JOÃO GURUMETE
Este conto também é importado do folclore europeu, constituindo uma
variante do “Alfaiate Valente” dos Irmãos Grimm. Como em tantas outras
terras, o Mata-Sete também se aclimatou muito bem no Brasil.
O conto começa dizendo que havia, certa feita, por estes sertões, um
sapateiro muito medroso. Um dia, ele derramou um pouco de cola na mesa e,
dali a pouco, sete moscas acabaram grudadas na meleca.
Um dos seus colegas, muito amigo de gracejos, inventou logo este bordão
para o amigo:
– João Gurumete, que de um golpe matou sete!
Desde esse dia, o sapateiro medroso ganhou a fama de valente por todo o
sertão.
Então, certo dia, apareceu uma fera devastando tudo. Ela comia qualquer
coisa que respirasse. E, mais que tudo, adorava o número sete: tinha sete
cabeças, sete línguas, e comia suas vítimas de sete em sete.
Um dos reis do sertão – naquele tempo havia reis espalhados por todo o
sertão, chamados “coronéis” – mandou sete tropas para liquidar com o bicho,
mas ele comeu todas as sete.
Então, alguém disse ao rei que João Gurumete era a salvação.
– Aquele que deu morte a sete?
– Sim, ele mesmo.
João foi chamado e intimado a matar sozinho a fera.
– Aí está o que você foi inventar! – queixou-se o pobre João ao amigo
gozador. – Quero ver agora como hei de me haver com esse monstro!
O amigo, porém, tinha uma solução.
– Faça como lhe digo e derrotará o monstro.
João escutou e foi em frente. Após atrair a fera até uma igreja velha,
entrou para dentro e saiu pela porta dos fundos, cerrando-a com cadeados e
trancas. Não tendo outro meio de sair, o bicho se esvaiu de fome, e só então o
Gurumete entrou lá para cortar fora as sete cabeças da fera.
– Sete vezes valente! – disse o rei, ao receber as sete cabeças do monstro.
João Gurumete virou conde, por obra do rei, e viu chover muito dinheiro
sobre si.
* * *
O tempo passou até que surgiu um novo monstro pelos sertões. Na verdade,novos monstros, já que eram três. Eles roubavam e matavam.
– João Gurumete, é teu o desafio! – disse-lhe o rei, outra vez.
O sapateiro covarde encheu as calças antes de ir ter com o seu amigo.
– E esta, agora! Se um já era difícil, que dirá três monstros! Desta vez
estou perdido!
Mas o amigo sabia todas as manhas para derrotar monstros.
– Faça como digo e se sairá bem outra vez.
Gurumete foi e fez. Depois de descobrir o local onde os gigantes
descansavam da sua ruindade, à sombra de uma árvore enorme, aproveitou a
ausência deles e pendurou três pedras pesadíssimas no alto. Quando os três
retornaram e foram descansar debaixo da árvore, João cortou a corda da
primeira pedra, que foi cair na cabeça do primeiro gigante.
– Começaram as graçolas? – disse este, ao sentir uma poeirinha roçar-lhe a
testa. – É sempre assim quando vou tirar uma pestana!
Os outros dois se fizeram de surdos, e logo os três roncavam à vela solta.
Gurumete cortou a segunda pedra, que foi dar na testa do segundo gigante.
– Quem foi o cretino? – disse ele, alisando a testa. – Bem sabem, idiotas,
que não tolero perturbações no meu sono!
Quase houve uma briga daquelas, mas, graças ao cansaço, logo os três
voltaram a dormir.
Então, João cortou a terceira corda, e o pedregulho acertou bem no meio
dos olhos do terceiro gigante. Acontece que esse terceiro gigante não era de
ameaças, mas de briga mesmo, e logo a confusão começou para valer. Depois
da luta, os três estavam estendidos e mortos sob a árvore. João desceu e cortou
fora a cabeça de cada um dos três, levando-as para o rei.
João Gurumete foi agraciado com um novo título e ganhou mais um
montão de dinheiro.
– Quanto mais, melhor – disse o amigo, embolsando a sua parte.
* * *
O último desafio de João Gurumete não foi vencer monstro algum, mas
substituir um general do rei que morrera em combate numa guerra feroz.
– Se vencer a guerra, lhe darei minha filha em casamento – disse o rei.
O amigo de Gurumete lhe disse que se vestisse como ele.
– Vista sua farda e monte em seu cavalo. Aja como ele, e tudo sairá bem.
No acampamento, soldado algum sabia da morte do general, pois temia-se
que o anúncio da morte dispersasse todo o exército. João Gurumete montou no
cavalo e surgiu diante da tropa.
– O general voltou! – gritavam todos, em êxtase.
Neste instante, o cavalo assustou-se com a gritaria e largou a correr na
dianteira da tropa. Tudo isso ia muito contra a vontade de João, que pôs-se a
gritar e a espernear feito doido.
– Ouçam, é o grito de guerra do general! – disseram os soldados, eufóricos.
Imediatamente a tropa juntou-se e seguiu com entusiasmo o seu general,
destroçando em menos de uma hora o exército inimigo.
João Gurumete, vitorioso, casou-se afinal com a princesa e, na noite de
núpcias, depois de beber muito vinho, começou a sonhar e a falar bobagens do
seu tempo de sapateiro em pleno leito matrimonial, como se estivesse na sua
oficina.
– Casei-me com um reles sapateiro, e não com um guerreiro! – reclamou
a princesa ao rei.
No dia seguinte, João foi avisado pelo amigo fiel de que iria ter a cabeça
cortada caso continuasse com aquelas conversas reles de sapateiro. Então, João
Gurumete deitou-se com um chanfalho do lado, que era uma espécie de espada,
e fingiu a noite inteira que guerreava como um cavaleiro notável, e só não matou
a esposa porque esta saiu, descabelada, correndo do leito.
– Meu marido é, deveras, um grande guerreiro! – disse ela, entre assustada
e admirada.
Desde então, João Gurumete aprendeu a sonhar em silêncio, e foi assim
que continuou a cortar e remendar docemente o couro nos seus mais lindos
sonhos.
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