O GAVIÃO E O DILÚVIO
Havia, num tempo antigo, dois irmãos caçadores da tribo dos tembés. Certa
feita, decidiram subir numa árvore para pegar o ninho do gavião Uiruuetê.
Depois de improvisarem uma escada de varas, chamada mutá, o mais velho
prontificou-se a subir. E o fez. Embaixo ficaram sua esposa e o irmão mais novo.
De repente, algo caiu do alto e foi enroscar-se nos cabelos do irmão que
ficara embaixo.
– Deixe que eu desenrosco – disse a esposa do índio que havia subido.
Com dedos hábeis, a bela índia pôs-se a vasculhar o cabelo do cunhado. Ao
ver tudo isso lá de cima, o irmão mais velho ficou cheio de ciúme.
– Estou tonto, suba você! – disse ele ao irmão, descendo.
Os dois trocaram de lugar. O irmão mais novo subiu, enquanto o outro, já
no chão, cortava as cordas que uniam os degraus da escada, desconjuntando-a
toda. Depois, tomando a esposa pelo braço, arrastou-a para casa, deixando o
jovem dependurado no alto, sem meios de descer outra vez.
O jovem gritou, mas o irmão mais velho deixou-o entregue à própria sorte.
– Esta você há de me pagar! – disse ele, brandindo o punho, lá do alto.
Então, sem ter mais nada para fazer, decidiu vasculhar o ninho do gavião.
– Há apenas um filhote – disse ele, ao inspecionar o espaçoso ninho.
De repente, porém, chegou a esposa do Uiruuetê, agitando as grandes asas.
Um pequeno tufão quase derrubou o índio, que ficou paralisado de medo, pois
agora era o gavião ou o abismo.
Num primeiro momento, ele preferiu arriscar com a esposa do gavião.
– O que quer aqui, criatura pelada? – disse a ave, encostando o bico adunco
no nariz achatado do índio.
O índio confessou que tinha ido ali para pegar alguns ovos.
– Pois daqui não sairá mais – disse a ave, empurrando-o com as asas para
o fundo do ninho.
O índio sorriu amarelo e disse que fazia muito gosto em ficar por ali.
– Com gosto ou sem gosto, é assim que será – disse a esposa do Uiruuetê,
atirando aos pés do índio o cadáver de um macaco. – Esfole o bugio até ele ficar
parecido com você.
O índio começou a esfolar o macaco, mas era tão desajeitado que levou
um tempão para arrancar apenas um pedaço do pelo.
– Olhe lá! – disse a ave, de repente, apontando para o céu. – Agora você
vai ver como se faz!
Era o Uiruuetê chegando pelos ares com outro macaco.
O gavião macho pousou e fincou logo seus olhos arregalados no intruso.
– Por que trouxe esta comida imprestável para o nosso filhote? – disse ele à
esposa. – Não sabe que a carne dessa raça imunda não agrada nem aos urubus?
– Ele é o nosso novo esfolador – disse ela, sem se intimidar.
– O quê?!
– É isso mesmo. Estou farta de pelar bugios enquanto você voa
alegremente por aí. Até logo. Ensine-o a pelar os macacos que eu vou dar uma
volta – disse ela, levantando voo.
Uiruuetê e o índio passaram o resto do dia cobertos de pelo e de sangue
coagulado enquanto o filhotinho do gavião, aos seus pés, não parava de piar,
louco de fome.
– Você gostaria de tornar-se um gavião? – disse o Uiruuetê, ao fim do
trabalho.
– Está brincando? – disse o índio, nauseado dos pés à cabeça.
– É muito melhor do que ser homem – disse o gavião. – Não gostaria de
voar?
O índio pensou nisso, e depois no irmão que o abandonara ali, e em toda a
raça humana que não valia muito mais do que o irmão, e tomou finalmente a
decisão.
– Muito bem, serei um gavião!
No mesmo instante o Uiruuetê ergueu voo.
– Espere aí, eu já volto!
O índio olhou para baixo e disse a si mesmo:
– Que outra coisa posso fazer, sem asa ou escada?
Dali a pouco, o gavião retornou com um bando de seus colegas. O índio
sentiu o sangue gelar ao imaginar que estava prestes a ser transformado não em
gavião, mas no prato principal dessa espécie.
Os gaviões pousaram no ninho e começaram uma dança, até que o índio
sentiu crescer-lhe por todo o corpo um manto de penas. Seus braços viraram asas
possantes, e suas pernas converteram-se em dois membros ásperos que
terminavam em patas de dedos com unhas aduncas.
– O que houve comigo? – disse ele, apalpando-se todo com as asas.
– Você agora é um de nós! – disse, triunfante, o Uiruuetê.
O índio grasnou algo que nem mesmo os gaviões entenderam.
– Agora vamos tirar a desforra do seu irmão!
O ex-índio aprovou a ideia na hora e lançou-se junto com os outros na
direção da aldeia. Quando chegou próximo a ela, viu o irmão pintando-se para
uma grande festa que iria acontecer na taba.
Ao verem o bicho pousado, os amigos do índio alertaram-no:
– Veja que enorme gavião! Acerte-o com uma flechada!
O índio gabola tomou do arco e disparou uma flechada, mas o gavião
desviou-se com notável destreza. Outra flecha foi arremessada, e de novo o
gavião desviou-se. Então, farto do brinquedo, o gavião-índio avançou sobre o
irmão e enterrou as garras no seu cabelo.
– Socorro! – gritou o desgraçado, ao mesmo tempo em que era suspenso
no ar.
Ao alcançar uma boa altitude, todos os outros gaviões lançaram-se sobre a
presa, picando-o vivo em pleno ar. Uma chuva de ossos foi tudo o que retornou
do índio morto à sua aldeia natal.
– Agora trate de retirar seus pais da aldeia, pois vamos atacá-la – disse o
Uiruuetê.
O gavião-índio chegou à oca dos pais e disse para virem com ele.
– Não vamos! Você converteu-se em demônio! – responderam.
Então o gavião cresceu em tamanho e, depois de agarrar a oca com o bico,
suspendeu-a nos ares.
Ao verem aquilo, os demais índios tentaram impedir a fuga da oca
voadora, pulando e estendendo os braços. Os pajés tomaram dos seus cachimbos
e puseram-se a assoprar a fumaça na direção da oca, mas isto só serviu para
empurrá-la ainda mais para longe.
Assim que a oca desapareceu por entre as nuvens, uma chuvarada
equivalente a dez rios Tocantins sendo despejados do alto começou a desabar
sobre a aldeia, submergindo tudo em minutos.
Alguns, porém, conseguiram escapar, escalando palmeiras. Durante vários
dias, imersos em trevas, eles lançaram coquinhos sobre as águas para ver se elas
haviam baixado, mas o ruído soava sempre próximo. Então, começaram a
chamar-se uns aos outros, para ver se ainda viviam, e tanto gritaram que o seu
vozerio rouco acabou por transformá-los em sapos.
A lenda não especifica se todos os índios sobreviventes se transformaram
em sapos, mas devemos crer que não, pois doutra forma os tembés, hoje, seriam
todos habitantes dos rios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário