sábado, 5 de novembro de 2016

conscrito 782

A RAPOSA E O TUCANO


Certa feita, a raposa decidiu pregar uma peça no tucano.
– Ó, amigo tucano, venha comer lá em casa!
Envaidecido pelo convite, o tucano aceitou na hora. Quando chegou à casa
da raposa, esta lhe serviu um mingau numa esparrela comprida e rasa.
– Coma à vontade! – disse a raposa, preparando-se para rir.
O pobre tucano tentou comer o mingau espalhado, mas o seu bico não
conseguia recolher nada a não ser umas reles gotinhas e, de tanto bicar a
esparrela, acabou com o bico enorme rachado.
O tucano partiu, mas decidiu se vingar.
– Adorei a sua hospitalidade – disse ele, dias depois. – Agora, é a sua vez de
aparecer lá em casa.
A raposa, tornando-se subitamente ingênua, aceitou.
– Muito bem, lá estarei, na hora marcada.
Quando chegou o dia, a raposa foi obsequiada com o mesmo mingau, só
que ele foi servido numa jarra de gargalo estreito. O tucano enfiou o bico lá
dentro e se deliciou à vontade, enquanto a raposa, com seu focinho curto, não
conseguia lamber nem uma gotinha.
No fim das contas, a desgraçada ficou com o focinho entalado e acabou
morrendo sufocada.
E foi assim que a raposa, metida a graciosa, levou o seu troco.



O PADRE DESPREOCUPADO


Havia, certa feita, um padre despreocupado. Sua despreocupação era
tamanha que nada era capaz de tirá-lo de sua paz. Na entrada de sua casa,
mandara gravar até este dístico para que todos soubessem o quanto prezava a
despreocupação: “Aqui nesta casa mora o padre despreocupado”.
A sua fama cresceu tanto que chegou aos ouvidos do rei.
– Não é possível que num mundo como o nosso esse homem não se
preocupe com nada – disse ele, que não sabia fazer outra coisa no mundo a não
ser preocupar-se.
O conselheiro real tinha uma teoria a respeito.
– Este padre é um homem sem bens e sem mulher ou filhos, daí a sua total
despreocupação – disse ele. – Quem nada tem a perder, de nada se arreceia.
– Se for assim, então ninguém é mais feliz do que os mortos, pois nada
mais têm a perder – disse o rei.
– Felizes não, alteza. Despreocupados, talvez.
Então o rei decidiu tirar a prova do padre despreocupado.
– Convoque-o ao palácio. Diga que venha dentro de três dias responder-me
a três perguntas que hei de lhe fazer. Caso não as responda, terá a sua cabeça
cortada.
Um mensageiro foi enviado até o padre com a convocação. Após ler a
parte final da mensagem, o padre conheceu, pela primeira vez na vida, a pontada
aguda da preocupação.
– Arre! Morrer é coisa séria! – disse ele, coçando, nervoso, a coroa
raspada.
Desde esse dia, o padre despreocupado não soube mais o que era dormir
nem comer, até que, ao despontar o terceiro dia, acordou em verdadeiro pânico.
Após vestir às pressas a batina, bateu a sineta, chamando o criado. Explicou-lhe o
seu drama e pediu ao serviçal um conselho que nem todas as luzes da sua religião
haviam podido lhe dar.
– Se o meu amo quiser, irei no seu lugar – disse o servo, muito seguro de si.
“Virgem Santíssima! Aí está alguém realmente despreocupado!”, pensou o
padre, admirado.
– Está disposto, então, a morrer em meu lugar?
– Não morrerei, bom amo – respondeu o outro, imperturbável.
O servo vestiu a batina do padre, raspou o cocuruto e foi ter com o rei.
– É você, então, o tal padre despreocupado? – disse-lhe o rei.
– Exatamente, majestade.
– Continua despreocupado?
– Perfeitamente, alteza.
– Então, me responda isto: quantos cestos de areia há ali naquele monte?
Num canto do salão real, havia uma pequena montanha de areia
empilhada.
– Há ali, alteza, um único cesto de areia.
– Um cesto, só?
– Sim, pois basta fazer um cesto grande o bastante para conter toda a areia.

