O som do chamado
Quando Buck ganhou mil e seiscentos dólares para John Thornton em cinco
minutos de esforço, tornou possível para seu dono pagar certas dívidas antigas e
fazer uma jornada com seus sócios para o Leste, em busca de uma fabulosa
mina perdida, cuja história era tão antiga quanto a história do país. Muitos
homens haviam buscado por ela, mas poucos a tinham encontrado; e bem mais
que uns poucos foram os que nunca retornaram da busca. Esta mina perdida
estava cercada de tragédias e amortalhada em mistério. Ninguém sabia quem
fora o primeiro homem a encontrá-la. A tradição mais antiga se interrompia
antes de chegar a seu nome. Desde o começo existia uma cabana antiga e
arruinada. Homens moribundos tinham jurado tê-la visto e também encontrado a
mina cujo local ela demarcava, confirmando seu testemunho com lingotes de
ouro cuja qualidade era superior a de quaisquer outros encontrados nas Terras do
Norte.[1] Mas nenhum homem vivo tinha saqueado esta sala de tesouros e os
mortos estavam mortos; deste modo, Thornton, Pete e Hans, com Buck e meia
dúzia de outros cães, dirigiram-se para Leste sobre uma trilha desconhecida a
fim de obter o que homens e cães tão bons quanto eles tinham deixado de
conseguir. Deslizaram mais de cento e dez quilômetros ao longo do leito
congelado do Yukon, dobraram para leste no rio Stewart, passaram o Mayo e o
McQueston e prosseguiram em frente até que o próprio Stewart se transformasse
em um riachinho, serpenteando ao redor dos picos imponentes que compõem a
espinha dorsal do continente.[2]John Thornton pedia pouco aos homens e à Natureza. Não tinha medo das
regiões selvagens. Com um punhado de sal e um rifle, ele podia mergulhar nas
vastidões e alimentar-se onde quer que quisesse e pelo tempo que lhe agradasse.
Agindo sem pressa, à maneira dos índios, caçava seu jantar no transcurso das
marchas diárias; e, se não encontrasse nada, também como os índios, continuava
a jornadear, com plena certeza de que mais cedo ou mais tarde acharia alguma
coisa. Assim, nesta grande jornada para o Leste, seu alimento normal era carne
sem temperos, e a munição e ferramentas constituíam a parte principal da carga
do trenó, enquanto seu prazo de chegada era o futuro ilimitado.
Para Buck, esta vida de caçadas, pescarias e passeios por lugares estranhos
era um prazer infindável. Durante semanas a fio eles seguiam em frente, dia
após dia; e depois, por muitas semanas acampavam, aqui e ali, e os cães
vagabundeavam enquanto os homens escavavam a fogo a lama congelada até
chegar ao cascalho e lavavam panelas incontáveis de areia junto ao calor da
fogueira. Algumas vezes passavam fome, outras se banqueteavam ruidosamente,
de acordo com a abundância dos animais e aves e a sorte das caçadas. Chegou o
verão e homens e cães colocaram fardos às costas, cruzaram lagos azuis em
jangadas improvisadas e desceram ou subiram por rios desconhecidos em
canoas esguias fabricadas com os troncos da imensa floresta que os rodeava.
Os meses vieram e se foram, e eles vagaram sem rumo certo pelas
vastidões ainda não mapeadas, onde não havia homens e, todavia, onde homens
haviam estado, se as lendas sobre a Cabana Perdida fossem verdadeiras.
Atravessaram as linhas divisórias de águas em meio às nevascas de verão,
tremeram sob o sol da meia-noite[3] em montanhas desnudas entre a linha das
florestas e as neves eternas, percorreram vales durante o verão no meio de
nuvens de mosquitos e moscas, e nas sombras das geleiras apanharam morangos
silvestres e flores tão belas e cheirosas como aquelas de que as Terras do Sul
mais se orgulhavam. No outono desse ano eles penetraram em uma estranha
região coberta de lagos, triste e silenciosa, onde as aves silvestres haviam estado
durante o verão, mas na qual não havia mais vida animal nem sinal dessa vida –
somente o soprar de ventos gélidos, a formação de gelo nos lugares mais
abrigados e o esbater melancólico das ondas contra as praias solitárias.
E vagaram durante outro inverno sobre as trilhas obliteradas de homens que
haviam passado por ali muitos anos antes. Certa feita descobriram um caminho
aberto através da floresta, uma trilha muito antiga, e a Cabana Perdida pareceu
estar muito próxima. Mas a senda começava em parte alguma e levava a lugar
nenhum e permaneceu enigmática, como o nome do homem que a abrira, e as
razões por que o fizera permaneceram um mistério. Em outra ocasião,
descobriram as ruínas de uma cabana de caça, marcadas pela intempérie; e
entre os farrapos de cobertores apodrecidos, John Thornton encontrou uma
espingarda antiga de pederneira e cano longo. Reconheceu-a como sendo umas
das armas distribuídas pela Companhia da Baía de Hudson[4] durante os
primeiros anos da exploração do Noroeste, quando eram vendidas em troca de
pilhas de pele de castor bem apertadas umas contra as outras, na mesma altura
da espingarda colocada em pé, com o cabo encostado no chão. Porém isso era
tudo – não havia a menor pista sobre o homem que havia erguido aquela cabana
muitos anos antes e deixado a arma entre os cobertores.
A primavera retornou mais uma vez e no final de todos os seus meses de
vida errante, encontraram, não a mina da Cabana Perdida, mas uma jazida rasa
localizada em um vale amplo, em que o ouro brilhava como manteiga amarela
contra o fundo das peneiras. Não procuraram mais. Cada dia em que
trabalhavam naquela área, ganhavam milhares de dólares em lingotes e pó do
ouro mais fino – e trabalhavam todos os dias. O ouro ia sendo guardado em sacas
feitas de couro de alce, cada uma pesando cerca de vinte e cinco quilos,
empilhadas como lenha do lado externo de seu abrigo improvisado com ramos
de abeto. Labutavam como gigantes, os dias reluzindo atrás dos dias como outros
tantos sonhos, enquanto iam acumulando aquele tesouro.
