POR Q UE ONÇA NÃO GOSTA DE GENTE
Os índios kayapós explicam da seguinte maneira a razão de a onça detestar
gente.
Tudo começou quando um índio viu-se abandonado no alto de um ninho de
araras. Ele subira lá para pegar alguns ovos, mas terminara abandonado pelo
irmão depois de, por descuido, ter-lhe jogado pedras em vez dos ovos.
O tempo passou, e o índio, que se chamava Botoque, já estava quase morto
de fome quando uma onça apareceu.
– Quer uma ajuda para descer? – disse a pintada, ao ver o índio sozinho lá
no alto.
Apesar de esfomeado, o índio achou melhor não ir na conversa da onça.
– Não, obrigado. Você quer é me comer!
A onça jurou que não o faria.
Depois de muita negociação, Botoque finalmente desceu, e a onça, caso
raro em episódios desta natureza, nada fez para comer o índio. Em vez disso,
deixou que ele montasse nas suas costas.
– Vamos para a minha casa. Lá tem carne assada à vontade!
Botoque, mais morto do que vivo, foi sacolejando de bruços nas costas da
onça até a casa onde ela morava.
A mulher da onça, contudo, não gostou de Botoque.
– Qual Botoque! – disse ela, antipatizando logo com o forasteiro.
Depois, voltando-se para o esposo, alertou-o:
– Deixe de ser ingênuo, que eu conheço essa gente! Essa é uma raça
mofina e ingrata!
Mas a onça fez ouvidos moucos e instalou o índio na casa e mandou-o
servir-se à vontade da carne assada que abundava por cima das grelhas.
Botoque, que nunca tinha visto carne assada, adorou. Na verdade, a sua
gente não conhecia sequer o fogo, e foi com grande espanto que ele viu a onça
acendê-lo num tronco de jatobá.
E a mulher sempre reclamando.
– Deixa de ser bobo, olha que essa raça é traiçoeira!
Então, no dia seguinte, quando a onça saiu para caçar outra vez, a fêmea
começou a azucrinar o índio, tratando-o da pior maneira possível, obrigando-o a
esconder-se até a volta da onça.
Quando o felino voltou, resolveu ensinar ao afilhado o uso do arco.
– Olha só! – exclamou a fêmea, levando as duas mãos à cabeça. – Ficou
louco de vez?
Mas a onça gostava cada vez mais da companhia do jovem, e ensinou-lhe
todas as artes do arco com tamanho gosto que logo Botoque tornou-se quase tão
hábil quanto o seu mestre.
Então, quando a mulher da onça começou a persegui-lo novamente, na
ausência do esposo, Botoque não teve dúvida e arremessou uma flechada
certeira no peito dela, matando-a na hora.
Depois disso, Botoque fugiu, não sem antes levar um farnel inteiro com a
carne assada da grelha. Ao chegar na sua aldeia, contou tudo quanto se passara
no covil da onça.
– Ela sabe manejar o fogo e assar carne como ninguém!
A boca dos índios encheu-se de água, e todos pediram a Botoque que os
levasse até lá.
– Nós precisamos do fogo! – disse o cacique.
Então eles retornaram às pressas à casa da onça. Como ela ainda devia
demorar, os índios puseram-se a recolher toda a carne assada, além de assarem
as que ainda estavam cruas e gotejantes de sangue. Depois, ensacaram tudo e
não deixaram nada para a onça.
Mas o pior foi terem carregado consigo o tronco de jatobá onde a onça
costumava acender o seu fogo, não deixando nada ali senão, por descuido, uma
pequena brasinha, que o pássaro azulão recolheu com o bico para levar ao seu
ninho a fim de esquentá-lo nas noites frias de inverno.
Quando a noite caiu, a onça finalmente retornou e descobriu que não havia
carne nem fogo, e que a sua mulher estava morta, varada por uma flecha.
– Pobre esposa, você estava certa: essa raça é mofina mesmo! – disse ele,
envergonhado.
Desde então, de tanto desgosto, a onça ficou sem fogo algum, e um brilho
amarelo nas suas pupilas foi tudo quanto dele restou. Desaprendeu, também, as
artes do arco e da flecha, de tal modo que suas armas passaram a ser apenas as
suas presas e as suas garras de unhas longas e aduncas.
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