O rei coçou a cabeça por baixo da coroa e aplaudiu, afinal, a resposta.
– Muito bem, agora diga-me, senhor despreocupado, quantas estrelas há no
céu?
O padre falso deu um número exato e desproporcional, na casa quebrada
dos cinquentilhões, se tal coisa existe, deixando o rei embasbacado.
– Impossível alguém saber o número exato!
O padre de araque, porém, respondeu, imperturbável:
– Tão impossível, alteza, quanto alguém saber
não ser este o número exato.
O rei coçou outra vez a coroa e deu-se por vencido.
– Vá, passa! – disse ele, cerzindo os olhos. – Agora responda a última e
mais difícil pergunta: o que estou pensando neste exato momento?
O criado travestido de padre empertigou-se todo e fulminou:
– Vossa Alteza pensa estar falando com o padre, mas fala mesmo é com o
seu criado.



A CAVEIRA FALANTE


Certa vez, ia um caçador pela mata quando se deparou com uma caveira a
descansar sobre a relva. Ao ver que ela continuava viva, perguntou-lhe:
– Quem te trouxe até aqui?
A caveira bateu a mandíbula, como um boneco de ventríloquo, e
respondeu:
– Minha boca grande me trouxe até aqui!
O caçador, assombrado, foi correndo falar com o rei.
– Majestade, encontrei uma caveira falante no meio do mato!
O rei, desconfiado, olhou o caçador de cima a baixo.
– É verdade, majestade! Até falei com ela!
O rei decidiu mandar um soldado junto com o caçador para verificar se a
história era verdade.
– Se estiver mentindo, passe-lhe a espada! – disse o rei, amante da
severidade.
O caçador e o guarda penetraram outra vez na mata. Chovia. Depois de
chapinhar na lama, o caçador avistou a caveira no mesmo lugar onde a deixara.
– Lá está ela!
A caveira, lavada pela chuva, reluzia. O caçador aproximou-se, chamando
o guarda.
– Fala, caveira! – disse ele, num rasgo de coragem.
Mas a caveira, nada.
Um ruído rascante de espada sendo retirada da bainha gelou o sangue do
caçador. Numa vertigem de desespero, ele lembrou da pergunta que fizera na
outra ocasião.
– Quem te trouxe até aqui, caveira? Diga!
Silêncio, de novo.
Então, o pânico apoderou-se da alma do caçador.
– Fala, desgraçada! Quem te trouxe até aqui?
Mas a caveira nada disse, e aqui se acabou tudo para o caçador. O guarda,
manuseando a espada com admirável destreza, cortou fora num zás! a cabeça do
mentiroso.
Depois que o carrasco partiu, a caveira, virando-se para a cabeça, lhe
disse:
– Agora, diga lá, minha amiga: quem te trouxe até aqui?
A cabeça decepada virou-se e disse:
– Minha boca grande me trouxe até aqui!