Não havia nada para os cães fazerem, exceto carregar de vez em quando a
carne dos animais que Thornton abatia e, deste modo, Buck passava longas horas
meditando junto ao fogo. A visão do homem cabeludo de pernas curtas lhe
chegava com maior frequência, agora que havia poucas tarefas a cumprir.
Muitas vezes, piscando junto ao fogo, Buck vagueava com esse homem naquele
outro mundo que de algum modo se recordava.
A coisa mais constante desse outro mundo parecia ser o medo. Quando ele
contemplava o homem cabeludo dormindo junto ao fogo, a cabeça entre os
joelhos e as mãos crispadas ao redor da nuca, Buck percebia muito bem que ele
dormia sem realmente repousar, assustando-se e acordando vezes sem conta,
ocasiões em que contemplava temerosamente a escuridão e lançava mais
madeira ao fogo. Quando caminhavam à beira da praia, onde o homem
cabeludo apanhava mariscos que comia imediatamente, era com olhos que
percorriam todas as redondezas em busca de perigos ocultos e com as pernas
preparadas para correr como o vento caso algum surgisse. Através da floresta
eles deslizavam sem barulho, Buck junto aos calcanhares do homem peludo;
permaneciam alertas e vigilantes, todos dois, as orelhas se movendo e sacudindo,
as narinas tremendo, porque o homem ouvia e farejava tão aguçadamente
quanto Buck. O cabeludo podia trepar às árvores e movimentar-se sobre elas tão
rapidamente como no solo, balançando-se de galho em galho com a força dos
braços longos, dando saltos de até três metros e meio, soltando e agarrando,
nunca errando, nunca deixando de segurar o ponto de apoio seguinte. De fato,
parecia estar tão à vontade nas árvores como no chão; e Buck guardava
recordações de noites de vigília junto ao pé das árvores em que seu amo se
aninhara, agarrado aos galhos tão firmemente durante o sono como quando
estava acordado.
Muito próximo às visões do homem peludo era o chamado que ainda soava
das profundezas da floresta. Este apelo o enchia de grande inquietação e
estranhos desejos. Fazia-o experimentar uma alegria doce e vaga e percebia
despertarem dentro de si anseios selvagens cujo alvo não conseguia identificar.
Algumas vezes, ele chegava a buscar o chamado dentro da floresta, procurandoo como se fosse uma coisa tangível, enquanto latia baixinho ou
desafiadoramente, conforme a disposição do momento. Enfiava seu focinho no
musgo fresco rente às arvores ou no solo negro sobre o qual crescia a erva alta e
fungava de alegria ao farejar os cheiros variegados que subiam da terra; ou se
acocorava durante horas, como se estivesse a esconder-se, por trás dos troncos
recobertos de cogumelos das árvores tombadas, com os olhos e ouvidos bem
abertos para tudo o que se movia ou soava a seu redor. Pode ser que, escondido
imóvel deste jeito, esperasse surpreender o chamado que não conseguia
identificar. Só que não sabia por que fazia todas estas coisas. Sentia-se impelido a
praticá-las e absolutamente não indagava quais razões o compeliam.
Era tomado de irresistíveis impulsos. Às vezes estava deitado no
acampamento, cochilando preguiçosamente ao calor do dia, quando sua cabeça
se erguia de sopetão e suas orelhas se moviam atentas na escuta e então erguiase de um salto e corria para longe, por horas e horas, ao longo dos corredores da
floresta e através das clareiras em que cresciam mudas de cabeças-de-negro.
Adorava correr pelos leitos secos de cursos de água e aproximar-se furtivamente
para espionar a vida dos passarinhos da mata. Era capaz de permanecer um dia
inteiro dentro da vegetação rasteira, de onde podia observar as perdizes estufando
os peitos e caminhando orgulhosamente para cima e para baixo. Mas amava
especialmente as corridas através dos crepúsculos opacos que eram acesos pelo
sol da meia-noite nas noites de verão, durante as quais escutava os murmúrios
contidos e sonolentos da floresta, lendo os sinais e os sons como um ser humano
pode ler um livro, enquanto procurava aquela coisa misteriosa que emitia o
chamado – que o chamava, todas as horas, dormindo ou acordado, para algum
lu
gar que não sabia onde era.
Uma noite ele se acordou assustado, com olhos ansiosos, narinas farejando
frementes, o pelo se eriçando em ondas sucessivas a percorrerem-lhe o corpo.
Da floresta vinha o chamado (ou pelo menos uma nota dele, porque o apelo era
como uma melodia de muitas notas) distinto e definido como nunca antes – um
uivo longo e prolongado, parecido, mas diferente de qualquer ruído emitido por
cão ou por husky. E ele o conhecia muito bem, daquela maneira antiga e
familiar, como se fosse um som que tivesse escutado muitas vezes antes. Correu
através do acampamento adormecido e, num silêncio veloz, lançou-se como um
dardo através da mata. Mas à medida que se aproximava da origem do grito,
começou a correr mais lentamente, a precaução revestindo cada movimento, até
que chegou a um espaço aberto no meio das árvores e, observando sem se deixar
ver, enxergou, ereto sobre as patas traseiras, com o focinho apontado para o céu,
o corpo longo e magro de um lobo das florestas.
