A MOURA TORTA
Este é um dos contos mais populares do vasto repertório que circula pelo
interior do Brasil. Como a imensa maioria, não é criação brasileira, mas uma
adaptação de um dos contos mais divulgados da literatura oral de todo o mundo.
Havia, pois, certa feita, um rei que mandou o filho correr mundo. O
príncipe ganhou a estrada e, depois de encerar meio mundo, topou com uma
velhinha dobrada a carregar um feixe de lenha. A cada passo, ela gemia sob o
seu fardo, o que encheu de dó o príncipe.
– Deixe, boa velhinha, que eu carrego o seu feixe – disse o príncipe.
A velha deu um suspiro e arriou a carga.
– Obrigada, meu jovem – disse ela, aliviada, porém sem endireitar as
costas, pois era corcunda.
Então, ela retirou de seu alforje três laranjas novinhas e entregou-as ao seu
benfeitor.
– Coma estas laranjas sempre que sentir sede – disse ela. – Mas cuidado: só
as coma quando estiver perto de um curso d’água.
O príncipe jurou que assim o faria, embora, desde já, saibamos que assim
não o fará.
De fato, ao sentir sede pela primeira vez, ele descascou uma das laranjas
num descampado. De dentro dela saltou uma bela jovem, dizendo:
– Dá-me água ou morrerei!
Como não havia água por perto, a pobrezinha morreu de sede feito um
mosquitinho.
Dali a dois dias o príncipe, que devia ser muito esquecido, sentiu sede de
novo e descascou a segunda laranja sem ter à vista qualquer córrego d’água.
Uma segunda jovem, ainda mais bela do que a primeira, saltou de dentro e
repetiu a ladainha:
– Dá-me água ou morrerei!
Morreu realmente de sede, a pobre.
Na terceira vez em que sentiu sede, o príncipe lembrou-se, finalmente, do
aviso da velha e procurou a beira de um rio antes de descascar a terceira laranja.
– Vejamos desta vez! – disse ele, metendo a faca.
Então uma terceira jovem, mais bela do que as outras duas, surgiu com o
mesmo pedido:
– Dá-me água ou morrerei!
Ele tomou-a nos braços e levou-a, às pressas, até as margens do rio.
– Beba, linda jovem! – disse o príncipe, instantaneamente apaixonado.
Como estava perto de casa, o príncipe decidiu casar-se logo com ela. Mas
como a jovem estava nua, não havia como levá-la, assim, ao palácio.
– Suba no alto desta árvore e me aguarde enquanto vou buscar uma roupa!
– disse ele.
Nua como estava, a jovem trepou no galho mais alto e ali ficou sentada, à
espera. Uma brisa fresca passando por entre as ramagens refrescava seu corpo,
e ela achou aquilo muito bom.
O dia passou até que, de repente, uma mulher muito feia aproximou-se das
margens. Era chamada de Moura Torta, pois, além de feíssima e caolha,
também era corcunda.
A Moura tinha ido buscar água, pois era a criada mais reles do palácio. Ao
debruçar-se no rio ela viu, porém, o reflexo de algo na água. Primeiro lhe
pareceu que uma romã madura e de polpa rosada flutuava na água. Ela tentou
apanhá-la, mas a fruta desapareceu.
– Irra, afundou! – esganiçou a Moura.
Depois que a água serenou, ela viu a imagem de um rosto belíssimo e
embasbacou-se.
– Nossa, como sou bela! – gritou ela, de alegria e surpresa.
Jogando para o alto o cântaro, ela voltou ao palácio disposta a ser tratada de
acordo com a sua beleza.
– De hoje em diante, quero o melhor quarto da criadagem e o direito de
ser concubina do rei!
Um coro de risos e de desaforos desceu sobre ela.
– Toma outro cântaro e vai buscar água, Moura horrorosa! – disse o chefe
da criadagem.
A pobre voltou à margem do rio certa de ter sofrido algum delírio, mas, ao
abaixar-se outra vez para apanhar água, viu a imagem da mesma jovem a sorrir.
– Aí está! Sou eu ou não sou? – disse ela, pondo as mãos nas ancas.
De novo, voltou ao palácio com o mesmo aranzel de que era a criatura
mais linda do mundo.
– A Moura ficou doida de vez! – diziam todos pelos corredores.
Então lhe deram um terceiro pote e a ameaçaram de morte caso voltasse
sem a água e com aquele mesmo teterém de aluada.
Na beira do rio, a Moura viu-se linda outra vez, só que, desta vez, a
imagem, antes muda, rompeu numa gargalhada.
– Ah, então era você, linda fadinha! – guinchou a Moura ao ver a moça. –
Desça, menina nua! Quero ver tanta beleza de perto!
A jovem desceu, e a Moura começou a elogiá-la.
– Muito linda, você! Mas deixe eu ajeitar melhor os seus cabelos!
Então, pegando um alfinete mágico, espetou-o na cabeça da jovem, que
virou imediatamente uma pomba.
– Xô, desavergonhada! – disse a Moura, enxotando a avezinha.
Ao ver, porém, que o príncipe retornava, a Moura despiu-se inteira e subiu
ligeira ao topo da árvore.
– Voltei, meu amor! Agora, vista isto! – disse ele, carregando vestes dignas
de uma princesa.
Mas algo acontecera com a princesa. Sua pele alva ficara escura e
mosqueada.
– O que houve com a sua pele, antes tão clara? – disse ele, frustrado.
– Oh, meu amor! Você demorou tanto que queimei-me inteira ao sol! –
respondeu a serva.
– E esse olho vazado?
– Foi um espinho, meu adorado!
– E esses dentes estragados?
– Comi uma fruta podre e as sementes arruinaram-me os dentes!
Então a Moura pediu que ele a levasse ao palácio, que lá ela recobraria seu
estado anterior. O príncipe consentiu.
– Está bem, lá veremos o que se há de fazer.
Uma vez na corte, a Moura obrigou o príncipe a cumprir sua promessa de
casar-se com ela.
– Recobre ou não a minha beleza, você deve cumprir com a sua palavra! –
insistia todo santo dia.
Não teve outro jeito, e as núpcias foram marcadas.
Então, quando tudo parecia perdido, a pombinha encantada aproximou-se
do príncipe, nos jardins do palácio, bem no dia do casamento. Ela deu várias
voltas ao redor do príncipe até que ele a tomou nas mãos e começou a acariciar
a sua cabeça.
– Linda pombinha, se minha futura esposa fosse ao menos parecida
consigo!
De repente, porém, sentiu que havia um caroço na cabeça da ave, e
descobriu a cabeça de um alfinete. Ao puxá-lo, a grande surpresa: a pomba
voltou a se transformar na sua antiga amada.
– Você, adorada! – exclamou ele, abraçando-a perdidamente.
No fim das contas, tudo explicado, o príncipe casou-se com a amada,
enquanto a Moura Torta foi lançada viva numa fogueira, restando de si apenas
um amontoado de cinzas.
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