A PRINCESA DE BAMBULUÁ


Havia, há muito tempo, uma gruta situada entre duas cidades. Ela era
assombrada, e toda noite a cabeça de uma donzela meiga surgia para pedir aos
homens que nela se aventuravam que a desencantassem. A jovem intitulava-se
“princesa de Bambuluá” e fazia seu pedido aos prantos.
Muitos tentaram, mas o resultado era sempre uma série de provas rudes
que acabavam por fazer o pretendente fugir mata afora.
Certo dia, surgiu por ali um sujeitinho amarelo e enfezado. Ele estava
exausto e não sabia mais o que fazer da vida. Depois de sentar-se à entrada da
gruta, começou a lamentar-se.
– Estou cansado de ser feio e fraco!
Então, de repente, surgiu flutuando a cabeça da princesa.
– Não quer desencantar-me, belo jovem? – disse ela, na mais maviosa das
vozes.
O sujeitinho feioso, que se chamava João, estava topando qualquer coisa,
ainda mais um pedido feito por uma cabeça tão linda. Imediatamente ele aceitou
a proposta, mas, antes de desencantá-la, pediu para comer e beber algo. A
cabeça linda levou o sujeitinho para o interior da gruta, onde uma mesa farta pôs
fim à sua fome e à sua sede.
– Agora vá até o alto da serra e deite-se debaixo da árvore mais alta que lá
houver – disse a bela cabeça. – Haja o que houver, suporte tudo até o fim.
João Amarelo fez o que ela disse e, quando estava deitado debaixo da
árvore, viu chover sobre si uma tempestade de pauladas, até que ele rolou de
volta para a gruta.
Para sua surpresa, descobriu que a princesa estava desencantada de um
terço do corpo, podendo-se ver já a figura desde a cabeça até o busto
pudicamente coberto.
A princesa tratou dos ferimentos do jovem, mas já na noite seguinte ele
teve de retornar ao seu calvário, no alto da serra.
– Não se esqueça, suporte tudo sem reclamar ou gemer! – disse o busto.
João Amarelo foi e suportou a sova outra vez, voltando para a gruta como
uma pedra que rola. Para seu consolo, a princesa já estava desencantada até a
cintura, com braços e tudo.
– Mais uma noite e estarei completamente desencantada! – disse ela,
enquanto João mordia os lábios rachados de apreensão: será que aguentaria mais
uma sova?
Aguentou, sim, mas não foi fácil. Desta vez, os agressores invisíveis
meteram-no dentro de um barril cheio de espinhos e cacos de vidro e rolaram-no
pela noite inteira. Ao ver-se de volta à gruta, porém, todo o martírio foi
recompensado com a visão da princesa de Bambuluá totalmente desencantada.
* * *
A segunda parte começa com uma viagem que João e a princesa fizeram
até uma cidade vizinha.

– Agora parto para meu reino – disse ela. – Enquanto estiver lá, você
deverá instruir-se aqui na linguagem dos pássaros e em todos os demais saberes
de um homem que pretende ser meu esposo.
João prometeu que estudaria tudo o que fosse preciso.
– De ano em ano virei vê-lo, até cumprirem-se cinco anos – acrescentou a
princesa. – Minha visita anual será curtíssima, durando apenas uma hora. Adeus.
João ficou na casa de uma preceptora velha e horrível, mas que possuía
duas filhas jovens e lindas. Logo nos primeiros meses, ao ver que o jovem,
apesar de feio e amarelo, era muito estudioso, a velha decidiu casá-lo com uma
das filhas.
– A princesa que arrume outro! – disse ela.
Quando fechou o primeiro ano, a princesa veio ver João, mas a velha havia
lhe dado uma “dormideira”, que é como se chamam, nos contos de fadas, as
poções para adormecer.
Resultado: João não pôde ver a sua adorada princesa, e ela retornou, muito
frustrada, à corte.
Nos anos seguintes, a coisa se repetiu, e a princesa vinha e partia sem ver
seu pretendente. Então, ao cumprirem-se os cinco anos, ela chegou à conclusão
de que ele a havia esquecido.
Quando João soube que a princesa não queria mais vê-lo, entrou em pânico
e fugiu da casa da velha para encontrar o reino da amada. Depois de andar por
tudo, foi dar numa casinha à beira-mar.
– Ó de fora, entre já e agora! – disse uma vozinha no interior.
João entrou e deparou-se com um velho velhíssimo.
– Sente-se – disse o fio de voz, que era quase um pipilar.
João contou que procurava o reino de Bambuluá.
– Sou o Príncipe dos Pássaros – respondeu o velho. – Pode ser que algum
de meus súditos saiba lhe indicar o caminho.
O velho tomou de uma matraca e começou a girá-la, réc-réc-réc, e surgiu
dos céus uma tamanha nuvem de pássaros que o dia quase virou noite. As aves
entraram pelas janelas e por todos os vãos da casa, e começaram a atacar o
jovem, julgando-o um inimigo.
Depois que o velho acalmou as aves, fez um inquérito para saber qual delas
sabia o caminho para o reino de Bambuluá.
Nenhuma sabia.
– Então só lhe resta ir amanhã bem cedo perguntar a meu pai onde fica –
disse o velho.
Seu pai? – exclamou João, incrédulo de que aquele velho ainda pudesse
ter pai.
– Ele é o Rei dos Pássaros e mora lá, em tal lugar – disse o Príncipe dos
Pássaros, que, pelo andar da carruagem, parecia que jamais chegaria a ser rei.
A casa do Rei dos Pássaros ficava na encosta de um morro. O tal rei era
tão velho que mais parecia uma bola de penas encolhida junto à lareira.
– Rei dos Pássaros, preciso saber onde fica o reino de Bambuluá – disse o
visitante.
Dentre os dedos recurvos do velho pássaro estava um apito de prata, que

