Aquele que conquistou o predomínio
– Eh! Mais então, não foi o quieu disse? Não tava falando a vredade quando
disse que esse Buckera dois diabo?
Esse foi o discurso de François na manhã seguinte, quando deu pela falta de
Spitz e viu que Buck estava coberto de feridas. Ele o trouxe até a fogueira e
examinou-as uma a uma na luz.
– Pois é! Mas aquele Spitz brigou como o inferno – disse Perrault, também
examinando as feridas abertas e as costelas à mostra.
– E esse Buck brigou como dois inferno – foi a resposta de François. – Daqui
pra frente, nóis viajemo depressa. Não tem mais Spitz, não tem mais encrenca,
seguro.
Enquanto Perrault empacotava as provisões e equipamentos e os colocava
dentro do trenó, o condutor dos cães pôs-se a atrelá-los. Buck trotou até o lugar
que Spitz teria ocupado como líder; mas François, sem percebê-lo, trouxe Sol-leks
para a posição cobiçada. Segundo seu julgamento, Sol-leks era o mais indicado
para ser o cão-guia. Buck saltou sobre o outro cheio de fúria, empurrando-o de
volta e parando em seu lugar.
– Ah, é? Ah, é? – gritou François, começando a rir e a dar tapas nas coxas,
alegremente. – Óia só pra esse Buck. Ele mata aquele Spitz, agora ele pensa que
é dono do lugar dele, né? Dá o fora, cusco! – ordenou, porém Buck recusou-se a
se afastar.
François pegou Buck pelo cangote, mesmo com o cachorro rosnando
ameaçadoramente, arrastou-o para um lado e recolocou Sol-leks na posição de
líder. O velho cão não gostou nada disso e demonstrou claramente que tinha
medo de Buck. François era teimoso, mas assim que voltou as costas, Buck
novamente deslocou Sol-leks, que não opôs a menor resistência.
François zangou-se.
– Ah, é assim? Pois juro por Deus que vou te consertar! – gritou, retornando
com um pesado porrete na mão.
Buck lembrou-se do homem do suéter vermelho e recuou lentamente;
tampouco tentou investir quando Sol-leks foi trazido para a frente uma vez mais.
Porém ficou circulando, um pouco além do alcance do porrete, rosnando de
amargura e de cólera; e, enquanto circulava, mantinha o olhar fixo no porrete a
fim de desviar-se, caso François jogasse em sua direção, porque a essa altura,
ele já sabia muito bem as coisas que os porretes podiam fazer.
O condutor prosseguiu seu trabalho e chamou Buck quando chegou a vez de
atrelá-lo em seu antigo lugar, diante de Dave. Mas Buck recuou dois ou três
passos. François foi atrás dele e o animal recuou de novo. Depois de algum
tempo, François jogou o porrete no chão, pensando que Buck estava com medo
de levar uma sova. Porém Buck tinha-se revoltado abertamente. Ele não queria
fugir às pancadas, mas ocupar a liderança. Era sua por direito de conquista.
Tinha merecido o posto, e não se contentaria com menos.
Perrault veio dar uma mão. Os dois o perseguiram por quase uma hora.
Jogaram paus em sua direção. Ele esquivou-se. Amaldiçoaram-no e a todos os
seus antepassados nas linhas paterna e materna e a todos os descendentes que
brotassem dele até a última geração; denegriram cada pelo de seu corpo e todas
as gotas de sangue que lhe corriam nas veias; mas ele retorquiu a cada
imprecação com um rosnado, enquanto se mantinha fora de seu alcance. Nem
uma só vez tentou fugir, mas enquanto recuava ia circundando o acampamento,
mantendo mais ou menos a mesma distância e deixando bem claro que, quando
seu desejo fosse satisfeito, ele retornaria e se portaria bem.
François sentou-se, coçando a cabeça. Perrault olhou para o relógio e
praguejou. O tempo estava voando e eles deveriam ter iniciado a viagem uma
hora atrás. François coçou a cabeça de novo. Depois sacudiu-a com
condescendência e lançou um olhar encabulado para o correio, que deu de
ombros, concordando que tinham sido derrotados. Então François levantou-se e
foi até o lugar em que Sol-leks aguardava pacientemente, chamando Buck. Este
“riu”, ou antes emitiu aquele som peculiar que para os cães representa o riso,
mas manteve a distância. François desafivelou os tirantes de Sol-leks e o colocou
de volta no lugar de costume. A matilha inteira estava agora atrelada ao trenó,
uma linha ininterrupta, pronta para a trilha. Não havia lugar para Buck, salvo na
frente. Uma vez mais François o chamou e outra vez Buck “riu” e manteve sua
distância.
