domingo, 6 de novembro de 2016

CONSCRITO 792

O NEGRINHO DO PASTOREIO

Sem dúvida alguma, a lenda mais popular no extremo sul do Brasil ainda é
a do Negrinho do Pastoreio, uma história triste e violenta.
O escritor gaúcho Simões Lopes Neto foi o maior divulgador da lenda, a
qual reconta-se agora, em outras e inferiores palavras.
Havia, nos tempos idos, um estancieiro perverso que adorava maltratar os
escravos. Na estância desse demônio, vivia um negrinho chamado simplesmente
de Negrinho. Não tendo mãe nem pai, ninguém se lembrara de batizá-lo. Graças
a isso, dizia-se que era afilhado de Nossa Senhora.
Certo dia, o estancieiro perverso resolveu organizar uma corrida de
cavalos. O Negrinho, bom de cavalhadas, deveria conduzir o cavalo do patrão.
– Se perder a corrida já sabe! – ameaçou o estancieiro, mostrando-lhe o
punho.
Deu-se, então, a corrida, e o Negrinho levou a pior.
Mas a pior, mesmo, ele ainda estava por levar. O estancieiro perverso
havia perdido mil onças de ouro, e queria se vingar no menino.
– Esse tição me paga! – dizia ele, vibrando o relho no ar, em juras de ódio.
Nem bem o povaréu se espalhara ao redor dos espetos de carne gorda, o
Negrinho viu-se amarrado numa estaca, na qual levou uma horrenda surra. Lá
ficou a noite inteira, e só quando amanheceu foi retirado e levado a um pedaço
ermo de campo.
– Vai ficar aqui pastoreando o gado durante trinta dias, pois trinta quadras
tinha a cancha reta onde perdeu a corrida! – disse o patrão, deixando o Negrinho
sob o sol escaldante, sob o granizo furioso, sob o frio enregelante, e sob tudo o que
há de molesto na mãe natureza.
Durante as noites, o Negrinho provava outra colherada cheia do inferno:
cercado por corujas, onças, lobos, javalis ou outros bichos que havia então pelos
pampas, só encontrava algum sossego ao lembrar da sua Madrinha, e aí
adormecia com um sorriso nos lábios.
E foi justo numa dessas pausas do sofrimento que a sua ruína se completou:
um bando de ladrões de gado, aproveitando o sono do pequeno vigia, levou
consigo todo o gado.
Não é preciso dizer que, no dia seguinte, o Negrinho provou outra surra
daquelas.
– Agora vai procurar o gado que deixou levarem! – disse o patrão,
mandando-o, noite fechada, para os campos abertos.
O Negrinho passou antes na capelinha da sua Virgem Madrinha e levou
uma vela para alumiar os caminhos. Enquanto avançava pelos campos, deixava
cair um pouco da cera incandescente. Os pingos ficavam queimando pelo chão,
como pirilampos, enquanto ele avançava.
Então, de tanto avançar, ele finalmente achou o campo do pastoreio. O
gado estava lá, e ele se deitou para dormir, agradecendo à Madrinha Celeste. No
meio da noite, no entanto, o filho do estancieiro, um rapaz ainda pior do que o pai,
veio de mansinho e espantou, outra vez, os animais.
O laço cantou de novo, e desta vez o Negrinho não resistiu e morreu.

A coisa toda se deu em campo aberto, e o patrão desgraçado achou que o
Negrinho não merecia nem mesmo uma cova.
– Atire-o ali no formigueiro! – disse ao filho.
O corpo do Negrinho foi posto sobre o formigueiro, e as formigas caíram
em cima, comendo tudo.
Quando chegou em casa, o estancieiro sonhou que ele era mil estancieiros,
e que tinha mil filhos, e mil negrinhos para maltratar, e mil mil onças de ouro
para gastar em bobagens.
Durante três noites, o estancieiro sonhou o mesmo sonho. Então, na terceira
noite, tomado pelo remorso – ou pelo medo de ser descoberto –, resolveu voltar
ao formigueiro para ver se as formigas haviam comido todo o corpo. Ao chegar
lá, porém, deparou-se com a figura do Negrinho, em pé sobre o formigueiro, são
e sem marca alguma de ferida. Ao seu lado, estava a sua Santa Madrinha, toda
serena e fosforescendo em azul. Os bichos perdidos também estavam todos ali.
O estancieiro caiu de joelhos e mãos postas, arrependido, mas o que ele
sentia mesmo era um medo terrível de que algum castigo caísse sobre si.
Enquanto o estancieiro se enchia de medo, o Negrinho montou, em pelo,
em cima de um dos cavalos e saiu a tocar alegremente a tropa pelas coxilhas.
A partir daquele dia, o Negrinho passou a ser chamado de Negrinho do
Pastoreio. Encarregado de encontrar coisas perdidas, ele faz a busca de bom
grado, mas sempre pedindo uma vela para a sua madrinha.
  

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