sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 736

LENDAS INDÍGENAS 

OS FILHOS DO TROVÃO
(SAGA DOS TÁRIAS – I)


A lenda da origem dos tárias, ou filhos do Trovão (também ditos filhos do
Sangue do Céu) está longe de ser a mais famosa das nossas lendas indígenas.
Contudo, é, seguramente, uma das mais interessantes, razão pela qual foi
escolhida para abrir esta pequena mas representativa amostra da extraordinária
capacidade imaginativa dos nossos verdadeiros ancestrais.
Os tárias – ou tarianas – eram uma tribo do rio Uaupés, situado no
Amazonas. Segundo os estudiosos, a palavra “tária” deriva de “trovão”, elemento
genésico primordial dessa tribo.
Vamos, pois, à originalíssima lenda que conta a origem dos tárias.
Diz, então, que num tempo muito antigo o Trovão deu um estrondo tão
forte que o Céu rachou e começou a gotejar sangue. O sangue caiu em cima
dele próprio, Trovão – aqui entendido como um ente personalizado –, e secou
sobre o seu corpo. Algum tempo se passou e o Trovão trovejou outra vez, e o
sangue que estava sobre ele virou carne. Mais adiante, um novo trovejar fez com
que a carne se desprendesse do seu corpo e fosse cair sobre a Terra. Ao tocar o
solo, a carne se despedaçou em mil pedaços, e estes pedaços se transformaram
em gente – homens e mulheres.
Assustadiços por natureza, os filhos do Trovão correram logo a se meter no
interior da primeira gruta, assim que anoiteceu (eles eram ignorantes das coisas
da Terra, então, ao verem o sol desaparecer, imaginaram que ele nunca mais
retornaria).
Quando começou a amanhecer, porém, tiveram uma grata surpresa: o céu
voltava, pouco a pouco, a tomar uma coloração vermelha, sob o efeito da luz do
sol.
Eles observaram o sol subir ao céu e, quando ele chegou ao zênite,
sentiram fome. No alto de uma árvore, viram, então, um pássaro alimentando-se
de um fruto.
– Façamos o mesmo! – disse um dos filhos do Trovão.
Para uma primeira frase, não estava nada mal. Demonstrava prudência
aliada a uma boa observação.
Os tárias – já podemos chamá-los assim – subiram na mesma árvore e
foram comer dos mesmos frutos com os quais a ave se alimentava.
Empanturraram-se até a noite voltar, quando todos, assaltados novamente pelo
medo, foram se meter no interior da gruta.
No dia seguinte, bem cedo, treparam outra vez na árvore para saciar a
fome. Debaixo dela, surgiram dois cervos, macho e fêmea, que também
começaram a se alimentar dos frutos que caíam. Dali a pouco, um dos cervos
montou sobre o outro, e os dois esqueceram-se de tudo o mais.
– O que estão fazendo? – disse um dos tárias, que ainda ignorava as coisas
deste mundo.
Eles observaram bem e retornaram para o interior da gruta. Ninguém

conseguia esquecer o que se passara entre os cervos, e estavam todos
extraordinariamente inquietos.
Durante a noite, a Mãe do Sono – uma das tantas
Cys, as mães divinas
indígenas de tudo quanto há na mata – visitou-os em sua gruta para contar-lhes
quem eles eram. Depois, transformou-os em cervos, e eles foram correndo para
baixo da árvore repetir alegremente o que o casal de cervos de verdade havia
feito.
Quando o dia amanheceu, os pares ainda estavam abraçados, um homem
para cada mulher.
E foi assim que os tárias deram início à sua gloriosa descendência.
 

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