ele levou à boca. Um assovio estridente escapou do apito, e nova nuvem de aves
tapou o sol e o céu. A passarada quis botar-se inteira, também, contra o
forasteiro, mas o Rei impediu o massacre.
– Digam onde fica o reino que o jovem procura – ordenou o velho.
Infelizmente, ninguém sabia, e só restou ao Rei dos Pássaros sugerir ao
visitante que fosse fazer uma visita ao seu pai, o Imperador dos Pássaros.
Como? – disse o jovem, no limite da incredulidade.
– A sua casa fica em tal lugar – disse o Rei. – Ele é imperador, e
imperadores sabem de tudo.
João saiu e subiu uma colina enorme até deparar-se com uma casinha
branca. Desta vez, ninguém mandou-o entrar, o que ele fez por conta própria. Na
pequena sala, não havia nada senão uma cabaça suspensa num gancho em cima
do fogo. João olhou para dentro e viu um pequeno pássaro, todo enrolado em
ramas de algodão. Era o poderoso Imperador dos Pássaros.
– Senhor Imperador, pelo amor de todas as aves do mundo, diga-me onde
fica o reino de Bambuluá ou vou morrer de desgosto e exaustão!
O Imperador, movido pela piedade, tomou das ramas do algodão um osso
de ema e assoprou por entre os furos. Um ruído fino mas estridente cortou os
ares, e foi tudo de novo, o bando de pássaros, depois as bicadas no intruso, até que
confessaram não saber de nada.
Um urubu velho e depenado, no entanto, que ficara num canto, parecia
saber finalmente a resposta.
– O reino de Bambuluá fica para além do Inferno, mas antes é preciso
sobrevoar a caldeira do Diabo.
O Imperador dos Pássaros ordenou a João que desse um boi inteiro para o
urubu comer, pois seria ele a sua montaria para transpor o fogo do Inferno.
– Ele? – disse João, ao ver o urubu quase pelado.
– Dê-lhe de comer e amanhã estará como um gavião – disse o imperador.
O urubu comeu o boi inteiro e readquiriu, como por mágica, todas as suas
penas. No mesmo instante, João montou nas costas da ave, e puseram-se a
caminho do reino da amada princesa.
João fechou os olhos, e tudo o que conheceu do inferno transposto foi um
calor enorme no traseiro. Então, quando sentiu uma brisa divinamente
refrescante, reabriu os olhos e viu-se numa campina verde e amena. O urubu
deu-lhe adeus, e João seguiu sozinho até avistar, no topo de uma montanha, um
palácio realmente deslumbrante. No caminho do palácio, ele parou na casa de
uma velha solícita.
– Faça um pouso aqui, jovem andarilho – disse ela.
Então, sem dizer nada, a velha sacou um violino estropiado e começou a
tocar uma mistura estridente de valsa e mazurca. João pediu para a velha lhe dar
o instrumento.
– Tenho cordas novas – disse ele, pois a princesa lhe dera um conjunto
antes de partir.
João trocou as cordas e começou a tocar ele mesmo. As cordas eram
encantadas, e logo a velha começou a requebrar-se feito doida. Em pouco
tempo, todo mundo que passava na rua entrava e punha-se também a dançar

freneticamente.
Uma mensageira tinha sido enviada ao palácio para pedir comida. Ao
chegar de volta, porém, ela atirou o tabuleiro para cima e saiu dançando junto
com os outros. Enquanto isso, no palácio, mandaram outra mensageira com mais
comida, imaginando que a primeira tivesse se perdido. Resultado: a segunda
também caiu na dança, e todos no palácio ficaram ainda mais intrigados.
– Que alaúza se passa lá embaixo? – perguntou a rainha, afinal.
Após juntar-se com as suas damas de companhia, a digníssima senhora foi
ver pessoalmente o que se passava e terminou, ela também, caindo na dança.
Logo em seguida, o rei foi ver o que houvera com a rainha e não deu outra,
caindo ele também na festa.
Todos estariam dançando até hoje se João não tivesse posto um fim à sua
arte.
– Minha filha se casa amanhã – esbravejou o rei. – Você há de tocar na
festa ou então terá sua cabeça cortada!
Quando João chegou ao palácio, a princesa reconheceu nele
imediatamente o antigo benfeitor. Sem pestanejar, ela anunciou ao pai que não
se casaria mais com o seu noivo, um oficial enfadonho de bigodes encerados
como ganchos, mas com o seu primeiro e verdadeiro amor, o tocador de rabeca.