Não fizera o menor som, todavia o uivo cessou e o animal procurou
identificar-lhe a presença. Buck entrou cautelosamente no espaço aberto, com o
corpo meio rente ao solo, o corpo contraído compactamente como para um bote,
a cauda reta e esticada, as patas descendo no chão com um cuidado fora do
comum. Cada movimento anunciava uma mistura de ameaça e tentativa de
amizade. Era a trégua ameaçadora que marca o encontro de bestas selvagens
que vivem da caça. Porém o lobo fugiu assim que o avistou. Ele o seguiu, com
saltos longos e selvagens, consumido pelo desejo de alcançá-lo. Perseguiu-o até
um canal sem saída, no leito de um riacho, onde uma aglomeração de troncos e
galhos barrava a passagem. O lobo virou-se imediatamente, girando nas patas
traseiras do mesmo modo que faziam Joe e todos os huskies quando se sentiam
encurralados, rosnando e eriçando o pelo, batendo com os dentes uns contra os
outros em uma sucessão contínua e rápida de dentadas ameaçadoras que
estalavam no ar.
Buck não o atacou, mas começou a fazer círculos em sua volta e a apertá-lo
mais contra o obstáculo em suas tentativas de fazer amizade. O lobo estava
amedrontado e cheio de suspeitas; porque Buck tinha três vezes o seu peso e sua
cabeça mal chegava ao ombro do cão. Avistando uma oportunidade, passou
correndo por ele como um dardo, e a perseguição recomeçou. Diversas vezes foi
encurralado e a cena se repetiu, embora estivesse em más condições físicas,
caso contrário Buck não o poderia estar ultrapassando com tanta facilidade. Ele
corria até que a cabeça de Buck chegasse à altura de seu flanco e então girava
bem depressa, como se fosse atacar, mas fugia de novo na primeira
oportunidade.
Mas no final, a pertinácia de Buck foi recompensada; porque o lobo,
percebendo que o estranho não pretendia lhe fazer mal, finalmente encostou o
focinho no dele, farejando e sendo farejado. A partir desse ponto, travaram
amizade e começaram a brincar um com o outro daquela maneira nervosa e
meio tímida com que as bestas ferozes negam a sua ferocidade. Depois de algum
tempo destas atividades, o lobo afastou-se em uma corrida lenta, de uma
maneira que claramente demonstrava que pretendia ir a um ponto determinado.
Deixou bem claro que Buck deveria acompanhá-lo e correram lado a lado
através das sombrias horas que precedem o amanhecer, subindo o leito do
regato, entrando na garganta de onde ele brotava e passando pelo penhasco
soturno que ficava na parte mais elevada da torrente.
Na vertente oposta do divisor de águas, eles chegaram a um espaço plano,
coberto por grandes extensões de floresta e cortado por muitos cursos de água;
através destas grandes extensões correram ritmadamente, hora após hora,
enquanto o sol subia mais alto no céu e o dia ficava mais quente. Buck sentia-se
espantosamente feliz. Sabia que estava finalmente respondendo ao chamado,
correndo ao lado de seu irmão das florestas em direção ao lugar de onde o
chamado certamente provinha. Velhas lembranças retornavam velozmente e ele
despertava para elas como antigamente despertara para realidades nas quais
estas recordações eram apenas a escuridão. Já tinha feito exatamente isto antes,
em algum lugar situado naquele outro mundo vagamente lembrado e estava
fazendo de novo, correndo livremente pelos espaços abertos, a terra frouxa sob
suas patas, o imenso céu acima de sua cabeça.
Pararam para beber junto às águas ligeiras de um regato; e quando parou,
Buck lembrou-se de John Thornton. Ele sentou-se. O lobo recomeçou a correr
em direção ao lugar de onde o chamado certamente vinha e então retornou até
onde ele estava, encostando novamente o focinho ao dele de modo a encorajá-lo.
Porém Buck mudou de direção e recomeçou a percorrer lentamente o caminho
de volta. Por quase uma hora seu irmão selvagem correu a seu lado, ganindo
baixinho. Então sentou-se, apontou o focinho para cima e uivou. Era um uivo
triste e melancólico e, enquanto Buck seguia firmemente seu caminho, foi-se
tornando cada vez mais fraco, até perder-se na distância.
John Thornton jantava quando Buck entrou correndo no acampamento e
lançou-se sobre ele, em um frenesi de afeto, derrubando-o, subindo em cima
dele, lambendo-lhe o rosto, mordendo-lhe a mão, “fazendo papel de bobo”,
como Thornton definia isto, ao mesmo tempo que balançava o grande corpo de
Buck e o recobria de ofensas carinhosas.
Por dois dias e duas noites Buck não saiu do acampamento e não deixou
Thornton fora de suas vistas. Seguia-o enquanto trabalhava, cuidava enquanto
comia, observava quando entrava para baixo dos cobertores e estava vigiando
quando se acordava de manhã. Mas, depois de dois dias, o chamado da floresta
começou a soar mais imperiosamente do que nunca. A inquietude de Buck
redobrou e sentia-se assombrado pelas recordações de seu irmão selvagem, da
terra sorridente que ficava além das colinas e da corrida lado a lado através dos
amplos bosques. Novamente ele começou a vaguear pelas matas, mas o irmão
selvagem não retornou; e, embora ele escutasse durante longas vigílias, o uivo
melancólico não tornou a ser escutado.
Começou a passar noites fora, dormindo longe do acampamento por dias
seguidos; e uma vez chegou mesmo a cruzar as colinas na nascente do córrego e
desceu para a terra de florestas e riachos. Vagueou por lá durante uma semana,
procurando em vão uma pista fresca de seu irmão selvagem, matando a própria
comida enquanto viajava com o galope leve que parecia nunca cansar. Pescava
salmões em um regato largo que ia desaguar em algum ponto do mar, e junto a
este regato matou um grande urso negro que, cego pelos mosquitos enquanto
também pescava, corria enfurecido pela floresta, indefeso e aterrorizado.
