A CONVERSÃO DE AUKÊ
Aukê é um personagem da tribo Krahó, das margens do rio Tocantins.
Mesmo antes de nascer, esse ser singular já andava aprontando por aí, como
veremos agora.
É que ele não queria nascer de jeito nenhum. Assim, os meses da gestação
se passavam, e ele permanecia escondido no ventre da mãe. Só à noite é que ele
dava uma saidinha para ver como era o mundo, transformado numa preá ou
numa paca, mas logo ao amanhecer retornava ligeirinho para a sua morada
natural e aconchegante.
Até que um dia não teve mais jeito, e o pequeno Aukê foi obrigado a fazer
a sua entrada oficial no mundo. Todos o acharam um belo menino, mas ele
crescia muito rapidamente. Além disso, tinha o dom realmente impressionante
de ficar igualzinho a todos os que dele se aproximassem.
Assim, certa feita, ao receber a visita do membro mais velho da aldeia, um
velhote de costas encurvadas, o moleque transformou-se instantaneamente num
ancião igualzinho a ele.
– Como vai o nosso menino? – disse ele, gengivando.
– Seu velho sujo! – respondeu o moleque, que tinha virado outro velho sujo.
Quando o velho saiu, chegou um homem branco, de barba na cara.
Instantaneamente uma barba preta cresceu no rosto do indiozinho até ele ficar
com a cara idêntica do homem branco.
Só quando corria para os braços da mãe é que Aukê voltava a ser um
indiozinho normal, pequeno e pra lá de moleque.
Essas metamorfoses, porém, enchiam de terror a aldeia inteira, e logo
trataram de enxergar no menino uma encarnação qualquer de Anhangá, ou o
Diabo dos homens brancos.
Então, quando o medo estava bem entranhado, passou-se esta conversa
entre o pai e o avô de Aukê, dois índios muito malvados:
– Que faremos com esta cria de Jurupari? – disse o pai.
– Só há um jeito – disse o avô, assoprando a mão como quem sopra um
resto de pó.
Para quem não entendeu, eles tramavam a morte do menino. Assim, na
manhã seguinte, o avô avistou Aukê brincando no barro e lhe disse, como quem
concede o mais alto privilégio da Terra:
– Venha, meu netinho! Venha passear na mata com o vovô!
Aukê levantou-se e seguiu-o. Desta vez, o pequeno Aukê, por alguma razão
que só as lendas explicam, não se transformou numa criatura igual ao avô.
Os dois caminharam mata adentro até chegarem próximo a um abismo.
– Olhe só como é belo e profundo! – disse o velho, conduzindo o menino
até a beira.
Aukê olhou superficialmente, só para satisfazer o avô, pois não achava
graça alguma naquilo.
Neste instante, o velho empurrou o guri e voltou trotando para a aldeia.
Felizmente, nem bem começara a cair, o garoto transformou-se numa
folha seca e foi descendo de mansinho até pousar, são e salvo, no solo. No
mesmo dia, Aukê voltou para casa como se nada tivesse acontecido. Ao vê-lo, o
avô correu para abraçá-lo.
– Meu netinho! Pensei que tivesse caído e morrido! Todos nós
lamentávamos o desastre!
A tribo inteira estava consternada, sim, mas era por ter o menino de volta.
No dia seguinte, o avô levou Aukê para um novo passeio na mata. Ao
chegarem nas brenhas, o velho mandou o netinho juntar madeira e fazer uma
fogueira bem grande.
– Fogueira pra quê? – perguntou o menino, torcendo a boca.
– Vamos moquear uma carne!
O garoto ficou olhando desconfiado para o velho. Moquear carne para que,
se o avô não tinha mais nenhum dente na boca?
O fato é que, quando a fogueira estava bem alta e crepitante, o velho
chegou pelas costas de Aukê e empurrou-o para dentro das labaredas.
Desta vez, não houve prodígio algum: o guri entrou nas chamas e não saiu
mais.
A partir daquele dia, o lugar onde Aukê morrera se tornou lugar de
maldição, e as pessoas só iam lá em grupos, a fim de saciarem a sua sede de
morbidez.
Numa dessas excursões, os visitantes deram de cara com uma casinha
erguida no lugar onde ardera a fogueira. Havia alguém lá dentro, pois ecoava voz
de gente.
Assustados, os indígenas voltaram correndo para a aldeia.
– Aukê ressuscitou e está morando numa casa! – disse um dos fugitivos.
– Onde? – gritou o avô.
Um segundo índio, que não reconhecera o velho, esclareceu:
– Lá adiante, onde o avô malvado queimou vivo o neto.
Todos reuniram coragem e voltaram ao lugar. De fato, lá estava a casa, e,
ao seu redor, uma grande plantação. De dentro da casa surgiu Aukê, um índio
adulto, agora. Ele estava casado com uma índia e ambos passavam muito bem.
– Vovô, como está? – disse Aukê, ao reconhecer o velho.
Em sua voz não havia o menor sinal de rancor.
– Pode entrar sem susto, meu avô, pois não guardo rancor algum. Torneime cristão.
O velho ficou desconfiado.
Então Aukê levou todos até a beira do rio, para lhes contar uma parábola.
Depois que se tornara cristão, ele aprendera a pregar moral e achou que aquela
era uma excelente ocasião para isso.
Aukê tomou uma pedra e lançou-a à água.
– Viram como ela vai ao fundo ao cair?
Todos balançaram obedientemente a cabeça.
– Assim será a alma de vocês quando morrerem. Cairá no poço da morte e
não subirá nunca ao céu.
Todos engoliram em seco.
Aukê tomou outra pedra, envolveu-a numa folha seca e arremessou-a
também na água. A pedra também foi ao fundo, mas a folha destacou-se e subiu
ligeiro à tona.
– Aquela folha é a minha alma. A pedra é o corpo que desce à sepultura,
mas a alma cristã sobe imediatamente ao céu.
Depois da pregação, os índios foram levados de volta para a casa de Aukê.
Todos deram graças a Tupã que o castigo se limitara a uma ameaça vaga. Aukê
presenteou-os ricamente, dando-lhes espingardas, facões, pólvora. À sua mãe ele
deu um caldeirão. Depois, despediu-se de todos, fazendo-lhes o sinal da cruz.
– Voltem sempre que quiserem, meus irmãos em Cristo, e que Deus os
abençoe!
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