A MENINA DOS BRINCOS DE OURO


Ainda hoje circula por aí este conto saboroso, que começa assim.
Havia uma menina que gostava de ir buscar água na fonte, sempre com
seus brincos de ouro. Toda a delícia da sua vida era ver-se refletida na água com
aqueles dois pingentes dourados, um em cada orelha.
Certo dia, ela resolveu tirá-los um pouco, para banhar-se na água, pois
tinha muito medo de perdê-los na correnteza. Ao sair, porém, esqueceu-se de
recolocá-los, e eles ficaram lá na margem.
Ao chegar em casa e ver que esquecera os brincos amados, ela voltou
correndo à fonte. Ao retornar lá, porém, deparou-se com um velho asqueroso.
– O que quer, fedelha? – rosnou o velho.
– O senhor não viu por aí uns brincos dourados?
– Não, mas estou vendo uma bela menina de cabelos dourados!
Apesar de velho, ele ainda tinha força o bastante para fazer ruindade e,
com uma rapidez espantosa, tomou a menina e enfiou-a num saco.
– Agora, você vai ficar quietinha aí dentro do surrão até eu mandar você
cantar! – disse o velho, levando-a nas costas, ao mesmo tempo em que lhe
ensinava uma cantiga que ela deveria repetir sempre que o velho fosse fazer seus
peditórios.
Ele dizia: “Canta, canta, meu surrão, senão te meto o porretão!”, enquanto
ela tinha de responder: “Metida no surrão de couro, nele hei de sofrer, por causa
de uns brincos de ouro, que na fonte achei de perder!”.
Os dois andaram pra cima e pra baixo o dia inteiro, e a cada novo pedido
do velho uma bordoada no saco fazia a pobre menina repetir a sua ladainha:
– Metida no surrão de couro, nele hei de sofrer, por causa de uns brincos de
ouro, que na fonte achei de perder!
Certo dia, as andanças do velho levaram-no à casa da mãe da menina dos
brincos de ouro. Ao reconhecer a voz da filha, a mãe, aflitíssima, convidou o
velho para passar a noite na casa.
– O senhor está muito cansado. Coma, beba e depois ponha-se a descansar!
O velho encantou-se com tanta caridade, especialmente com aquele
negócio de beber. Depois de entornar quase uma pipa de vinho, ele se atirou
numa esteira e começou a roncar feito um bugio.
Então a mãe, expedita, tratou de abrir logo o surrão e retirar a filha, quase
morta, do seu interior.
– Filhinha amada! – disse a mãe, enternecida, ao ver a menina ainda com
os brincos de ouro que ela lhe dera no seu aniversário.
Enquanto o velho dormia, a mãe encheu o surrão de excrementos dos
porcos e galinhas da casa, e deixou-o partir no dia seguinte como se levasse ainda
no surrão a pobre menina.
– Adeus, mas voltarei, pois aqui passei muito bem! – disse o velho.
Depois de andar um quarto de hora, a fome voltou a roer as tripas do velho.
– Prepare-se, menina, pois é hora de cantar!
Ao chegar a outra casa, bateu palmas e uma senhora apareceu. Como
sempre ele disse ao surrão:

– Canta, canta, meu surrão, senão te meto o porretão!
Só que desta vez o surrão ficou mudo.
– Quer apanhar, fedelha? – disse ele, repetindo o refrão: – Canta, canta,
meu surrão, senão te meto o porretão!
Nada outra vez.
Então, tomando o porrete, o velho aplicou uma paulada com tal força no
surrão que ele explodiu, enchendo-o de titica de porco e de galinha, dos pés à
cabeça.
O velho, depois disso, foi preso e enforcado, para aprender a nunca mais
andar por aí raptando meninas com ou sem brincos de ouro.