Mesmo assim, foi um combate difícil, que trouxe à tona os derradeiros restos da
ferocidade de Buck. E dois dias mais tarde, quando retornou ao ponto em que o
matara, encontrou uma dúzia de carcajus[5] disputando a carcaça, e espalhou-os
como um monte de palha; e os que fugiram deixaram para trás dois, que nunca
mais lutariam.
O desejo de sangue tornou-se muito mais forte que antes. Ele era um
matador, um predador, alimentando-se de animais ainda vivos, sem precisar de
ajuda, solitário, em virtude de sua própria força e habilidade, sobrevivendo
triunfantemente em um ambiente hostil em que somente sobrevivem os mais
fortes. Devido a tudo isso, foi tomado por um grande orgulho de si mesmo, que
contagiou cada célula de seu corpo. Este orgulho era anunciado por cada um de
seus movimentos, estava aparente nas contrações de cada músculo, expressavase tão claramente como palavras na maneira como se comportava e tornava
seus pelos sedosos e brilhantes ainda mais cheios de glória. Exceto pela mancha
castanha de seu focinho, que se estendia até acima dos olhos e pela faixa branca
que descia pelo meio de seu peito, poderia muito bem ser confundido com um
lobo gigantesco, maior que os maiores membros dessa espécie. Tinha herdado o
tamanho e o peso de seu pai São Bernardo, mas era sua mãe pastora que dera
forma a esse tamanho e peso. Seu focinho era longo como o de um lobo, só que
era maior que o focinho de qualquer lobo, e sua cabeça, ainda que fosse um
pouco mais larga, era a cabeça de um lobo em escala maciça.
Sua esperteza era a esperteza de um lobo, a esperteza dos animais selvagens;
sua inteligência, a mesma dos cães pastores e dos São Bernardo; tudo isto, mais
uma experiência obtida na mais cruel das escolas, o tornava um inimigo tão
formidável como qualquer criatura que errasse pela natureza. Carnívoro, vivendo
exclusivamente de carne, estava no auge de sua força, no apogeu de sua vida,
ardente de vigor e virilidade. Quando Thornton passava a mão carinhosa sobre
seu dorso, era acompanhada por estalos e crepitações, cada pelo descarregando
o magnetismo acumulado ao entrar em contato com o corpo do homem. Cada
parte de seu organismo, cérebro e corpo, tecidos nervosos e fibras musculares,
estava perfeitamente afinada; entre todas as partes, havia um perfeito equilíbrio e
ajustamento. Ele reagia como um relâmpago a qualquer visão, som ou
acontecimento que exigisse uma ação como resposta. Rápido como um cãohusky pode pular para atacar ou defender-se, ele podia pular com o dobro da
velocidade. Via o movimento ou escutava o som e respondia em menos tempo do
que outro cão precisaria somente para interpretá-los. Percebia, determinava e
reagia no mesmo instante. De fato, as três ações de perceber, determinar e
reagir ocorriam em sequência; mas os intervalos entre elas eram tão
infinitesimais que davam a impressão de serem simultâneas. Seus músculos
pareciam transbordar de vitalidade e punham-se em ação tão prontamente como
fios de aço. A vida fluía através de seu corpo em um fluxo esplêndido, alegre e
dominador, até parecer que ia explodir de dentro dele em puro êxtase e
derramar-se generosamente sobre o mundo.
– Nunca houve um cão como esse – comentou John Thornton, um dia em
que os sócios observavam a saída de Buckdo acampamento.
– Depois que o fizeram, quebraram a forma – disse Pete.
– Puxa fida! – afirmou Hans. – Eu tampém penso assim.
Eles o viram sair do acampamento, mas não perceberam a transformação
instantânea e terrível que ocorreu nele no momento em que se sentiu na
intimidade da floresta. Não marchava mais. Tornou-se de imediato uma criatura
das selvas, avançando em silêncio com patas de gato, uma sombra passageira
que aparecia e desaparecia no meio das outras sombras. Sabia como tirar
vantagem da menor proteção, como arrastar-se sobre o ventre igual a uma cobra
e saltar para o bote tal qual uma serpente. Podia agarrar uma ptármiga[6] pelo
pescoço, matar um coelho adormecido e capturar em pleno ar os pequenoschipmunks[7] que fugiam para as árvores com um segundo de atraso. Os peixes
das grandes lagoas não eram rápidos demais para ele; nem os castores que
consertavam suas represas eram cautelosos o bastante. Mas ele somente matava
para comer, não por capricho ou prazer; todavia, preferia comer o que ele
mesmo tivesse abatido. Assim, uma satisfação oculta permeava todas as suas
ações e sentia um enorme prazer ao aproximar-se sorrateiramente dos esquilos
quando não sentia fome e deixá-los fugir no último momento, chiando de medo
mortal até chegarem ao topo das árvores.
À medida que se aproximava o outono, os alces apareciam em grande
abundância, movendo-se lentamente para o Sul para invernar nos vales mais
baixos, onde o clima era menos rigoroso. Buck já havia derrubado um filhote
jovem que havia se afastado do rebanho; porém surgiu dentro dele um forte
desejo de abater caça maior e mais formidável, e encontrou-a um dia no alto das
colinas junto à nascente do regato. Um bando de vinte alces tinha subido da
região dos bosques e riachos e o líder deles era um grande macho. Ele
demonstrava uma disposição selvagem e violenta e, com mais de um metro e
oitenta de altura, era o antagonista mais formidável que Buck poderia desejar. O
macho balançava seus grandes galhos espalmados para frente e para trás,
divididos em catorze pontas e com uma envergadura de mais de dois metros.
Seus olhos pequenos pareciam queimar com uma luz maligna e venenosa,
enquanto ele mugia de fúria ao avistar Buck.
