sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 767

COMO SURGIU O DIA


Os índios do Xingu têm uma lenda muito divertida e original para explicar
a origem do dia. A originalidade começa pelo fato de o sol nada ter a ver com a
luminosidade ou com o dia, tal como acontece na Bíblia. Tanto o Sol quanto a
Lua estavam imersos na mesma treva dos homens, sendo os vaga-lumes a única
fonte de luz naqueles dias, ou antes,
naquelas noites.
Mas a verdade é que a luz dos vaga-lumes era muito pouca e rarefeita, e
ninguém aguentava mais viver nas trevas. Então, certa noite, dois gêmeos
chamados Inaê e Porã resolveram colocar um ponto final nesse problema.
– Você sabe perfeitamente que o urubu-rei é o dono da luz – disse Inaê ao
Sol. – Até quando vai permanecer inerte, sem fazer um acordo com ele?
O Sol, imerso na treva, coçou a cabeça e disse:
– As coisas não são tão fáceis assim. Ter a propriedade exclusiva da luz faz
do urubu-rei um ser muito poderoso. Ninguém abre mão de um poder por
simples liberalidade.
– Ora, o urubu não ficará sem luz, apenas a dividirá conosco! – exclamou
Inaê.
– E perderá, assim, o trunfo supremo da exclusividade da luz – completou o
Sol.
– Ora, mas a luz é para todos!
– Muito bem, se o urubu-rei não quiser dividir por bem a luz conosco,
iremos tomá-la por outro meio! – exclamou o Sol, determinado.
Os gêmeos expuseram então um plano e, na mesma noite, trataram de
confeccionar uma anta de madeira, colocando dentro dela um monte de esterco.
Não demorou muito, e os escaravelhos começaram a entrar e a sair da anta
pelas frestas, carregando suas bolas fedorentas.
– Muito bem, já temos o bastante! – disse o Sol, mandando embrulhar os
escaravelhos.
O Sol convocou, então, as moscas para que levassem o embrulho para o
urubu-rei.
– O que querem? – disse o urubu a uma das moscas.
Como não entendia o que as moscas diziam, o Sol mandou buscar o japim.
O japim é um pássaro versado no canto de todas as aves, do qual, mais
adiante, leremos uma lenda. Infelizmente, neste caso, como se tratavam de
moscas, o pássaro tradutor nada pôde fazer.
– Melhor chamar meu primo – disse o japim.
O urubu-rei fez cara feia e mandou chamar o tal primo, um certo joãoconguinho que, apesar de ser menor do que o japim, dizia entender o idioma dos
insetos.
A avezinha veio e, na hora, decifrou o zumbido da mosca.
– Elas trazem um presente da Terra das Trevas para o Senhor da Luz.
– Muito bem, diga então que o presente está aceito, e que voem todos de
volta para as trevas! – disse o urubu-rei, apoderando-se avidamente do embrulho,
pois um odor de podridão havia atiçado aquela máscara que recobre o orifício

nasal do urubu e da maioria das aves.
– Escaravelhos com bolinhos de esterco! – exclamou ele, devorando, em
questão de segundos, todo o embrulho.
Aquilo fora tão bom que o soberano decidiu convocar uma reunião de
emergência do seu Conselho.
– Lá na Terra das Trevas deve ter, por certo, muito mais desses quitutes
saborosíssimos! – disse o urubu-rei aos conselheiros, um bando de urubus que só
sabiam balançar a cabeça de cima para baixo toda vez que o rei falava.
Na mesma hora o urubu organizou uma comitiva para ir até a Terra das
Trevas. Junto com ele iriam aves de todos os tipos, e não só urubus.
Enquanto isso, na aldeia trevosa, o Sol e a Lua já estavam dentro da anta de
madeira.
– Tudo pela abençoada luz! – dizia o Sol, até que o urubu-rei chegou, afinal,
com a sua comitiva.
– Queremos mais quitutes daqueles! – ordenou ele, como um conquistador.
Imediatamente as moscas lhe apontaram a anta gigante, toda coberta de
escaravelhos e suas bolinhas de esterco. Todas as aves se arremessaram, num
voo alucinado, na direção do boneco.
Neste instante, o Sol aproveitou para espiar no buraco destinado aos olhos,
para ver se o urubu também vinha. Mas o gavião, que ficara no ar, fiscalizando
tudo, percebeu o perigo e deu o alerta:
– Cuidado, majestade! O boneco mexeu os olhos!
Mas a gula era tanta que nem mesmo o urubu-rei teve ouvidos para escutar
a advertência. Logo, todas as aves estavam sobre a anta de mentira,
abocanhando todos os escaravelhos que enxergavam.
Então, quando a comilança estava no auge, o Sol espichou o braço para
fora e agarrou a perna do urubu-rei. Um grasnido aterrador escapou da sua
garganta, fazendo as outras aves levantarem voo e desaparecerem nos céus. Só o
urubu-rei permaneceu prisioneiro na desolada Terra das Trevas, junto com o
jacubim, uma avezinha valente que não costumava fugir da luta quando as coisas
iam mal.
– Solte-me! – gritava o urubu-rei.
– Dê-nos o dia e poderá voltar para o seu reino!
O urubu-rei renitiu o quanto pôde, mas teve, afinal, de ceder.
– Vá buscar a arara vermelha! – disse o urubu-rei ao jacubim.
A arara vermelha era a portadora da luz e, depois de algumas horas,
retornou junto com o jacubim. Assim que a ave de penas escarlates pousou num
galho alto, o dia começou a raiar pela primeira vez para os índios da Terra das
Trevas.
Um coro de espanto subiu aos céus, e o Sol foi colocar-se no seu lugar.
– Quando o dia terminar, será a sua vez de ir ocupar o lugar do Sol – disse o
urubu à Lua.

Os índios do Xingu ficaram tão agradecidos ao urubu-rei que, desde esse
dia, passaram a depositar oferendas regulares de carne apodrecida nos lugares
altos da aldeia ao generoso doador da luz.
  

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