-se de costas e mostrou a
barriga a fim de demonstrar suas boas intenções e até mesmo aventurou-se,
como um suborno em troca da paz, a lamber o focinho de Buck com sua língua
quente e úmida.
Outra lição. Então era assim que eles faziam, era? Confiantemente, Buck
escolheu um lugar que lhe pareceu conveniente e com muito desperdício de
tempo e de esforço devido à falta de prática, conseguiu cavar um buraco para si
próprio. Em um piscar de olhos, o calor de seu corpo encheu o espaço exíguo e
ele adormeceu. Tinha sido um dia longo e árduo e dormiu sonora e
confortavelmente, embora rosnasse, latisse e lutasse a noite toda contra os maus
sonhos. Mesmo assim, somente abriu os olhos quando foi acordado pelos ruídos
do despertar do acampamento. A princípio, não soube onde se encontrava.
Nevara durante a noite e achava-se agora completamente soterrado. As paredes
de neve o apertavam de todos os lados e um grande medo percorreu seu corpo –
o temor do animal selvagem pela armadilha. Isto era um sinal de que ele estava
retornando através de sua vida até as vidas de seus ancestrais, porque ele era um
cão civilizado, um cão até mesmo domesticado em demasia, e suas experiências
particulares não incluíam nenhuma armadilha, portanto não poderia temê-las por
não saber o que eram. Os músculos de seu corpo inteiro se contraíram
espasmodicamente e, como por instinto, os pelos de seu pescoço e dos ombros
puseram-se em pé e com um ronco feroz ele saltou diretamente para a luz
deslumbrante do dia, a neve espalhando-se ao seu redor como uma nuvem
fulgurante. Antes de cair em pé, viu o acampamento branco em volta e lembrou
onde estava, e tudo que havia ocorrido desde a infeliz ocasião em que saíra para
um passeio com Manuel até o momento em que escavara um buraco para passar
a noite.
Um grito de François saudou sua aparição:
– Que foi que eu disse? – gritou o condutor de cães para Perrault. – Esse tar
de Buck seguro que aprende mais ligero que os otro.
Perrault assentiu gravemente. Uma vez que ele era um correio do governo
canadense, conduzindo importantes despachos oficiais, estava ansioso para
adquirir os melhores cães e sentia-se particularmente satisfeito pela aquisição de
Buck.
Durante a próxima hora, três outros huskies foram acrescentados à matilha,
completando um total de nove, e antes que tivesse passado outro quarto de hora,
estavam arreados e serpenteando pela trilha que levava ao desfiladeiro de Dyea.
Buck estava feliz por deixar aquele lugar e, embora o trabalho fosse pesado,
percebeu que não lhe era particularmente desagradável. Ficou surpreso com o
entusiasmo que animava a equipe inteira e que logo lhe foi transmitido. Mas
ainda mais surpreendente era a mudança ocorrida em Dave e Sol-leks. Eram
outros cães, completamente transformados pelos arreios. Toda a passividade e
despreocupação tinham desaparecido deles. Pareciam alertas e cheios de
energia, ansiosos para que a tarefa se realizasse a contento e ferozmente irritados
por qualquer coisa, fosse atraso ou confusão, que retardasse seu trabalho. O
puxar das correias parecia ser a suprema expressão de sua existência, tudo para
que viviam e a única coisa que lhes dava prazer.
Dave era o tirador ou cão do trenó, aquele que ficava mais próximo do
veículo às suas costas; bem à sua frente marchava Buck, e diante dele Sol-leks. O
restante da matilha estava atrelado à frente deles, em uma única fileira,
chefiados pelo líder, posição que era ocupada por Spitz.
Buck tinha sido colocado propositadamente entre Dave e Sol-leks, para que
pudesse ser instruído por estes. Estudante atento como era, os dois eram
igualmente professores muito competentes, e não lhe permitiam permanecer por
muito tempo em erro, reforçando seus ensinamentos com dentes afiados. Dave
era justo e muito sábio. Nunca dava uma mordida em Buck sem motivo, mas
nunca deixava de fazê-lo quando ele merecia. Uma vez que a chibata de
François dava apoio ao mestre, Buck descobriu ser mais fácil corrigir-se do que
tentar retaliar. Certa ocasião, durante uma breve parada, quando ele se enroscou
nas correias e atrapalhou a saída, tanto Dave como Sol-leks saltaram sobre ele e
lhe administraram uma severa punição. A confusão que se seguiu foi ainda pior,
mas Buck teve o máximo cuidado para não se enredar nos tentos outra vez; e
antes que o dia findasse tinha aprendido tão bem o seu trabalho que os
companheiros pararam completamente de aborrecê-lo. O chicote de François
estalou com menor frequência e Perrault até mesmo fez um cumprimento a
Buck ao erguer-lhe as patas e examiná-las com todo o cuidado.