Do flanco do alce, quase junto ao ombro, brotavam a haste e as penas de
uma flecha, o que explicava sua irritação. Guiado por aquele instinto que
provinha de priscas eras quando caçava nas florestas do mundo primitivo, Buck
manobrou de modo a separar o macho do rebanho. Não foi uma tarefa fácil. Ele
latia e dançava em frente ao alce, na distância exata para fugir ao alcance da
grande galhada e dos terríveis cascos fendidos que poderiam tirar-lhe a vida com
uma única patada. Incapaz de dar as costas ao perigo daquelas presas e impedido
de prosseguir, o macho foi levado a paroxismos de cólera. Nesses momentos, ele
avançava em direção a Buck, que recuava argutamente, atraindo-o por meio de
uma incapacidade de fugir que era apenas simulada. Porém, cada vez que ele
era assim separado de seus companheiros, dois ou três dos machos mais jovens
atiravam-se sobre Buck e permitiam ao alce ferido reunir-se novamente à
manada.
Existe uma paciência peculiar à natureza – obstinada, persistente e
incansável como a própria vida – que mantém imóvel durante horas a aranha em
sua teia, a serpente em seus espirais e a pantera em sua emboscada; esta
paciência se manifesta principalmente nos predadores que se alimentam de
outros seres vivos; e se manifestava em Buck enquanto ele se mantinha junto à
manada, retardando-lhe a marcha, irritando os machos mais jovens, assustando
as fêmeas com seus filhotes meio crescidos e deixando o alce ferido louco de
raiva impotente. Essas manobras duraram por metade de um dia. Buck se
desdobrava, atacando de todos os lados, abrangendo o rebanho em um
redemoinho de ameaças, afastando a vítima da proteção do grupo tão depressa
quanto esta conseguia retornar à segurança, desgastando a paciência das
criaturas que são caçadas, que já de início é menor que a dos predadores.
À medida que o dia passava e o sol descia para seu leito ao noroeste (a
escuridão já havia retornado e as noites de outono tinham seis horas de duração),
os alces jovens vinham em socorro de seu líder assediado cada vez com maior
relutância. A aproximação do inverno os incitava à busca dos vales mais
abrigados e parecia que eles não conseguiriam se livrar nunca desta criatura
incansável que lhes impedia a marcha. Além disso, percebiam de uma maneira
vaga que não era a vida da manada, nem suas próprias vidas que estavam
ameaçadas. A vida de um único membro do rebanho era exigida e este interesse
era mais remoto que a proteção de suas vidas; desde modo, acabaram por
contentar-se em pagar o tributo.
Ao cair do crepúsculo, o velho macho parou com a cabeça abaixada,
observando seus companheiros – as fêmeas que ele havia fecundado, os filhotes
que havia gerado, os machos jovens que havia dominado – enquanto estes se
afastavam, esmagando o solo com o ritmo rápido de seus cascos pesados através
da luz fraca. Ele não podia segui-los porque diante de seu focinho saltava
incansavelmente o terror impiedoso de dentes pontiagudos que não queriam
deixá-lo em paz. Pesava seiscentos e cinquenta quilos, tinha vivido uma vida
longa e saudável, cheia de lutas e vicissitudes e agora, no final dela, enfrentava a
morte nas presas de uma criatura cuja cabeça não ultrapassava seus grandes
joelhos ossudos.
A partir desse momento, dia e noite, Buck não abandonou sua presa, jamais
lhe concedeu um momento de descanso, não permitiu que comesse as folhas das
árvores nem pastasse os brotos de jovens salgueiros e vidoeiros. Tampouco deu
ao alce ferido qualquer oportunidade para saciar a sede abrasadora nos fios de
água serpenteantes que atravessaram. Frequentemente, em seu desespero, ele se
punha a correr longamente, tentando fugir para qualquer direção possível. Nessas
ocasiões, Buck não tentava impedi-lo, mas corria tranquilamente em seus
calcanhares, satisfeito com as regras do jogo, deitando-se para descansar quando
o alce parava, atacando-o ferozmente cada vez que ele tentava comer ou beber.
A grande cabeça se abaixava cada vez mais sob o peso da galhada e o trote
arrastado foi ficando mais e mais fraco. Começou a ficar imóvel por longos
períodos, com o focinho no chão e as orelhas murchas pendendo frouxamente; o
que significava que Buck teria mais tempo para beber e descansar. Em tais
momentos, resfolegando com a língua vermelha balouçante e os olhos fixos
sobre o grande macho, Buck tinha a impressão de que todas as coisas estavam
passando por uma mudança. Podia sentir algo surgindo por toda a terra. Do
mesmo modo que os alces estavam aparecendo, outros tipos de vida também
estavam chegando. A floresta, as correntes e os ares pareciam palpitar com sua
presença. Essa novidade projetou-se sobre ele, não através da vista, audição ou
faro, mas por meio de algum outro sentido mais sutil. Não ouvia nada, não
enxergava nada e não obstante sabia que a terra estava diferente; que estranhas
coisas despertavam e se moviam; e decidiu investigar tão logo tivesse terminado
sua tarefa presente.
Enfim, ao final do quarto dia, ele derrubou o grande alce. Durante um dia e
uma noite ele permaneceu junto ao animal abatido, comendo e dormindo
alternadamente. Depois, descansado, nutrido e cheio de força, dirigiu-se para o
acampamento, a fim de rever John Thornton. Iniciou seu galope suave e
manteve o ritmo hora após hora, não se perdendo nunca nos emaranhados do
caminho, dirigindo-se diretamente ao ponto pretendido através de regiões que
nunca cruzara, numa direção tão certeira e com orientação tão exata que
envergonharia os homens e as agulhas magnéticas de suas bússolas.