– Jogue fora o porrete! – ordenou Perrault.
François obedeceu e prontamente Buck troteou para perto dele, rindo
triunfantemente e indo ocupar sua posição à cabeça da matilha. Seus tirantes
foram afivelados, o trenó partiu imediatamente e, com ambos os homens
correndo a seu lado, lançaram-se pela trilha do rio.
Por mais alto que o condutor de cães tivesse avaliado Buck anteriormente,
ao dizer que valia por dois demônios, antes que se passasse muito tempo
descobriu que o havia avaliado por baixo. Desde o primeiro salto, Buck assumiu
os deveres da liderança; onde era necessário tomar uma decisão, pensar
depressa e agir ligeiro, ele se demonstrou superior a Spitz, cujas qualidades nunca
tinham sido igualadas por qualquer outro cão que François conhecesse.
Mas era ao determinar as leis da trilha e a obrigar seus companheiros a
obedecê-las que Buck mais se distinguia. Dave e Sol-leks não deram a menor
importância à mudança de chefia. Para eles não fazia a menor diferença quem
fosse o líder. Sua função era puxar e puxavam com o máximo de esforço,
pensando somente em suas correias. Desde que ninguém interferisse com eles,
não davam a mínima para o que acontecesse. Por eles, até Billee, o cachorro
manso, poderia ocupar a função de comando, desde que mantivesse a ordem
entre os companheiros. O resto da matilha, entretanto, tinha-se tornado
indisciplinado durante os últimos dias de Spitz e ficaram grandemente
surpreendidos quando Bucktomou a si a tarefa de forçá-los à obediência.
Pike, que estava colocado junto aos calcanhares de Buck e que nunca se
esforçava a empurrar a larga faixa de couro que lhe atravessava o peito além do
que era obrigado, foi rápida e repetidamente mordido para deixar de ser
vagabundo; antes que o dia terminasse, estava puxando os tirantes com mais
entusiasmo do que jamais fizera durante toda a sua vida. Na primeira noite no
acampamento, Joe, o mal-humorado, recebeu um castigo completo – uma coisa
que Spitz nunca tinha conseguido fazer. Buck simplesmente o sufocou com seu
peso superior e lhe deu pequenas mordidas, sem profundidade mas dolorosas até
que ele cessasse de tentar morder de volta e se pusesse a ganir por misericórdia.
A atitude geral da equipe imediatamente melhorou. Recuperou sua antiga
solidariedade e novamente os cães troteavam e puxavam os tirantes como se
fossem um único animal. No acampamento indígena de Rink Rapids dois huskiesnativos, Teek e Koona, foram acrescentados à equipagem. A rapidez com que
Buck os disciplinou e fê-los adaptarem-se ao espírito da companhia tirou a
respiração de François.
– Nunca vi um cusco como esse Buck! – exclamou ele. – Mais nunca
mermo! Esse cachorro vale uns mil dólar, juro por Deus! Eh? Que é que tu diz,
Perrault?
Perrault concordou com a cabeça. Já estava à frente da marcha mais rápida
registrada e ganhava vantagem dia após dia. A trilha se encontrava em
excelentes condições, bem socada e dura, e não caíra neve nos últimos dias.
Também não estava frio demais. A temperatura caíra a dez graus abaixo de zero
no começo da viagem e permanecia estável desde então. Os homens se
alternavam para correr e serem transportados em pé junto ao leme de direção
do trenó, enquanto os cães eram mantidos em marcha constante, com paradas
muito pouco frequentes.
O rio das Trinta Milhas desta vez estava coberto de gelo, e eles percorreram
em um dia o que na vinda tinham levado dez. Em uma única jornada,
percorreram os cem quilômetros da margem do lago Le Barge até as
Corredeiras do Cavalo Branco.[1] Passaram tão depressa pelos lagos Marsh,
Tagish e Bennett (mais de cento e dez quilômetros), que o homem que deveria
correr foi sendo rebocado atrás do trenó, preso à ponta de uma corda. E na
última noite da segunda semana eles galgaram o alto do desfiladeiro Branco e
começaram a descer a ladeira que conduzia ao mar com as luzes do porto de
Skagway[2] e as lâmpadas de sinalização dos barcos acesas a seus pés.