OS Q UATRO LADRÕES


Segundo Câmara Cascudo, o conto que vamos ler agora é tão antigo “que
fazia rir aos cruzados”. “Os quatro ladrões”, de fato, é um dos contos mais
disseminados pelo mundo – sua primeira aparição se fez na Índia, na mais
remota Antiguidade, até encontrar no Brasil a sua moderna versão tropical.
Diz-se, pois, que quatro ladrões estavam descansando certo dia debaixo de
uma árvore quando viram passar um sujeito gordo levando consigo um boi
enorme e rechonchudo.
– Vejam, amigos! – disse o Ladrão Um. – Ali temos carne para o ano
todo!
– Psiu! Vamos passar logo a perna no bobo – disse o Ladrão Três.
O Ladrão Quatro, que não era de muita conversa, simplesmente seguiu os
demais.
Já estavam quase chegando quando o Ladrão Um teve uma ideia melhor.
– Mesmo estando em quatro, este gorducho ainda pode nos criar
problemas. Vamos nos separar e fazer o seguinte.
Ele explicou direitinho o plano, e logo os quatro estavam espalhados pela
mata.
O proprietário continuou seu caminho com o boi até o Ladrão Um lhe
aparecer pela frente.
– Bom dia, senhor cachorreiro! – disse ele, sorridente.
O gorducho apertou os olhos para ver quem era o autor da bobagem.
– Cachorreiro, disse você? Onde há cachorro por aqui?
O Ladrão Um fez um ar de pasmo e retrucou:
– Ora, e este cãozinho felpudo aqui, o que é? – e passava a mão no cachaço
do touro, enquanto assoviava.
O gordo, meio assustado, deu as costas e saiu ligeiro, puxando o boi pela
corda.
– Só dá louco por aqui!
Andou mais alguns passos e se deparou com o Ladrão Dois.
– Linda manhã para passear com o fila! – disse este.
– Está maluco? Que fila? – exclamou o gorducho.
– O cão fila, aí. Meus parabéns, deve ser caçador, e dos bons!
– Se ele é um fila, você é um vira-lata! – exclamou o gorducho, levando o
boi.
Andou mais um pouco até topar com o Ladrão Três.
– Ora, viva – disse este. – Já vai cedo pra caça?
– Ah, meu Deus! Que caça? Não vê, então, que levo um boi?
O Ladrão Três caiu na gargalhada.
– Ah, ah! Boa, esta! Mas que é cão, é! E cão dos bons!
O Ladrão Três começou a alisar as fuças chatas do boi.
– Este focinho pontudo aqui não engana! Deve farejar uma cutia a
quilômetros de distância!
– Adeus! – disse o gorducho, levando o boi de arrasto.
No seu íntimo, porém, crescia cada vez mais a dúvida.

– Será boi mesmo? – disse ele, parando, a certa altura, para conferir.
Ele havia comprado o bicho na feira, mas agora começava a desconfiar de
algum logro muito bem engendrado.
Neste ponto o boi mugiu alto, para desfazer a dúvida, e o proprietário
acalmou-se.
– Graças a Deus! É boi, mesmo! E que mugido!
Seguiu adiante, certo de que uma epidemia de loucura grassava por perto.
De repente, porém, surgiu-lhe pela frente o Ladrão Quatro.
– Ah, aí está! – disse ele, a sorrir. – Pelo latido bem vi que era um senhor
perdigueiro!
– Que loucura! – exclamou o gordo. – Onde há cachorro algum por aqui?
Não vê, então, que é um boi, estrupício?
O boi abanou a cauda, nervoso, e o Ladrão Quatro arreganhou ainda mais
os dentes.
– Ah, ah! Abana o rabo que nem cachorro mateiro! E vem me dizer que é
boi!
A esta altura o boi, apavorado, pressentindo que ia virar um assado antes do
tempo, começou a deitar pela boca uma espuma branca.
– Oh, mas que pena! – disse o Ladrão Quatro. – Parece que o seu cão está
hidrófobo!
Depois desta, o gorducho não quis saber de mais nada: atirou a corda pra
cima e saiu correndo mata afora antes que o buldogue raivoso o estraçalhasse.
Assim que o gorducho sumiu, os quatro ladrões se reuniram e passaram a
faca no boi.
Ao que consta, estão carneando o bicho até hoje.