Enquanto corria, tornava-se cada vez mais consciente da nova agitação que
perpassava a terra. Havia novas formas de vida andando por ali, diferentes dos
animais que a percorriam no verão. Este fato não lhe era mais transmitido de
uma forma sutil e misteriosa. Os pássaros falavam dele, os esquilos chilreavam a
respeito, a própria brisa murmurava em seu ouvido. Diversas vezes parou e
respirou largos haustos do ar fresco da manhã, lendo uma mensagem que o fazia
saltar com maior velocidade ainda. Estava oprimido pela sensação de que uma
calamidade estava ocorrendo naquele momento, se é que já não ocorrera. E
quando cruzou o grande divisor de águas e desceu ao vale que conduzia até o
acampamento, passou a mover-se com maior precaução.
Após percorrer mais cinco quilômetros, topou em uma trilha fresca que lhe
deixou os pelos eriçados e ondulando. Levava diretamente ao acampamento e a
John Thornton. Buckapressou ainda mais a corrida, veloz mas furtivamente, cada
nervo preparado e tenso, percebendo uma multidão de detalhes que lhe
contavam uma história – só não revelavam o final. Seu focinho lhe forneceu uma
descrição variada da passagem da vida que ele vinha perseguindo de perto.
Observou o silêncio assustador da floresta. Todos os pássaros haviam voado para
longe. Todos os esquilos estavam ocultos. Avistou somente um – uma criaturinha
esbelta e acinzentada, colada a um galho morto e cinzento de tal modo que
parecia fazer parte dele, um nó da madeira projetando-se do ramo seco.
Enquanto Buck deslizava para frente com a obscuridade de uma sombra
flutuante, seu focinho virou-se subitamente para um lado como se uma força
material o tivesse agarrado e puxado. Seguiu o novo cheiro até um arbusto e
encontrou Nig. Estava deitado de lado, morto onde se arrastara para passar os
derradeiros momentos, uma flecha atravessando-lhe o corpo, a ponta
aparecendo de um lado e as penas do outro.
Cem metros adiante, Buck encontrou um dos cães de trenó que Thornton
tinha comprado em Dawson. Este ainda se debatia, lutando contra a morte, bem
no meio da trilha, e Buck passou ao lado dele sem parar. Do acampamento
provinha o som fraco de muitas vozes, subindo e descendo em uma espécie de
cantilena. Arrastando-se sobre o ventre até a beirada da clareira, encontrou
Hans, caído de rosto para baixo, perfurado por tantas flechas que lembrava um
porco-espinho. No mesmo instante, Buck divisou o local em que tinha sido
construído o abrigo de ramos de abeto e a visão fez os pelos de seu pescoço e
espáduas eriçarem-se completamente. Um acesso de raiva terrível apoderou-se
dele. Nem percebeu que estava rosnando, mas roncou com terrível ferocidade.
Pela última vez em sua vida permitiu que a paixão superasse a sagacidade e a
razão; e só perdeu a cabeça devido a seu grande amor por John Thornton.
Os Yeehats[8] dançavam ao redor dos destroços da cabana de ramos de
abeto quando escutaram um rugido horroroso e viram saltar sobre eles um
animal como nunca tinham encontrado antes. Era Buck, um furacão vivo de
fúria, lançando-se sobre eles em um frenesi de destruição. Saltou sobre o homem
que estava mais à frente (que era o chefe da tribo), rasgando-lhe completamente
a garganta até que a jugular aberta esguichasse como uma fonte de sangue. Não
parou para infligir novos ferimentos à vítima, mas em seu salto seguinte deu
outra dentada de passagem, abrindo a garganta de um segundo homem. Não
havia como resistir-lhe. Ele pulava sem parar bem no meio deles, rasgando,
arrancando, destruindo, em movimentos constantes e terríveis que desafiavam as
flechas que lhe lançavam. De fato, seus movimentos eram tão
inconcebivelmente rápidos e os índios estavam tão próximos uns dos outros que
acabavam por acertar-se mutuamente com as setas; e um jovem caçador,
brandindo uma lança contra Buck, cravou-a no peito de outro caçador com tanta
força que a ponta atravessou-lhe a pele das costas e projetou-se para fora. Então
o pânico apoderou-se dos Yeehats, que fugiram aterrorizados para a floresta,
proclamando em sua fuga que estavam sendo perseguidos pelo Espírito Maligno.
E realmente Buck era a encarnação do próprio Demônio, correndo
enfurecido atrás deles e arrastando-os para o solo um após outro como se fossem
cervos, enquanto o bando corria por entre a mata. Foi um dia fatídico para os
Yeehats. Eles espalharam-se em todas as direções e somente uma semana depois
os últimos sobreviventes chegaram a um vale escondido para contar suas baixas.
Quando Buck, cansado da perseguição, retornou para o acampamento desolado.
Encontrou Pete no local onde tinha sido assassinado, no primeiro momento da
surpresa, ainda no meio de seus cobertores. A luta desesperada de Thornton
estava marcada pelas pistas ainda frescas sobre o solo e Buck farejou cada
detalhe delas até a beirada de uma lagoa funda. Junto à margem, a cabeça e as
patas dianteiras dentro da água, jazia Skeet, fiel até o fim. A própria lagoa,
lamacenta e descolorida pelas caixas de cascalho que tinham sido lavadas nela,
escondia ciumentamente seu conteúdo, e este era o corpo de John Thornton,
porque Buckseguiu-lhe as pegadas até a água e nenhuma trilha saía dela.
O dia inteiro Buck sentou-se tristemente à beira da lagoa ou vagou inquieto
pelo acampamento destruído. Ele conhecia a Morte: era uma cessação do
movimento, uma passagem total e definitiva para fora das existências dos vivos e
sabia que John Thornton estava morto. Sentia um grande vazio dentro de si
mesmo, uma dor parecida com a dor da fome, porém um vazio que pulsava e
latejava e que comida alguma poderia preencher. Em certas ocasiões, quando se
punha a contemplar as carcaças dos Yeehats, esquecia a dor por alguns minutos;
nesses momentos, o que percebia era seu grande orgulho e autoestima – um
orgulho maior que qualquer outro que tivesse experimentado antes. Tinha matado
homens, a caça mais nobre que existe e os tinha matado dentro dos estatutos da
lei do porrete e das presas. Farejou os cadáveres curiosamente. Tinham morrido
tão facilmente. Era muito mais difícil matar um husky do que eles. Não tinham a
menor capacidade de luta, se não fosse por suas flechas, lanças e porretes.