Foi uma corrida recorde. Durante catorze dias, tinham feito uma média de
sessenta e cinco quilômetros. Durante três dias Perrault e François andaram de
peitos estufados para cima e para baixo da rua principal de Skagway, sendo
mergulhados em convites para drinques, enquanto a matilha era o centro
constante de uma multidão admirada de homens acostumados a forçar os
próprios cães até o limite. Então, três ou quatro malfeitores vindos do oeste dos
Estados Unidos tentaram assaltar a cidadezinha e acabaram com mais furos no
corpo do que engradados de madeira e, assim, o interesse do público voltou-se
para ídolos mais recentes. A seguir, vieram ordens oficiais. François chamou
Buck, abraçou-o e chorou sobre seus ombros. Para o cão, esse foi o fim de
François e Perrault. Como outros homens, eles saíram da vida de Buck para
sempre.
Um mestiço de escocês com índia passou a tomar conta dele e de seus
companheiros e, na companhia de uma dúzia de outras equipagens de cães, Buck
retomou a trilha cansativa até Dawson. Desta vez não era uma corrida com o
trenó leve e não se quebrou nenhum recorde, mas pelo contrário, um grande
esforço repetido todos os dias, puxando uma carga pesada. Pois este era o trenó
postal, que trazia notícias de todo o mundo para os homens que buscavam ouro à
sombra do Polo Norte.
Buck não gostou da nova missão, mas suportou bem o trabalho, orgulhandose do que fazia, do mesmo modo que Dave e Sol-leks; e providenciando para que
seus companheiros, quer sentissem orgulho, quer não, executassem cada um sua
justa porção da tarefa. Era uma vida monótona, que executava com uma
regularidade mecânica. Um dia era muito semelhante a todos os anteriores e a
quantos viessem depois. Havia uma certa hora a cada manhã em que os
cozinheiros saíam das tendas, acendiam fogueiras e a primeira refeição era
distribuída para os homens, mas não para os cães. Então, ao mesmo tempo que
alguns desfaziam o acampamento, outros atrelavam os animais e já estavam a
caminho mais ou menos uma hora antes que surgisse a escuridão mais profunda
que anunciava a proximidade da aurora. A cada noite, reinstalava-se o
acampamento. Alguns montavam as tendas, cravando longas estacas na neve
endurecida para prender-lhes as abas, outros iam cortar lenha ou galhos de
pinheiro para fazer as camas, ainda outros carregavam água ou gelo para os
cozinheiros. Os cães também eram alimentados. Para eles, esta era a hora mais
importante do dia, embora fosse bom vagabundear depois de comer os peixes,
misturando-se por uma hora e pouco com os outros cachorros, dos quais havia
uma centena ou mais. Havia lutadores ferozes entre estes, porém três batalhas
com os mais ousados conduziram Buck a uma liderança inconteste, de tal modo
que, sempre que ele rosnava e eriçava o pelo, todos saíam de seu caminho.
Talvez o que ele mais amasse fosse deitar-se ao pé das fogueiras, as pernas
traseiras enroscadas por baixo do corpo, as dianteiras estendidas à sua frente, a
cabeça erguida e os olhos piscando sonhadoramente à luz das chamas. Algumas
vezes, ele pensava na grande mansão do juiz Miller, no distante e ensolorado vale
de Santa Clara e no tanque de natação rebocado de cimento, em Ysabel, a cadela
sem pelos mexicana, e em Toots, o pug japonês, mas com maior frequência ele
lembrava o homem do suéter vermelho, a morte de Curly, a grande batalha com
Spitz e as coisas gostosas que tinha comido ou que gostaria de comer. Não sentia a
menor saudade. A Terra do Sol estava muito esmaecida e distante e tais
recordações não tinham mais poder sobre ele. Muito mais potentes eram as
memórias de sua hereditariedade que revestiam com uma aparência familiar
tantas coisas que ele jamais havia visto antes. Eram os instintos (apenas
memórias das ações de seus antepassados, repetidas com tanta frequência que se
haviam transformado em hábitos), escondidos através de tantas gerações e que
agora, nos últimos meses, despertavam dentro dele e retornavam plenamente à
vida.
