sábado, 5 de novembro de 2016

CONSCRITO 773

O JACARÉ E O MUTUM


Os kanassas, como todas as tribos, possuem várias lendas etiológicas, ou
seja, que explicam a razão de ser das coisas. Neste conto, ficaremos sabendo
como o jacaré ganhou a sua cauda, e o mutum, uma pequena ave das matas, o
seu topete.
Primeiro, o jacaré.
Diz-se que um dia um pajé kanassa chegou à terra do jacaré e encontrou-o
ralando mandioca. Fora das lendas, um jacaré ralando mandioca seria coisa
muito curiosa de se ver, mas o pajé achou tudo muito natural e foi logo
perguntando:
– Me diga, jacaré: onde é que você guarda o ralador depois de usá-lo?
O jacaré lançou um olhar frio ao pajé.
– Eu o guardo nas costas.
– Deixe eu ver como fica – disse o índio.
O jacaré olhou para o índio, quase incrédulo, mas resolveu, afinal, fazer o
que o outro pedia, só para se livrar do importuno.
– Não, não fica nada bem – disse o pajé, após observá-lo de todos os
ângulos.
O jacaré retirou o ralador das costas, aborrecido, e voltou a ralar
mandioca.
– Experimente colocar em cima do rabo – falou o pajé.
Perdendo finalmente a calma, o jacaré exclamou:
– Você está de gozação comigo?
– Ponha em cima do rabo, vamos ver – insistiu o outro.
– Só se prometer que, depois disso, irá embora.
O pajé prometeu que iria, e só então o jacaré pegou o ralador e colocou-o
em cima do rabo, um rabo lisinho como a cauda das lagartixas.
– Ótimo, ótimo! – disse o pajé, subitamente entusiasmado. – Ficou perfeito!
Então, antes que o jacaré pudesse fazer algo, o pajé lançou um feitiço
sobre ele.
Desde então, o jacaré ficou com o rabo áspero e cheio de fraturas, como
um ralador de mandioca.
* * *
Agora, a lenda do mutum.
O mesmo pajé andou mais um pouco pela mata até encontrar o mutum.
Este ser também estava todo atarefado, preparando um pequeno enfeite de
penas.
O pajé achou que interromper o trabalho do outro era uma boa maneira de
demonstrar a sua simpatia e a sua cordialidade, e perguntou ao mutum:
– O que está fazendo aí?
– Um enfeite de penas para afastar índios chatos – disse o mutum.
O pajé, imperturbável, sentou-se e esperou o mutum terminar a sua obra.
– Vamos ver que tal vai ficar.

O mutum olhou para o pajé com impaciência.
– Vai pôr na cabeça? – disse o pajé.
– Sim – disse ele.
– Então ponha, o que está esperando?
De repente, o mutum temeu estar diante de um louco e resolveu fazer o
que o índio dizia. Depois de colocar o enorme penacho no alto da cabeça, ficou
parado, com cara de bobo.
– Parece bom – disse o pajé.
Acalmado por esse pequeno afago na vaidade, o mutum começou a voar


de lá para cá.
– Mais rápido!
O mutum voou em todos os sentidos, até de ponta-cabeça. Nesse ponto, o
topete se desprendeu e caiu miseravelmente.
– Aí está! – disse o índio, dando uma palmada na coxa. – Ponha de novo!
O mutum recolocou o penacho, e o pajé aproveitou para lançar sobre ele
um feitiço. No mesmo instante, o penacho enraizou-se no cocuruto da avezinha e
dali nunca mais saiu.  

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