Doravante não teria mais o menor medo deles, exceto quanto trouxessem nas
mãos flechas, lanças e porretes.
A noite desceu e a lua cheia ergueu-se bem alto no céu, acima das copas das
árvores, iluminando a terra até que ela se transformasse em um dia
fantasmagórico. E com a chegada da noite, lamentando e pranteando junto à
lagoa, Buck percebeu o alvoroço de um novo tipo de vida na floresta diferente
daquele que os Yeehats tinham produzido. Ergueu-se, escutando e cheirando o ar.
A grande distância escutou um ladrido agudo e fraco, seguido por um coro de
sons semelhantes. À medida que os momentos se passavam, os latidos se
aproximavam e ficavam mais distintos. E novamente Buck os reconheceu como
coisas que tinha ouvido naquele outro mundo que persistia em sua memória.
Caminhou até o centro do espaço aberto e pôs-se a escutar. Era o chamado, a
melodia de muitas notas, soando mais atraente e sedutora do que jamais tinha
soado. Estava pronto para atendê-lo como nunca estivera antes. John Thornton
estava morto. O último laço estava desfeito. Os homens e suas pretensões não
mais o prendiam.
Caçando seu alimento vivo, como os Yeehats tinham estado a caçá-lo,
acompanhando as manadas de alces migratórios, a alcateia tinha finalmente
cruzado o divisor de águas entre a terra dos bosques e regatos e invadido o vale
de Buck. Derramaram-se como uma inundação prateada na clareira banhada
pelo luar; e no centro da clareira estava Buck, imóvel como uma estátua,
aguardando-lhes a chegada. Ficaram surpresos, de tão grande que era seu
tamanho e sua imobilidade, mas após um momento, o mais audaz de todos saltou
diretamente contra ele. Buck atingiu-o como um relâmpago, quebrando-lhe o
pescoço. E permaneceu parado, sem fazer um movimento, tal como antes,
enquanto o lobo moribundo rolava em agonia por trás dele. Três outros tentaram,
em rápida sucessão; um após o outro recuaram, o sangue escorrendo de
gargantas rasgadas ou de ombros feridos.
Isto foi quanto bastou para lançar para a frente a alcateia inteira, em uma
confusão desordenada de corpos misturados, bloqueando e confundindo uns aos
outros na sua ansiedade por derrubar a presa. A maravilhosa rapidez e agilidade
de Buck permitiram-lhe suportar a investida com serenidade. Girando sobre as
patas traseiras, mordendo e rasgando, estava em toda a parte ao mesmo tempo,
apresentando uma frente que aparentemente não tinha brechas, tão rapidamente
redemoinhava e rodopiava, defendendo-se de todos os lados. Mas para evitar que
eles o atacassem por trás, ele foi sendo lentamente forçado a recuar, passando a
lagoa e subindo pelo leito de um riacho, até que se encostou a um barranco alto
de cascalhos. Foi movimentando o corpo deliberadamente até encontrar uma
reentrância que formava um ângulo reto para dentro do barranco, que tinha sido
escavada pelos homens durante sua garimpagem. Protegido de três lados por este
nicho, entrincheirou-se sem ter nada mais a recear, porque os inimigos só
podiam atacá-lo pela frente.
E os enfrentou tão bem, que dentro de meia hora os lobos recuaram
descorçoados. Todos estavam com as línguas de fora, tremendo de cansaço, seus
caninos brancos brilhando cruelmente à luz do luar. Alguns se deitaram com
apenas as cabeças erguidas e as orelhas voltadas para a frente; outros
permaneciam sobre as patas, vigiando-o atentamente; enquanto outros lambiam
a água da lagoa. Então um dos lobos, comprido, magro e cinzento, avançou
cuidadosamente, como se quisesse fazer amizade, e Buck reconheceu o irmão
selvagem com quem tinha corrido durante um dia e uma noite. Soltou um som
quase inaudível e, quando Buck retribuiu o gemido, tocaram os focinhos.
Então avançou um lobo velho, esquelético e marcado pelas cicatrizes de
muitas batalhas. Buck retorceu os beiços no princípio de um rosnado, mas depois
tocou-lhe o focinho e farejaram-se mutuamente. Feito isso, o lobo velho sentouse sobre os quadris, apontou o focinho para a lua e iniciou o longo uivo dos lobos.
Os outros também sentaram e uivaram. E então o chamado chegou a Buck em
tons inconfundíveis. Ele também sentou-se e uivou. Terminado o ritual, saiu da
proteção do ângulo na parede de cascalho e a alcateia reuniu-se ao seu redor,
farejando de uma maneira meio amigável e meio hostil. Então os líderes
iniciaram o latido característico da alcateia e correram em direção à floresta. Os
lobos saltaram atrás deles, uivando em coro. E Buck correu com eles, lado a lado
com seu irmão selvagem, uivando enquanto corria.
E aqui pode terminar a história de Buck. Não se passaram muitos anos até
que os Yeehats percebessem que a raça dos lobos da floresta estava se
modificando, pois alguns traziam manchas castanhas no focinho e na cabeça e
uma faixa branca que lhes descia ao longo do peito. Mais notável ainda do que
isto é a lenda que contam os Yeehats sobre um Cão Fantasma que corre à frente
da matilha. Têm muito medo deste Cão Fantasma, porque sua esperteza é bem
maior que a deles, rouba alimentos de suas aldeias quando os invernos são mais
ásperos, assalta suas armadilhas, mata seus cães e desafia os mais bravos dentre
seus caçadores.