Algumas vezes, enquanto ele se deitava ali, piscando sonhadoramente para
as chamas, parecia que as labaredas eram de outra fogueira e que, enquanto ele
se enroscava diante desse outro fogo, via outro homem, bem diferente do
cozinheiro mestiço que estava à sua frente. Este outro homem tinha pernas mais
curtas e braços mais longos, seus músculos eram mais fibrosos e cheios de nós do
que arredondados e protuberantes. Os cabelos desse homem eram longos e
emaranhados e sua cabeça encurvava-se para trás, sob os pelos, logo acima dos
olhos. Emitia estranhos sons e parecia ter muito medo da escuridão, em meio a
qual ele vigiava continuamente, enquanto apertava em sua mão, que pendia a
meio caminho entre os joelhos e os pés, um pedaço de galho a cuja ponta fora
amarrada firmemente uma pedra. Estava praticamente nu, uma pele
esfarrapada e chamuscada pelo fogo pendendo até metade de suas costas, mas
seu corpo era recoberto por uma grande camada de pelos. Em alguns lugares, no
peito, nos ombros e na parte externa dos braços e coxas, havia crescido e se
emaranhado tanto que parecia mais uma pele de animal. Ele não conseguia ficar
bem ereto, mas com o tronco inclinado para frente a partir dos quadris, e as
pernas encurvadas à altura dos joelhos. Com relação ao seu corpo, tinha uma
agilidade peculiar, uma elasticidade quase como a dos gatos, e a vivacidade
permanente daqueles que viveram em medo perpétuo das coisas vistas e não
vistas.[3]Em outras ocasiões, este homem peludo se acocorava junto ao fogo, com a
cabeça no meio das pernas, e então dormia. Em tais momentos, seus cotovelos
permaneciam sobre os joelhos e suas mãos se cruzavam por trás da cabeça
como se quisesse atacar a chuva com seus braços cabeludos a fim de impedir
que lhe escorresse pelo corpo. E além daquele fogo, na escuridão que o cercava,
Buck podia entrever muitas brasas reluzentes, emparelhadas duas a duas, sempre
duas a duas, que ele sabia serem os olhos de grandes feras de rapina. Ele
conseguia escutar o barulho provocado por seus corpos enquanto esmagavam as
ervas e o capim e os outros ruídos ameaçadores com que povoavam as noites.
Sonhando ali, junto às margens do Yukon, os olhos piscando preguiçosamente
diante do fogo, estes sons e visões de outro mundo há muito desaparecido faziamlhe eriçar os pelos do dorso e erguerem-se-lhe nas espáduas e ao longo do
pescoço, levando-o a soltar um gemido baixo e abafado ou a rosnar e roncar
baixinho, até que o cozinheiro mestiço desse uma risada e lhe gritasse: “Ei, você,
Buck, se acorde!” Só então, quando o outro mundo se desvanecia e o mundo real
recuperava o domínio sobre seus olhos, ele se erguia, bocejava e se espreguiçava
como se tivesse estado dormindo.
Foi uma viagem difícil, com as pesadas malas do correio atrás deles; e a
tarefa árdua esgotou a todos. Tinham perdido peso e estavam em más condições
quando finalmente chegaram a Dawson, e precisavam de um descanso de dez
dias, no mínimo. Mas dois dias depois, já estavam de volta, passando o
acampamento militar e descendo as barrancas do Yukon carregados de cartas
para o mundo exterior. Os cães estavam cansados, os condutores resmungavam o
tempo todo e, para piorar as coisas, nevava todos os dias. Isto significava que a
trilha ficaria fofa, que os corredores teriam de se esforçar muito mais para obter
apoio no solo e que os cães precisariam se esforçar muito mais ainda para puxar
os trenós através do terreno frouxo. Todavia, os condutores, apesar de todas as
condições desfavoráveis, eram justos para com os animais e faziam o que estava
a seu alcance para aliviá-los.
