sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 748

O FURTO DO FOGO


Segundo os índios tembés, nos tempos míticos o fogo tinha um único dono:
o urubu-rei. Como o urubu era muito avaro da sua preciosidade, os índios não
podiam fazer uso de chama alguma, e quando queriam comer carne só lhes
restava o expediente de expô-la longamente ao sol.
Isso foi até o dia em que um índio mais destemido resolveu dar um fim
àquilo.
– Vamos atrair o urubu-rei e a sua tropa inteira – disse ele, matando uma
anta enorme.
Depois de sangrarem bem o bicho, eles deixaram o cadáver exposto ao sol,
para atrair os urubus.
Não demorou muito e o urubu-rei, atraído pelo fedor da carniça, desceu
sobre a anta.
– Viva, temos hoje banquete farto! Vamos lá, companheiros, há carniça
para todos! – disse ele, dando um grasnido.
Logo o céu anoiteceu com a chegada de uma verdadeira nuvem de urubus.
A bicharada caiu sobre a anta, mas alguém teve a ideia de acender um fogo e
preparar a carne na grelha, ou no moquém, como se diz entre os índios.
– Carne moqueada também tem lá suas delícias! – disse o urubu-rei,
retirando de debaixo da asa negra um tição muito bem escondido para acender a
grelha.
Os urubus, naquele tempo, tinham o dom de se transformar em gente e,
assim, antes de se lançarem à comilança, despiram as asas e ficaram com a
aparência de homens (daí, talvez, o gosto que tinham em assar a carne, ao invés
de comerem-na crua, como hoje normalmente fazem).
– Ufa! Que calorão! – disse o urubu-rei, despindo o manto de penas.
Nus feito gente, os urubus atiraram-se finalmente à carne, e justo neste
instante, irrompendo de dentro da mata, surgiram os índios, de olho aceso no fogo
que ardia na grelha.
– Depressa! Apanhem um tição! – gritou o velho pajé, organizador do
assalto.
Um grito de alerta do urubu que vigiava avisou, entretanto, os demais, e
logo todos vestiram seus mantos negros de penas e levantaram voo
estabanadamente. Antes de partir, o urubu-rei tomou a última fagulha que ardia
na grelha e, depois de ocultá-la debaixo da asa, juntou-se às demais aves no céu.
O pajé correu alucinadamente até a grelha, remexeu no borralho e
encontrou um último caquinho de carvão, com uma listrinha laranja correndo
pra lá e pra cá.
– Aqui! Aqui! – gritou ele aos demais. – Vamos, assoprem, não deixem
apagar!
Quinze bocas cercaram o carvãozinho e começaram a assoprá-lo
agoniadamente, mas o fizeram com tanta força que a listrinha laranja acabou
por se finar, e o carvão nunca mais se acendeu.
– Idiotas! – exclamou o pajé, irado.
Quando se acalmou um pouco, porém, viu que a anta ainda estava quase

inteira.
– Eles voltarão logo – disse ele, animando-se outra vez. – Desta vez, vou
ficar bem próximo da grelha, e vocês desapareçam e só surjam quando eu
ordenar o ataque!
Os tembés fizeram como o pajé ordenara, enquanto ele tratava de cavar
um buraco bem ao lado da carniça a fim de se enfiar ali dentro. O mau cheiro da
anta decomposta era insuportável, mas quem disse que furtar fogo era coisa fácil
e prazenteira?
Dali a pouco, os urubus voltaram, loucos de fome. Após despirem seus
casacos pretos, que fediam mais do que a carniça, reacenderam o fogo e
recomeçaram a banquetear-se.
Enquanto comiam, o pajé aproveitou para irromper da sua toca, ágil como
uma marmota, e meteu a mão dentro da grelha para apanhar um tição.
Assustados, os urubus apanharam suas vestes e levantaram voo outra vez.
O urubu-rei ainda tentou resgatar o tição, ou pelo menos extingui-lo na mão do
pajé, fazendo uma ventania danada com as asas, mas o velho índio cerrara os
dedos com tanta força que nem um furacão teria como apagá-lo.
No fim de tudo, os urubus sumiram nos céus, e o pajé viu-se dono do tição,
que ainda ardia em sua mão. Que Anhangá o carregasse se aquilo não ardia
como cem mil espetadas!
Como um Prometeu enlouquecido, o pajé tratou de atear fogo em todas as
árvores de lenho incandescente que encontrava, a fim de preservar a chama, e
teria colocado fogo na mata inteira se os demais índios não tivessem corrido para
apagar aquelas labaredas todas.
  

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