AVENTURAS DE PEDRO MALAZARTE I


Pedro Malazarte é um personagem ladino. Ele emigrou da Espanha e de
Portugal para o Brasil e acabou se aclimatando muito bem por aqui. É o rei da
esperteza e continua popularíssimo por todo o interior do Brasil.
Certa feita, Pedro foi trabalhar em uma fazenda. O patrão gostava de
arrancar, literalmente, o couro dos seus empregados. (Pedro tinha um irmão que
voltara para casa sem uma tira de couro nas costas.)
Assim que Malazarte chegou à fazenda, o proprietário lhe deu uma
cadelinha.
– Já viu, hein! Vá para a plantação e só volte para almoçar quando a
cadelinha quiser!
Já eram duas da tarde e a cadelinha, esparramada na sombra, não fazia
menção de se mexer, e a barriga de Malazarte roncando de fome. Então ele
assobiou e apontou para a casa. A cadelinha abriu um bocejo de engolir o
mundo. Depois, mastigou o ar três ou quatro vezes e recaiu na modorra.
– Já vi a tapeação! – disse Pedro, injuriado.
Tomando um pedaço de pau, ele aplicou uma lambada daquelas nos
quartos da cadela. Como um raio, a bicha saiu ganindo e coxeando na direção da
casa.
Pedro Malazarte apareceu, em seguida, na varanda do proprietário.
– Também quero comer – disse ele, sisudo.
O proprietário, refestelado à mesa, torceu o nariz e disse para Pedro ir à
cozinha “se aviar com o que houvesse”.
Malazarte raspou os restos das panelas e voltou à plantação com a cadela.
Ali pelas oito da noite, quando até o sol já desmaiara de insolação, Pedro viu a
cadela deitada de barriga para cima, sem dar a menor mostra de querer
retornar.
Então ele a açoitou com o pau, outra vez, e a cadela voltou de olhos
arregalados para casa.
Antes de deitar, Pedro foi comunicado da tarefa do dia seguinte.
– Já viu, hein! Amanhã vai limpar a roça de mandioca!
Malazarte pagou os pecados, mas limpou inteira a roça maldita.
– Está limpa, meu patrão – disse ele.
O fazendeiro fez cara feia e latiu outra ordem, que para isso ele era bom.
– Já viu, hein! Amanhã vai trazer o carroção carregado de pau sem nó!
Malazarte cortou todo o bananal, que é pau sem nó, e entregou tudo.
Então, no dia seguinte, o patrão mandou meter o carro de bois para dentro
de um casebrezinho.
– Põe tudo lá dentro, mas vê lá, hein, sem passar pela porta!
O patrão era precavido. Antes de ir deitar tratou de passar a chave na porta

do casebre, só para se garantir. Depois escondeu muito bem a chave.
Ao chegar ao casebre e ver que a porta estava sem jeito de abrir, Pedro
tomou de um machado e foi pra cima da carroça e dos bois e picou tudo em
pedaços. Depois foi até a janela e atirou parte por parte para dentro do casebre.
– Está tudo lá dentro, meu patrão – disse ele ao fazendeiro.
– Então prepare-se que amanhã, antes do sol, você vai à feira vender
porco.
Neste ponto, o diabo roncou nas tripas de Malazarte, e ele decidiu que era
hora de aprontar, também, pra cima do fazendeiro. Ao chegar à feira, cortou o
rabo dos porcos antes de vendê-los. Depois, enterrou-os, às escondidas, num
lamaçal, na propriedade do fazendeiro, e foi ter com ele.
– Acuda, senhor, que a porcada está atolada no barro!
O fazendeiro, apavorado, foi correndo salvar o prejuízo, enquanto
Malazarte tomava emprestado dinheiro da caseira para comprar as pás para
desenterrar a bichada.
– Dê-me logo, foi o patrão quem pediu! – disse ele.
O patrão arrancou da lama só o rabo dos porcos, e ficou certo de que o
resto a terra comera. Ficou de cama três dias, consolado unicamente com o fato
de que o desgosto, tirando-lhe o apetite, lhe diminuía também o prejuízo.
Malazarte aprontou outras para o patrão, e a cada dia era um novo
prejuízo. Então, o patrão decidiu que o melhor era liquidar de uma vez com o
patife.
– Um ladrão de rês anda por aí – disse ele a Malazarte. – Já viu, hein!
Amanhã vou montar guarda no curral. À meia-noite em ponto, venha me
substituir!
Na hora aprazada, Pedro, farejando a tocaia, correu até a esposa do
fazendeiro.
– Rápido, seu marido a espera no curral. Leve este bacamarte, pois há
ladrão por aí.
A velha tomou o bacamarte e se foi ao curral. Ao se aproximar do
cercado, apanhou uma tal carga de chumbo e vidro moído pela cara que desabou
morta por terra.
Neste instante, Malazarte surgiu, acusadoramente.
– Aqui! Acudam todos, que o patrão matou a esposa!
Toda gente correu para ver a desgraça. O proprietário, sentindo a corda da
lei no pescoço, ofereceu um alforje cheio de dinheiro para Malazarte sumir e
nunca mais falar nada a respeito.
E foi assim que Pedro Malazarte voltou rico para casa, e com toda a pele
no corpo.