A corrida desse dia foi longa e difícil, subindo o desfiladeiro, através do
Acampamento das Ovelhas, cruzando um local chamado Balança e penetrando
na floresta, através de geleiras e lugares onde se acumulara a neve de
avalanches, com dezenas de metros de profundidade, galgando e percorrendo as
colinas de Chilkoot,[3] as austeras sentinelas do triste Norte solitário, que eram o
divisor de águas, separando a água salgada próxima ao oceano dos rios de água
doce. Percorreram rapidamente a descida que acompanhava a cadeia de lagos
que enche as crateras de vulcões extintos e, já noite cerrada, suspenderam a
marcha no imenso acampamento junto ao lago Bennett, em que milhares de
caçadores de ouro estavam construindo barcos para usar quando o gelo se
derretesse na primavera. Buck imediatamente cavou seu buraco na neve e
dormiu o sono dos justos e dos exaustos, porém muito cedo foi arrancado para a
escuridão gelada e atrelado novamente ao trenó junto com seus companheiros.
Naquele dia, eles percorreram sessenta e cinco quilômetros, porque a trilha
era de neve sólida: porém no dia seguinte, e nos muitos que se seguiram, tiveram
de abrir sua própria trilha, trabalhando muito mais e ganhando muito menos
terreno. Via de regra, Perrault viajava à frente da matilha, apertando a neve com
suas botas amarradas a raquetes confeccionadas para caminhar sobre o gelo, a
fim de tornar a tarefa mais fácil para os cães. François, que guiava o trenó em pé
junto ao eixo do leme, algumas vezes trocava de lugar com ele, mas não com
frequência. Perrault estava com muita pressa e tinha orgulho de seu
conhecimento sobre o gelo, uma habilidade indispensável, porque o gelo de
outono era muito fino e nos locais em que havia água corrente não havia gelo
algum.
Dia após dia, durante horas infindáveis, Buck puxava as correias. Sempre
desmontavam o acampamento enquanto ainda estava escuro e os primeiros
lampejos acinzentados da aurora já os encontravam na estrada depois de terem
deixado vários quilômetros para trás. E sempre montavam acampamento após o
escurecer, comendo sua escassa porção de peixe seco e arrastando-se para
dormir em uma cova escavada na neve. Buck estava faminto o tempo todo. Sua
ração diária era de cerca de setecentas gramas de salmão seco ao sol e parecia
desaparecer completamente em seu estômago, sem deixar o menor vestígio. Ele
nunca se satisfazia completamente e suas entranhas se contraíam perpetuamente
com as dores da fome. Todavia, os outros cães, que pesavam menos e tinham se
acostumado a essa vida desde o nascimento, recebiam menos de meio quilo de
peixe por dia e pareciam manter-se em boas condições.
Rapidamente, ele perdeu o fastio que havia caracterizado sua vida anterior.
Caprichoso e lento ao comer, descobriu que seus companheiros, terminando
primeiro, roubavam pedaços de sua ração inacabada. Não havia como defendê-
la. Enquanto ele lutava contra dois ou três, ela desaparecia na garganta dos
demais. O único remédio que encontrou foi comer tão depressa quanto eles; e tão
grande era a fome que o dominava, que em breve estava também tentando
engolir o que não lhe pertencia. Ele observava e aprendia. Quando viu Pike, um
dos cães que haviam chegado por último, que além de vagabundo era um ladrão
experiente, roubar uma fatia de toucinho enquanto Perrault lhe dava as costas,
duplicou o desempenho no dia seguinte, arrebatando a manta inteira. Os homens
armaram uma enorme confusão por causa disso, mas ninguém suspeitou dele, ao
passo que Dub, um cachorro desajeitado e meio bobo, que era sempre apanhado
quando tentava alguma artimanha, foi castigado pela feia ação de Buck.
Este primeiro roubo estabeleceu a capacidade de Buck de sobreviver no
hostil ambiente setentrional. Registrou sua adaptabilidade, sua capacidade de
ajustar-se a condições em perpétua mutação, a falta da qual significaria uma
morte rápida e terrível. Marcou, além disso, a decadência ou esfacelamento de
sua natureza moral, uma coisa inútil e até mesmo prejudicial na feroz luta pela
existência. O respeito pela propriedade particular e pelos sentimentos pessoais
ficava muito bem nas regiões quentes do sul, sob a lei do amor e da
camaradagem, mas nas terras do norte, sob a lei do porrete e das presas, quem
quer que tomasse essas coisas em consideração era um tolo, e se observasse um
comportamento ético, não conseguiria sobreviver.
Isto não significa que Buck tivesse raciocinado e chegado a estas conclusões.
Ele estava preparado para sobreviver, isto era tudo, e inconscientemente
acomodou-se ao novo modo de vida. Em toda a sua vida pregressa, não importa
quais fossem as probabilidades contra ele, jamais tinha fugido a um combate.
