sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 761

A CURA DA VELHICE


Os índios kadiuéus contam que havia, certa feita, um padre que tomara a
resolução de curar os velhos de todas as suas doenças.
– Cure-os da velhice, e os terá curado das doenças – corrigiu-lhe um dia
um pajé mais astuto.
Esse padre, porém, não tinha tanto poder assim e decidiu ir procurar quem
o tivesse. Era sabido entre os kadiuéus que um certo Gô-Noêno-Hôdi tinha o
poder de pôr fim aos tormentos da velhice.
– Vou procurá-lo! – disse imediatamente o santo homem, esquecido até do
seu deus.
– Ninguém sabe direito onde ele vive – respondeu o pajé.
– Pois irei descobri-lo! – insistiu o padre, determinado.
O padre entrou pela mata e foi em busca do local onde diziam viver esse
ser poderoso. Enquanto andava, ia conversando com as árvores, pois recebera
dos céus este dom. Ao avistar uma árvore seca e velha, parou para dirigir-lhe
algumas palavras:
– Como vai, minha amiga?
– Mal, muito mal! – gemeu a árvore. – Só aguardo, agora, o incêndio que
há de vir na floresta para ver meus dias se acabarem!
– Isso não há de ser assim, pois vou em busca de Gô-Noêno-Hôdi. Pode
me dizer como faço para encontrá-lo?
Então, a árvore fez o bom homem entrar em contato com um espírito das
matas, que o guiou até o esconderijo do xamã da floresta. Não havia nada ali de
fabuloso, e tudo parecia como nas outras aldeias. A mulher que se aproximou do
padre era do mesmo feitio das outras.
– O que deseja? – disse ela. – Você não é daqui.
O padre explicou que procurava o taumaturgo das matas, e ela apontou-lhe
uma choça.
Imediatamente, o padre foi até lá e deu de cara com um velho.
– O senhor é Gô-Noêno-Hôdi?
– Não – respondeu o velho. – Siga adiante até chegar àquela casa.
O padre foi e perguntou:
– O senhor é Gô-Noêno-Hôdi?
– Não, sou apenas o cabelo dele.
“Há alguma brincadeira aqui!”, pensou o padre, já irritado.
O padre passou por quatro ou cinco casas mais, escutando sempre
respostas parecidas.
“Pelo jeito esse sujeito foi deixando um pedaço de si em cada casa”,
pensou ele, já convicto de que, quando encontrasse afinal Gô-Noêno-Hôdi,
nada
encontraria
.
Então a voz do espírito lhe disse que a próxima casa era a tal.
– Mas cuidado! – alertou a vozinha. – Não fume nada que ele lhe oferecer!
O padre entrou e avistou-se, finalmente, com o ser misterioso, e a primeira
coisa que ele fez foi lhe oferecer o tal cachimbo. O padre fez que não viu e
começou a falar.

– Grande sábio, venho em busca de conhecimento.
Gô-Noêno-Hôdi não respondeu, mas lhe ofereceu um cigarro de palha.
A vozinha que estava abrigada na cova da orelha do padre lhe disse que
também não aceitasse, e o padre também fez que não ouviu esse novo
oferecimento.
Diante disso, o mago silvestre rendeu-se.
– Parabéns, você escapou duas vezes de virar uma fera – disse ele. – O
cachimbo tinha excremento de onça, e o cigarro também.
Então, o sábio perguntou ao padre o que ele queria.
– Quero um remédio para rejuvenescer os velhos e também as árvores.
O sábio olhou para dentro da sua choça e gritou:
– Minha filha, traga os pentes.
Então a vozinha interior gritou ao padre que não a olhasse, pois doutro
modo a engravidaria. A moça entrou com os tais pentes, mas o padre desviou os
olhos para o pó do chão.
– Penteie os cabelos do morto com um destes pentes, e ele voltará a viver.
Mas faça isso no mesmo dia da sua morte.
O padre ia responder que não pedira um remédio para ressuscitar, mas
para rejuvenescer, mas achou melhor se calar. Decerto que, ao ressuscitar, o
morto voltaria a ser jovem.
– E quanto às árvores? – disse o padre.
– Minha filha, traga a resina – disse o taumaturgo.
A filha trouxe, e o padre colou os olhos, de novo, no chão. Quando os
ergueu, porém, viu que a choça se transformara numa casa bonita, no centro da
qual havia uma mesa enorme.
– Passe nela a resina – disse o mago.
O padre lambuzou a mesa, e da madeira começou a brotar uma vegetação
espessa. Dali a pouco, a mesa se converteu numa árvore que cresceu
desmesuradamente até furar o teto da casa. Agora havia uma árvore encravada
bem no meio do salão.
Então o padre achou que já era hora de partir. Tomando os pentes e a
resina, ele ganhou a picada que levava para fora da mata, e já ia bem adiante
quando escutou às suas costas a voz da filha do bruxo.
– Espere, espere! O senhor esqueceu o fumo!
Pressentindo uma cilada, o padre apertou o passo, sem voltar-se para trás.
A jovem, no entanto, foi mais rápida do que ele e conseguiu ir postar-se à sua
frente.
– Tome o seu fumo! – disse ela.
O padre desceu os olhos, outra vez, para o chão, só que desta vez enxergou,
por inadvertência, o dedo do pé da jovem, e foi o que bastou para ela engravidar.
O padre foi informado de que estava proibido, desde aquele instante, de
deixar os limites da aldeia, mas mesmo assim insistiu em partir.
– Deixem-me ir! Tenho de curar os velhos e as árvores da velhice!
Diz a lenda que ele partiu, mas que, logo em seguida, morreu, tendo de
retornar à aldeia misteriosa para criar o seu filho. E lá continua até hoje,
prisioneiro perpétuo de um sonho vão.
  

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