domingo, 6 de novembro de 2016

CONSCRITO 790

COBRA-NORATO


Certa vez, uma mulher ficou grávida do Boto, o mais famoso sedutor das
águas paraenses. Um casal de gêmeos nasceu. Era um lindo casal, só que um
casal de cobras d’água.
A mãe não quis saber deles e foi pedir instruções a um pajé.
– Eles são cria da Cobra-Grande! – disse ela, assustada.
O pajé, depois de consultar seus manes, disse que ela deveria abandoná-los
às margens do Tocantins, e assim foi feito.
O tempo passou, e as cobrinhas gêmeas viraram duas cobras gigantes.
Uma delas se chamava Honorato, ou simplesmente Norato, e era uma cobra
macho boa e cordata. Sua irmã, porém, tornou-se má e vingativa, e graças ao
seu gênio ruim foi chamada Maria Caninana (mal chamada, já que caninana, na
língua tupi, quer dizer “cobra não venenosa”).
Durante muito tempo, Cobra-Norato tentou demover a irmã da prática de
maldades, mas ela não sabia fazer outra coisa senão afogar banhistas e afundar
embarcações.
– Minha irmã, desta vez você passou dos limites! – disse-lhe Norato, certa
feita, depois que ela fora bulir com uma cobra encantada que morava debaixo do
altar de uma igreja em Óbidos.
Ela sabia que se a cobra saísse dali a igreja inteira ruiria. Mesmo assim,
mexeu com ela e a cobra remexeu-se. Para felicidade das velhas beatas, a
igreja não ruiu, mas ganhou uma rachadura de alto a baixo.
– Toma tento, encrenqueira! – disse Norato.
– Que tento, nem vento! Quem pensa que é? – silvou a Caninana.
Então Norato atracou-se com a irmã e, depois de uma luta titânica nas
águas, matou-a.
Desde então, passou a haver apenas uma cobra sobrenatural no Tocantins,
que era Cobra-Norato. Após estraçalhar a irmã, ele recuperou a alegria de viver,
tendo adquirido até o hábito de fazer algumas visitinhas às aldeias próximas do
rio, especialmente à noite, tal como seu pai Boto costumava fazer.
Cobra-Norato adorava dançar e, sempre que havia um baile, saía das
águas para seduzir alguma moça ribeirinha. Ele tinha o dom de se transportar
magicamente de um lugar para o outro, e era assim que podia ser visto, numa
mesma noite, em quatro ou cinco lugares muito distantes.
Quando ele abandonava o rio para fazer suas incursões terrestres,
costumava deixar nas margens a sua pele de cobra. De dentro dela surgia um
rapaz belo e charmoso, irresistível às mocinhas.
Norato gostava tanto das suas surtidas noturnas que desejou tornar-se um
ser humano como os outros. Havia, porém, um sortilégio que o impedia de
abandonar as águas.
Certo dia, num baile, ele pediu a uma moça que quebrasse a maldição.

– É simples – disse ele. – Basta que você despeje algumas gotas de leite
sobre a minha cabeça e depois dê um golpe sobre ela, o suficiente para tirar
algumas gotas de sangue.
– Jamais poderia feri-lo! – disse ela, em prantos.
Norato, porém, arrastou-a até as margens do rio e teimou para que ela o
livrasse do mal. Antes, porém, ele devia assumir sua forma original de cobra, e
foi aí que tudo deu pra trás. Ao ver a cobra monstruosa, a pobre menina saiu
correndo de volta para a cidade.
Norato, desconsolado, pediu a todo mundo que o livrasse da maldição, mas
era sempre a mesma coisa. Nem mesmo a sua mãe tivera coragem o bastante
para encarar o monstro e livrá-lo da maldição.
Certa feita, porém, durante uma das festas às quais ele compareceu, um
soldado valente se prontificou a colocar um fim ao sortilégio do amigo.
O soldado acompanhou Norato até as margens do rio, levando consigo uma
garrafa de leite e a sua inseparável espada.
– Pode vestir a pele! – disse ele, ao chegarem ao rio.
Norato entrou para dentro da pele e se transformou, outra vez, na temível
cobra. O soldado ficou pálido como a lua, mas não recuou. Depois de abrir a
garrafa, despejou algumas gotas de leite na cabeça da cobra e, em seguida,
aplicou-lhe uma valente cutilada na cabeça. Algumas gotas minaram da ferida,
misturando-se ao leite, e, como por mágica, Norato tornou-se definitivamente
homem.
Desde então, o fabuloso Cobra-Norato deixou de ser cobra. O que foi feito
dele depois, ninguém sabe. Há quem diga que virou soldado e foi servir no
mesmo batalhão do amigo que o desencantou, mas isto deve ser patranha de
algum caboclo malicioso.
  

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