Porém o porrete do homem do suéter vermelho tinha-lhe ensinado, à força de
pancadas, um código mais fundamental e primitivo. Enquanto era civilizado, ele
poderia ter morrido por uma consideração moral, digamos, defendendo a chibata
de montaria do juiz Miller; mas a sua total “descivilização” era agora
evidenciada por sua habilidade em evitar considerações morais a fim de proteger
o próprio couro. Ele não passou a roubar por prazer, mas para atender ao clamor
de seu estômago. Ele não furtava abertamente, mas subtraía secreta e
ardilosamente, por respeitar a nova lei do porrete e das presas. Em resumo, as
coisas que fazia eram feitas porque era mais fácil e mais proveitoso agir assim
que de outra maneira.
Seu desenvolvimento (ou regressão) foi rápido. Seus músculos se tornaram
duros como ferro e tornou-se insensível a qualquer dor ordinária. Lentamente
adaptou-se a uma economia tão interna como externa. Podia comer qualquer
coisa, não importa quanto fosse nojenta ou indigesta; e, uma vez devorada, os
sucos de seu estômago extraíam até as últimas partículas de nutrientes; e seu
sangue as carregava até os lugares mais distantes de seu corpo, reconstruindo-os
de modo a se tornarem os tecidos mais fortes e mais resistentes. Sua visão e seu
faro se tornaram notavelmente agudos e sua audição desenvolveu tal
sensibilidade que, mesmo dormindo, escutava o som mais fraco e sabia distinguir
se anunciava tranquilidade ou perigo. Aprendeu a arrancar os pedaços de gelo
com os dentes, quando se acumulavam entre os dedos; e quando tinha sede e
descobria uma camada grossa de gelo sobre uma poça d’água, ele a quebrava
empinando o corpo e caindo sobre ela com as patas dianteiras rígidas. Sua
característica mais conspícua era uma habilidade para farejar o vento e prever
como seria o clima no dia seguinte. Não importa a que ponto o ar estivesse
irrespirável de frio na hora em que ele escavava seu ninho junto a uma árvore ou
barranco, o vento que soprava mais tarde inevitavelmente o encontrava a
sotavento,[4] abrigado e confortável.
E não somente ele aprendeu através da experiência, como instintos mortos
há séculos retornaram à vida. As gerações de animais domesticados foram sendo
descartadas. De uma forma vaga, ele recordava as experiências ocorridas aos
primeiros de sua raça, retornava ao tempo em que os cães selvagens corriam em
alcateias através das florestas primitivas e matavam seu próprio alimento depois
de persegui-lo até a exaustão. Não foi absolutamente difícil para ele aprender a
lu
tar com a tática dos lobos, de cortar, retalhar, morder rapidamente e então
saltar para fora do alcance do adversário. Era a maneira como combatiam seus
antepassados esquecidos. Eles fizeram ressurgir a vida antiga dentro dele, e as
velhas artimanhas que haviam gravado na hereditariedade de sua linhagem
tornaram-se as suas próprias artimanhas. Retornaram a ele sem esforço nem
sensação de descoberta, como se as tivesse praticado durante toda a vida. E
quando, nas noites frias e calmas, ele apontava o focinho para uma estrela e
uivava longamente como um lobo, eram seus ancestrais, mortos e transformados
em poeira, que apontavam os focinhos para as estrelas e uivavam através dos
séculos por meio de sua garganta. E suas cadências eram as cadências que eles
tinham criado, as cadências que manifestavam sua tristeza e melancolia e
traduziam o significado que davam à tranquilidade da noite, ao frio e à escuridão.
E assim, como um sinal de que as ações da vida são apenas o espernear de
fantoches, as antigas melodias surgiram dentro dele e ele tomou posse de sua
herança; e recuperou tudo quanto seus antepassados lhe haviam legado porque os
homens haviam descoberto um metal amarelo no extremo Norte, e porque
Manuel era um auxiliar de jardineiro cujo salário não ia além das necessidades
de sua esposa e de várias pequenas cópias de si mesmo.
[1]. As cidades de Dyea e Skagway eram postos avançados para o acesso ao
Klondike canadense; estão localizadas no território do Alasca, na longa projeção
para sudeste, conhecida como Alasca Meridional. (N.T.)
[2]. Abreviatura para huskemaw, palavra algonquina traduzida como “esquimó” e
que designa o povo Inuit. Cães mestiços com lobos, criados pelos habitantes do
ártico para puxar trenós e outras tarefas, trabalhadores e obedientes, mas ferozes
entre si e com estranhos. (N.T.)
[3]. Cadeia de montanhas que chega a l.067 metros de altitude entre o sudeste do
Alasca e o sudoeste do território de Yukon, no Canadá. Também chamadas de
montes Chilkat, percorrem o noroeste da Colúmbia Britânica e é aqui que nasce o
rio Yukon, que dá nome ao território. (N.T.)
[4]. Boa parte da trilha de inverno corria por sobre o leito de rios congelados,
particularmente o Yukon, onde a neve era menos funda e mais compactada e o
perigo de fendas, avalanches, troncos soterrados e outros obstáculos era bemmenor. Por isso era perigoso viajar na primavera, quando o gelo estava sendo
corroído pela água mais quente que vinha por baixo. (N.T.)
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