Não é só isso, a lenda se torna pior ainda. Muitos caçadores deixaram de
retornar aos acampamentos; e há outros bravos que seus companheiros de tribo
encontraram com as gargantas cruelmente abertas e com pegadas de lobo ao
redor neles nos campos de neve que são muito maiores que as marcas deixadas
por qualquer lobo. A cada outono, quando os Yeehats seguem o movimento dos
alces, há um certo vale em que nunca penetram. E existem mulheres entre eles
que se entristecem cada vez que as conversas ao redor do fogo relatam a
maneira como o Espírito Maligno escolheu esse vale para sua habitação.
A cada verão, entretanto, um visitante penetra neste vale, do qual nada
sabem os Yeehats. É um lobo imenso, com uma gloriosa cobertura de pelos,
semelhante e todavia diferente de todos os outros lobos. Ele cruza sozinho a terra
sorridente de bosques e regatos e desce até um espaço aberto entre as árvores.
Ali flui uma corrente amarela, vinda do interior de sacos apodrecidos fabricados
com couro de alce, que vai escorrendo e penetrando no solo, enquanto o capim
alto cresce no meio dela e os líquens e fungos a vão recobrindo lentamente até
que todo o amarelo fica escondido da luz do sol; aqui o visitante medita por um
longo tempo, uiva uma única vez, longa e melancolicamente, e então se retira.
Mas nem sempre ele anda sozinho. Quando chegam as longas noites de
inverno e os lobos seguem as manadas que lhes fornecem a carne até seus
abrigos nos vales mais profundos, ele pode ser visto correndo à frente da alcateia,
sob a pálida luz da lua ou iluminado pelo brilho frouxo e trêmulo da aurora
boreal, seu vulto imenso destacando-se como o de um gigante em meio aos seus
companheiros, sua enorme garganta ressoando na harmonia de uma canção que
existe desde que o mundo era jovem: a canção da matilha.
[1]. Esta viagem para leste destinava-se a algum ponto nos vastos territórios do
Noroeste, na época praticamente inexplorados, entre o Yukon e a baía de Hudson,
atravessados pela bacia do rio Mackenzie (1.802km desde o lago do Urso, ou
4.016km, se considerarmos os rios Finlay, Peace e Slave que se sucedem para
desaguar no lago) e por inúmeras extensões lacustres, sendo as principais o
Grande Lago do Urso, com 31.200km2 e o Grande Lago do Escravo, com
29.042km2. Até hoje escassamente povoados, embora extremamente ricos em
minas de ouro, prata, cobre e urânio, sua capital é Yellowknife. (N.T.)
[2]. O Stewart é um rio canadense com 515km de extensão, que nasce no sul de
Yukon, desce para o sul através da Colúmbia Britânica, sobe para o norte pelo
sudoeste dos territórios do Noroeste e então percorre o centro do território de
Yukon, fluindo para oeste até desaguar no rio Yukon. Os rios McQueston e Mayo
são pequenos afluentes do Stewart. Na época em que foi escrita esta história, o
estranho curso retorcido das cabeceiras do rio não era conhecido e acreditava-se
que nascesse no leste, em alguma parte dos territórios do Noroeste. (N.T.)
[3]. Devido à inclinação do eixo da Terra que dá origem às estações do ano, nas
regiões ártica e antártica o sol se levanta acima do horizonte durante o verão,
brilhando fracamente durante toda a noite. Quanto mais próximo aos polos, tanto
mais demorado é o período em que ocorre este fenômeno, equiparado no
inverno pelas longas noites que duram o dia inteiro. (N.T.)
[4]. Criada em 1670 por Charles II (1630-1685, coroado rei da Inglaterra em
1660) com o nome pitoresco de “Companhia dos aventureiros ingleses que
traficam na baía do Hudson”, mudado várias vezes no decorrer dos anos, teve
importante papel na exploração e povoamento do Canadá, embora sua
motivação fosse principalmente comercial. Explorou as costas da baía de Hudson
livremente, até a criação da “Companhia do Noroeste”, em 1784. Estabeleceu-se
uma forte rivalidade que se tornou em luta sangrenta de 1812 a 1821, data em
que ambas se fundiram. (N.T.)
[5]. Pequeno mamífero carnívoro, pelo negro estriado de branco,
aproximadamente do tamanho de uma raposa, esperto, de grande força para seu
tamanho, caracterizado por enormes garras que lhe servem para escavar
extensos labirintos subterrâneos, mas que o tornam temível como inimigo. Até
mesmo os grandes ursos pardos evitam lutar contra eles. Mustelídeos de hábitos
noturnos, há duas espécies, o Gulo luscus, também chamado de glutão
americano, e o Taxides taxus, chamado de texugo americano. O nome vem do
algonquino karkajou, mas é mais conhecido como wolverine. (N.T.)
[6]. Várias espécies de grous do gênero Lagopus, as ptármigas (do gaélicotarmachan) são aves típicas das regiões nórdicas, cujas patas são completamente
recobertas de penas. (N.T.)
[7]. Diversas variedades do gênero Tamias, os chipmunks são pequenos roedores
de pelo estriado, aparentados com os esquilos, que habitam as áreas arborizadas
da Ásia e da América do Norte. Os personagens Tico e Teco (Tic e Tac), que
atormentam o Pato Donald, são chipmunks e não esquilos verdadeiros. (N.T.)
[8]. Tribo de índios americanos conhecidos por sua ferocidade, aparentados aoskoloshes e aos kaniagyutes, que não são verdadeiros peles-vermelhas, mas
pertencem à mesma etnia do grupo aleúte, que se distribui do extremo-oriente da
Ásia até a Ilha de Vancouver, passando pelo Alasca, Yukon e a costa noroeste do
Canadá. (N.T.)
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