A cada noite, os cães eram atendidos primeiro. Comiam antes que os
próprios condutores, e nenhum homem buscava o abrigo de seu saco de dormir
antes de cuidar das patas dos cães que conduzia. Entretanto, sua força foi
diminuindo. Desde o começo do inverno, tinham viajado quase três mil
quilômetros, arrastando trenós por toda essa distância extenuante; e três mil
quilômetros causam efeito até mesmo nos mais fortes. Buck suportou bem a
provação, obrigando seus companheiros a perseverar no esforço e mantendo a
disciplina, embora ele próprio estivesse permanentemente cansado. Billee
chorava e gemia todas as noites enquanto dormia. Joe estava mais amargo do
que nunca e era impossível chegar perto de Sol-leks, nem pelo lado cego, nem
pelo lado que enxergava.
Mas quem mais sofria era Dave. Havia alguma coisa errada com ele. Foi
ficando progressivamente mais mal-humorado e irritadiço; quando o
acampamento era montado, imediatamente escavava seu ninho e o condutor
tinha de levar-lhe a comida até lá. Assim que lhe tiravam os arreios e sua cova
estava pronta, não se punha de pé outra vez até chegar a hora de ser atrelado
novamente, na manhã seguinte. Algumas vezes, preso aos atilhos, quando era
sacudido por uma parada súbita do trenó, ou quando se esforçava para fazê-lo
arrancar de novo, chegava a ganir de dor. O condutor o examinava, mas não
conseguia achar nada. Todos os outros condutores demonstraram interesse por
seu caso. Falavam sobre ele à hora das refeições, faziam comentários enquanto
fumavam as últimas cachimbadas antes de se retirarem para as camas de galhos
de pinheiro, e em determinada noite fizeram uma espécie de junta médica. Ele
foi trazido de seu ninho até a fogueira e tocado e apertado por muitos dedos
enluvados até que começou a uivar de dor. Alguma coisa estava errada dentro
dele, mas não conseguiram localizar nenhum osso quebrado e não entendiam o
que era.
Quando chegaram a Cassiar Bar,[4] ele estava tão fraco que caía repetidas
vezes na neve, preso somente pelos tirantes dos arreios. O mestiço de escocês fez
a equipe parar e retirou-o das correias, prendendo Sol-leks, o cão seguinte,
diretamente ao trenó. Sua intenção era dar um pouco de descanso a Dave, deixar
que ele corresse livremente atrás da matilha, livre do fardo por algumas horas.
Doente como estava, Dave ressentiu-se por ser retirado, roncando e rosnando,
enquanto as presilhas eram abertas e gemendo de partir o coração quando viu
Sol-leks ser colocado na posição que havia ocupado e atendido tão bem durante
tanto tempo. Porque o orgulho da trilha e dos tirantes habitava nele e, mesmo
acometido de uma doença mortal, não podia suportar que outro cão realizasse a
tarefa que tinha sido sua.
Quando o trenó retomou a marcha, ele começou a tropeçar na neve frouxa
à beira da trilha batida, atacando Sol-leks com os dentes, atirando-se contra ele e
tentando jogá-lo para fora das correias sobre a neve fofa do outro lado do
caminho, procurando pular para dentro dos tirantes e meter-se entre ele e o
trenó, gemendo o tempo todo, ladrando e ganindo de tristeza e de dor. O mestiço
tentou afastá-lo com o chicote, mas ele não dava a menor atenção à chibata que
lhe estalava nos lombos e o homem não tinha coragem de atingi-lo com mais
força. Dave simplesmente se recusava a correr tranquilamente pela trilha na
esteira do trenó, onde a marcha lhe seria mais fácil; mas continuava a patear e a
afundar na neve frouxa da beirada da trilha, justamente onde o caminho era o
mais difícil. Aos poucos, foi-se exaurindo, até que tombou e ficou caído ali
mesmo, uivando lugubremente, enquanto o longo comboio de trenós passava por
ele, deslizando pela neve.
Com os últimos restos de sua força, ele conseguiu cambalear atrás do grupo
até que a caravana fez outra parada, quando então avançou, aos tropeços, pela
neve frouxa, costeando a trilha, até parar ao lado de Sol-leks. O condutor do seu
trenó deu uma parada para pedir fogo para seu cachimbo ao condutor de trás.
Então retornou e incitou novamente seus cães. Eles retomaram a trilha com uma
notável falta de entusiasmo, viraram as cabeças inquietos e pararam surpresos. O
condutor também se surpreendeu, porque embora os cães iniciassem a corrida, o
trenó não se havia movido. Ele sacudiu a cabeça de espanto e chamou seus
colegas para contemplar a cena. Dave tinha mordido os dois tirantes de Sol-leks
até cortá-los e agora estava parado exatatamente à frente do trenó, no lugar que
lhe pertencia de direito.
