sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 760

A PESCARIA DAS MULHERES


Esta lenda, uma verdadeira farsa silvícola, também é dos bororos e narra
uma divertida disputa entre homens e mulheres.
Tudo começou quando os homens, perdendo a sorte ou a habilidade na
pesca, começaram a retornar, todos os dias, de mãos abanando do rio. Aquilo já
virara rotina, e era sob o olhar de censura das mulheres da aldeia que eles
chegavam de cabeça baixa e samburá vazio.
– Aí está, nada de peixe, outra vez! – disse uma índia velha. – O que houve,
seus tolos, desaprenderam a pescar?
Os homens não sabiam o que dizer, mas tanto desaforo escutaram que um
dia o cacique resolveu desafiá-las.
– Vocês falam, falam, mas não seriam capazes de pescar nem um lambari
morto!
Então as mulheres, despeitadas, resolveram mostrar do quanto eram
capazes. Tomando os arcos das mãos dos esposos, elas partiram para dentro da
mata, sob o riso geral.
Ao chegarem à beira do rio, elas começaram a chamar pelas lontras.
– Venham, lontras amigas, precisamos da sua ajuda!
As lontras apareceram e foram rapidamente informadas de tudo.
– Tragam o máximo de peixes que puderem! – disse a líder das mulheres.
Ignora-se que espécie de trato foi fixado entre as mulheres e as lontras,
mas o fato é que as lontras mergulharam nas águas e começaram a caçar todos
os peixes, atirando-os para a margem. Foi uma verdadeira chuva de peixes, que
as mulheres aparavam nos samburás até eles transbordarem.
Quando o dia estava terminando elas retornaram, enfim, para a aldeia.
Homem algum foi capaz de acreditar no que seus olhos viam.
– Vejam, os samburás transbordam!
– Sim, e que peixões!
No dia seguinte, os homens regressaram ao rio, certos de que a maré
virara e de que eles também seriam capazes de encherem-se de peixes.
Mas retornaram, mais uma vez, de mãos abanando.
– Dá cá isto! – disse a líder das mulheres, tomando novamente o arco.
As mulheres voltaram ao rio, celebraram novo pacto com as lontras e, no
fim do dia, retornaram com tantos peixes que todos os moquéns da aldeia
tiveram de ser acesos para evitar que toda aquela carne acabasse se estragando.
– Precisamos descobrir o que elas fazem para arranjar tanto peixe! – disse
o cacique.
O velho morubixaba temia, acima de tudo, que as mulheres voltassem a
comandar os destinos da taba, tal como se dizia ter acontecido nos velhos dias de
opressão feminina.
– Elas são espertas e não permitem que nos aproximemos enquanto
pescam – disse um índio que tentou espiá-las, mas acabou atingido por uma
flecha no pé.
Então o pajé, senhor dos segredos da mata, foi incumbido de encontrar
uma solução. Depois de ingerir uma puçanga de ervas e entoar versos mágicos,

ele vidrou os olhos e disse, num tom cavernoso:
– Chamem a quituiréu!
Quituiréu era uma pequena e prosaica ave, hábil na espionagem.
– Siga as mulheres e descubra por que elas pescam com tanta facilidade –
disse o mago indígena à avezinha, que sumiu logo, num pé de vento, para dentro
da mata.
No fim do dia, antes que as mulheres regressassem, a pequena ave espiã
retornou. Todos os índios acocoraram-se ao redor do pajé enquanto a quituiréu
cochichava na cova da sua orelha marrom o grande segredo.
Assim que o pássaro terminou de pipilar, o pajé arregalou os olhos e
anunciou:
– As índias trapaceiam junto com as lontras!
Então o cacique se pronunciou:
– Não façam nada quando elas voltarem da pesca!
– Como não? – bradou alguém. – Vamos dar-lhes uma boa surra!
– Nada disso – insistiu o cacique. – Façamos de conta que nada sabemos.
Não demonstremos surpresa nem cólera. Isso as deixará intrigadas, e é o quanto
nos basta, por ora.
E assim se fez. Quando as mulheres retornaram de samburás cheios, os
homens não deram a mínima e continuaram em silêncio, de olhos fitos no ar ou
no chão.
– O que houve? – disse a índia velha.
Na manhã seguinte, os homens anunciaram que iriam tentar nova pescaria.
– Podem ir – disse a mulher, certa de que seria outro fracasso. – Graças a
Tupã temos peixe suficiente para as próximas trinta pescarias fracassadas de
vocês.
Mal sabiam elas, porém, que os homens levavam consigo cordas
recobertas de visgo, uma resina grudenta. Ao chegarem na beira do rio, o
quituiréu chamou, com sua voz fininha, as lontras.
As lontras, imaginando tratar-se outra vez das mulheres, surgiram das
águas alegremente.
– Agora, atirem as cordas! – gritou o cacique.
Os índios pularam sobre as lontras e começaram a garroteá-las uma a
uma. Somente uma escapou, fugindo para dentro da água com os olhos
arregalados do mais puro terror.
– Muito bem, agora que já demos um jeito nesses bichos enganadores,
podemos voltar para a aldeia – disse o cacique.
– Não vamos pescar? – disse alguém.
– Não – disse o cacique. – Antes quero ver a cara das índias quando vierem
pescar e forem obrigadas a retornar de samburás vazios.
No dia seguinte, as mulheres retornaram, de fato, à pescaria e, ao
chamarem as suas cúmplices, viram somente a lontra sobrevivente emergir das
águas. A coitada só a muito custo conseguiu revelar todas as atrocidades
praticadas pelos homens no dia anterior.
– Miseráveis! Eles irão pagar bem caro por isso! – bradou a índia velha.
Ora, acontece que essa índia também era entendida em puçangas, e no

mesmo instante determinou que suas amigas recolhessem das matas uma fruta
chamada pequi. Essa frutinha, produto das matas brasileiras, possui numerosos
espinhos que rodeiam o caroço, por debaixo da polpa.
– Preparem a beberagem! – disse a índia, e as outras passaram o resto do
dia preparando a poção venenosa.
Quando o dia acabou, elas retornaram à aldeia.
– Ah! Ah! Ah! Onde estão os peixes, hoje? – gritavam os homens, rindo
muito.
– O rio não estava para peixe, então preferimos gastar o tempo fazendo
esta bebida revigorante – disse a índia velha, mostrando a beberagem que elas
traziam em grandes cumbucas.
– Passem isso para cá! – disseram eles repentinamente, arrebatando-lhes a
bebida. – Estamos loucos de sede de tanto rir!
Os homens ingeriram a bebida e não demorou muito para começarem a
tossir, desesperados. Enquanto se engasgavam, grunhiam feito porcos, tentando
se livrar dos espinhos encravados na garganta.
E foi assim que os homens da aldeia acabaram se transformando em
porcos.
  

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