sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 742

O COCAR DE FOGO E OS GÊMEOS MÍTICOS



O filho de Maire-Pochy , o índio vingativo da história anterior, viveu algum
tempo entre os tupinambás antes de regressar aos céus, de onde,
presumivelmente, viera.
O prosseguidor da saga dos Monan possuía um cocar de fogo, ou
acangatara, que tinha o poder de incendiar a cabeça daquele que resolvesse
experimentá-lo sem a autorização do dono.
Apesar disso, não faltou um imprudente disposto a arriscar. Quando as
chamas envolveram sua cabeça, ele correu para uma lagoa e mergulhou,
convertendo-se instantaneamente numa saracura. Dizem que é por isso que essa
ave possui até hoje o bico e as patas vermelhas.
Quando o filho Maire-Pochy retornou à sua verdadeira casa, que era o Sol,
deixou no mundo um filho que atendia pelo nome de Maire-Até.
Certa feita, Maire-Até resolveu fazer uma viagem com sua esposa.
Mas a esposa, além de ser meio lenta, estava grávida e não conseguia
acompanhar os passos ansiosos do marido.
– Lenta mesmo! – disse a voz de Maire-Até, sumindo na mata.
A pobre mulher caminhou desatinada até perder-se no cipoal da floresta.
– Maire-Até, onde está você?
– Ele foi por ali! – disse, de algum lugar, uma voz fininha.
A índia estaqueou, assustada.
– Quem disse isso?
– Siga por aquela vereda, minha mãe! – disse a vozinha, outra vez.
Só então ela compreendeu que a voz vinha de dentro da sua barriga.
– Você? Então já fala? – disse ela para o próprio ventre.
Um pica-pau que observava tudo parou de martelar o tronco da árvore e
balançou a cabeça, desconsolado:
– Outra doida!
Mas era verdade, sim: o feto miraculoso, antes mesmo de nascer, já tinha
o dom da fala.
– Vamos, minha mãe, alcance meu pai! – disse a vozinha, impaciente.
A mulher arremessou-se na direção da vereda e continuou a buscar MaireAté, mas ele não era capaz de diminuir o passo e cada vez distanciava-se mais.
Ao passar por uma moita cheia de frutinhas vermelhas, a vozinha gritou:
– Espere, minha mãe, junte aquelas frutinhas!
Mas a índia estava com pressa e não quis parar por nada deste mundo.
– Eu quero as frutinhas! – esbravejou a criança, sapateando no ventre da
mãe.
– Elas não prestam, dão dor de barriga! – exclamou a índia.
Ao chegar a uma encruzilhada, ela bateu na barriga.
– Para que lado seu pai foi?
Infelizmente, desde aquele instante, a vozinha emudeceu. A índia tentou de
todos os modos fazer seu ventre falar outra vez, mas tudo o que conseguiu extrair
dele foram alguns roncos de fome.
Então sua alma conheceu o pânico.

Perdida! Sim, agora ela estava positivamente perdida! Não tardaria para
que os maus espíritos ou as crias monstruosas da floresta viessem atazaná-la!
Depois de muito andar, acabou enxergando uma oca perdida.
– Graças a Tupã, estou salva!
Pelo menos era o que ela pensava, pois na tal oca vivia um índio que estava
havia anos sem ver uma índia. Assim que ela pediu a sua ajuda, ele puxou-a para
dentro da oca e fez com ela o que bem quis.
Resultado: a esposa de Maire-Até ficou grávida outra vez.
Quando tudo terminou, ela cobriu o rosto com as mãos. No seu peito
misturavam-se a vergonha e o sentimento de vingança. O sentimento de
vingança ela votava, antes de tudo, ao seu marido, que não quisera esperá-la.
Quando, porém, decidiu levar a cabo a segunda vingança, contra o seu agressor,
descobriu que um castigo sobrenatural já havia descido sobre o ele: na esteira
onde ela havia sido abusada, restava apenas, no lugar do índio, um gambá
fedorento.
A índia abandonou a oca certa de que suas desditas haviam chegado ao
fim, mas ainda havia um mal maior guardado. Nem bem deixara o lugar quando
deparou-se com um índio canibal. Ele se apresentou como Jaguaretê e disse que
pretendia comê-la.
E tal como disse, assim o fez, de tal sorte que a pobre índia foi devorada até
o último bocado pelo tal Jaguaretê e pelos da sua comunidade, conhecendo ali,
finalmente, o fim das suas desditas.
Antes de devorar a índia, porém, o canibal retirou do ventre as duas
crianças – o filho de Maire-Até e o do índio que a havia atacado – e atirou-as no
monturo.
No dia seguinte, algumas índias piedosas recolheram as duas crianças.
Diz a lenda que, ao crescerem, os dois irmãos vingaram a morte da mãe
atraindo o índio e os seus sequazes até uma ilha, onde lhes prometeram farta
alimentação. Na travessia pela água, os canibais se transformaram em animais
selvagens – possivelmente em jaguares, já que, segundo os estudiosos, o nome do
líder Jaguaretê remete à figura do jaguar.
Maire-Até criou os dois filhos, o legítimo e o ilegítimo. O ilegítimo, como
não podia deixar de ser, era discriminado em toda parte, sendo chamado de “o
filho do gambá”.
Maire-Até educou-os, porém, da mesma maneira, impondo-lhes as provas
rudes da selva. Numa dessas provas, os dois irmãos deveriam passar por entre
duas rochas que tinham o poder de esmagar aqueles que tentassem passar entre
elas. O filho do gambá foi esmagado ao tentar a proeza, enquanto o filho de
Maire-Até saiu-se vitorioso. Penalizado, porém, do meio-irmão, o filho legítimo
ressuscitou-o, pois possuía os dons mágicos da descendência de Monan, o
semideus civilizador.
Mas havia, ainda, uma última prova: furtar os utensílios de pesca de Agnen,
um ser mítico cuja ocupação principal era a de pescar o peixe Alain, alimento
dos mortos.
Decidido a ter sucesso no seu furto, o filho legítimo de Maire-Até tornou-se
um peixe e, depois de deixar-se pescar, furtou tudo quanto quis enquanto o

pescador estava distraído.
O filho do gambá, porém, saiu-se mal ao tentar o mesmo estratagema, e
acabou sendo morto mais uma vez. Felizmente, o seu irmão demonstrou
novamente a sua generosidade e, depois de recolher as espinhas do filho do
gambá – lembremos que ele se metamorfoseara em peixe –, assoprou sobre elas
e o jovem retornou, desta forma, à vida.
Existem várias versões para essas proezas dos gêmeos míticos, que variam
muito conforme a tribo, mas o certo é que são dois personagens fundamentais da
religião indígena.
  

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