Suplicou com o olhar que o deixassem permanecer ali. O condutor ficou
perplexo. Seus camaradas começaram a conversar sobre como um cão podia
ficar magoado somente por lhe negarem o trabalho que justamente o estava
matando, e lembraram de casos que tinham testemunhado ou de que haviam
ouvido falar sobre cães velhos demais para trabalhar, ou afastados por causa de
ferimentos, que tinham morrido ao serem desencilhados das correias. E
começaram a considerar que seria um ato de misericórdia, no final das contas,
deixar que Dave morresse atrelado, com o coração leve e cheio de
contentamento, já que ia mesmo morrer de qualquer jeito. Assim, ele foi
arreado novamente e orgulhosamente puxou como sempre fizera, embora mais
de uma vez ganisse involuntariamente, ao sentir a dor da ferida que o remoía por
dentro. Diversas vezes caiu e foi arrastado pelos outros cães, sem que os tirantes
se soltassem; em uma ocasião o trenó correu sobre ele, por estar atrasado, e a
partir daí ficou manco de uma das patas traseiras.
Mas ele manteve-se firme até atingirem o ponto escolhido para o novo
acampamento, e o condutor arranjou-lhe um bom lugar junto ao fogo. Na
manhã seguinte, estava fraco demais para viajar. Na hora da atrelagem, tentou
arrastar-se para seu posto. Com esforços convulsivos, ergueu-se sobre as patas,
cambaleou e caiu de novo. Então se arrastou lentamente, como um verme, em
direção ao local em que os arreios estavam sendo atrelados a seus companheiros.
Ele avançava com as patas dianteiras e arrastava o corpo com uma espécie de
pulo; então novamente movia as patas dianteiras e dava outro arranco que fazia
seu corpo avançar mais alguns centímetros. Suas forças o abandonaram
completamente e da última vez que seus companheiros o avistaram, ele jazia
ofegante sobre a neve, ainda ansiando por reunir-se a eles. Mas conseguiram
escutar seus uivos melancólicos até o deixarem completamente para trás,
escondido por uma faixa de árvores que cresciam à beira-rio.
Neste ponto, a caravana parou. O escocês mestiço voltou sobre seus passos
lentamente até o local do acampamento que tinham deixado para trás. Os
homens cessaram suas conversas. Ouviu-se um tiro de revólver. O homem voltou
às pressas. Os chicotes estalaram, os guizos soaram alegremente e os trenós
cortaram a neve enquanto avançavam pela trilha. Mas Buck entendeu; e todos os
cães entenderam o que havia ocorrido por trás do pequeno grupo de árvores.
[1]. White Horse Rapids, próximo ao ponto onde hoje se ergue a cidade de
Whitehorse, capital do território do Yukon, localizada nas cabeceiras do rio Yukon,
a cerca de 60km do Alasca Meridional e a uns 75 da Colúmbia Britânica. (N.T.)
[2]. Skagway era um porto de transporte de passageiros e minérios, localizado no
estreito de Chatham, braço do canal de Lynn e próximo a Juneau, capital do
Alasca; alcançou bastante desenvolvimento no final do século XIX, mas hoje
está reduzido a pouco mais que uma aldeia de pescadores. As corredeiras do
Cavalo Branco (White Horse Rapids), os lagos Marsh, Tagish e Bennett e o
desfiladeiro Branco (White Pass) citados pelo autor no mesmo parágrafo são
pontos geográficos reais que na época demarcavam a trilha até Dawson. (N.T.)
[3]. O autor descreve um Homem de Neanderthal, conforme o conceito que dele
se fazia em sua época. Em 1863, foram descobertos fósseis hominídeos
(inicialmente, uma calota craniana, quase sem testa e com os supercílios
salientes) em uma caverna do vale do Neander, nas proximidades de Düsseldorf
(Alemanha). O Homo sapiens neanderthalensis é o humanoide mais próximo ao
ser humano. (N.T.)
[4]. Trecho do rio Yukon que se pode atravessar durante o verão. “Vau dos
Caniços”, onde cresce um certo tipo de junco adaptado às regiões frias durante o
curto período de estio, desaparecendo durante o longo inverno e rebrotando no
verão seguinte. (N.T.)
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