AVENTURAS DE PEDRO MALAZARTE II


Malazarte andou às voltas com um urubu adivinho. Como tudo isso
aconteceu, saberemos agora.
Andando pela roça, Pedro Malazarte topou, um dia, com um urubu todo
machucado. Tinha uma asa partida, uma perna quebrada, e as penas no corpo
contavam uma sim, outra não.
– Para algo ainda há de servir – disse ele, enfiando o bicho moribundo para
dentro de um saco.
Pedro seguiu viagem até chegar, noite alta, a uma casa muito bonita.
– Ô, de casa, tem comida para um viajante? – disse ele, batendo palmas.
Uma mulher de rosto todo pintado surgiu no vão de uma persiana.
– Não tem comida nenhuma, dê o fora! – ralhou ela.
Malazarte subiu numa árvore e viu a mulher escondendo num armário
várias travessas cheias de comida, além de quatro botijas de um vinho gostoso de
fazer bico.
Malazarte desceu e voltou à carga, batendo palmas.
– Se não tem comida, dê-me abrigo.
– Eia, fora! Meu marido não está em casa! – disse ela, azeda. – Não hei de
receber pela porta da frente um homem estranho, como uma desavergonhada!
Dali a pouco, chegou outro homem, todo embuçado. Este não era estranho
e foi recebido pela porta dos fundos.
O jantar ia no auge quando o marido, chegando de repente, desceu do
cavalo e entrou na casa. Assim que a porta da frente se fechou, a dos fundos se
abriu e o visitante discreto sumiu.
Malazarte achou que era a hora certa para voltar a carga.
– Ó, meu senhor, dá-me comida!
Desta vez, ele foi levado condignamente até a sala de jantar. A comida que
veio, porém, era uma lavagem de porco perto daquela que ele vira pela janela.
Então, ao se lembrar do urubu, ele começou a cochichar algo com ele.
– Com quem o amigo conversa? – disse o dono da casa, revirando no prato
o mingau fedorento.
– Oh, não é nada, não – disse Malazarte, indiferente. – É só um urubu
adivinho.
– Urubu adivinho? Esta é forte! Nunca vi tal! Faça-o adivinhar algo!
Então Pedro cochichou com o bicho moribundo, que se remexeu dentro do
saco, lançando um grasnido lamentável.
– Ele diz que dentro daquele armário há comida e bebida de deuses.
– Mulher, abra já esse armário! – ordenou o dono da casa.
Torcendo a boca de todas as formas, a altíssima dama escancarou os
batentes e retirou a comida apetitosa com a qual ela e o visitante discreto haviam
se refestelado um pouco antes.

– Ora viva, este urubu é realmente prodigioso! – disse o dono da casa.
Malazarte comeu e bebeu do bom e do melhor e, antes de se retirar, ainda
vendeu o urubu profeta ao dono da casa por uma pequena fortuna.
Antes de partir, o urubu deu um silvo, e o dono da casa quis saber o que
era.
– Ele acabou de profetizar a coisa mais importante da vida dele.
Malazarte picou a mula e, logo depois, o urubu deu o couro às varas, ou
seja, morreu.
  

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